sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Raving

Quando passo os olhos pelos jornais - o que acontece raramente - parece-me que os europeus estão/são menos alienados que os americanos.  Pelo menos os europeus das cidades.  Estava a falar sobre este assunto com um amigo e lembrei-me de uma série de emails recentes aqui na univ., a encorajarem-nos a gravarmos as aulas.  Para poupar espaço, dizem eles: assim os alunos podem seguir as aulas de casa e a univ. poupa dinheiro em salas de aula, baixa as propinas e ainda nos dá dinheiro para o trabalho acrescido, que são mais uns trinta ou quarenta emails por dia.

Mas esta tendência para isolar as pessoas, ou pelo menos interpor uma câmera, um ecran e um censor entre os professores e os alunos (os nossos syllbi já são escrutinados por uma comissão de censores nomeada pelo governador), é aceite unanimemente pela sociedade americana.  Os americanos são pessoas eminentemente rurais e não gostam que a realidade lhes confunda as crenças.

O isolamento e a alienação são direitos reivindicados na América desde que os primeiros fundamentalistas religiosos se meteram em barcos para fugirem da Europa (cada vez mais complicada) do Humanismo e do Iluminismo.

Todos os semestres chega o dia em que eu tenho de falar em solidariedade e alienação, e todos os semestres os alunos sofrem fisicamente quando são confrontados com este assundo: a alienação como antónimo de solidariedade.  No fundo, acho que eles pressentem que a vida miserável que levam - um em cada quatro americanos toma comprimidos para a ansiedade - podia ser melhor.

Mas se eu sugiro que os impostos são a fundação da civilização e que nos países onde há mais impostos, há menos desigualdades e mais redes de segurança, e neles as pessoas são mais felizes e menos violentas...  perco-os instantaneamente.  Os olhos deles perdem a vida: há um bloqueio emocional generalizado na minha sala de aula e os cérebros dos meus alunos apagam-se todos ao mesmo tempo.

4 comentários :

Eduardo Pinto disse...

"O isolamento e a alienação são direitos reivindicados na América desde que os primeiros fundamentalistas religiosos se meteram em barcos para fugirem da Europa (cada vez mais complicada) do Humanismo e do Iluminismo."

O comentário abaixo escrito refere-se somente ao supracitado e nada mais.

Esses "fundamentalistas religiosos"* a que se refere, e ao contrário do que diz, estavam apenas a fugir da perseguição religiosa e do poder autocrático Real exercido à data por Charles I e justificado pelo seu direito divino, e apenas reclamavam liberdade religiosa e autonomia
Esses tais "fundamentalistas" eram imbuídos de uma cultura democrática e de um espirito comunitário e mutualista - com precedente apenas na polis Ateniense da Grécia clássica no que toca à história documentada - que nos deveria fazer corar de vergonha quando comparado com o regime opressivo e plutocrático em que vivemos hoje.



*Puritanos da Nova Inglaterra entendi eu



Miguel Madeira disse...

Ainda na sequência do comentador anterior, lembro também que na Grã-Bretanha (e, já agora, também na Escandinávia), no século XIX e mesmo princípios do XX o principal suporte dos Liberais eram exatamente as tais seitas fundamentalistas (enquanto os Conservadores apoiavam a Igreja "oficial") , pelo que não faz mesmo grande sentido apresentar os "fundamentalistas" como inimigos do "Iluminismo" (pelo menos se aceitarmos o liberalismo novecentista como a continuação natural do Iluminismo). E até acho que há alguma ligação entre as duas coisas - o literalismo bíblico dos protestantes fundamentalistas joga bem com a ideia do "livre-pensamento" individual, caro ao Iluminismo e aos liberalismo do século XIX, já que esse literalismo é exatamente o resultado da ideia de que cada cristão deve deve ir diretamente à Biblia, em vez de confiar em intermediários e autoridades terrenas para a enquadrar e interpretar.


E também convém lembrar que as colónias criadas pelos tais fundamentalistas até são hoje em dia dos Estados mais progressistas (como nota o Eduardo Pinto, a Nova Inglaterra).

Já a região mais conservadora (o Sul) foi colonizada como uma simples operação comercial, com empresas patrocinadas pelo Estado britânico e com uma elite local suponho que largamente anglicana/"episcopal", não por inspiração de seitas religiosas.

Mas creio que o comentário do Filipe também é revelador de como é complicado ver as clivagens que havia nos países protestantes por olhos treinados no mundo católico - cá, entre os católicos, a oposição era entre liberais seculares e anti-clericais e conservadores religiosos e clericais, enquanto em grande parte do mundo protestante a oposição era de uma lado conservadores clericais e moderadamente religiosos, e do outro liberais fundamentalistas e anti-clericais (ou, pelo menos, anti-Igreja estabelecida e anti-hierarquia clerical).

Eduardo Pinto disse...

@Miguel Madeira

"Já a região mais conservadora (o Sul) foi colonizada como uma simples operação comercial, com empresas patrocinadas pelo Estado britânico e com uma elite local suponho que largamente anglicana/"episcopal", não por inspiração de seitas religiosas."



Muitos vieram dos Barbados aonde tinham plantações de cana de açucar exploradas com recurso a trabalho escravo. Açucar esse que no século XVIII constituia a maior fonte de receita do Império Britânico.



"enquanto em grande parte do mundo protestante a oposição era de uma lado conservadores clericais e moderadamente religiosos, e do outro liberais fundamentalistas e anti-clericais (ou, pelo menos, anti-Igreja estabelecida e anti-hierarquia clerical)."



Veja-se por exemplo Thomas Müntzer ou Gerrard Winstanley.

Joaquim de Freitas disse...

"Mas se eu sugiro que os impostos são a fundação da civilização e que nos países onde há mais impostos, há menos desigualdades e mais redes de segurança, e neles as pessoas são mais felizes e menos violentas... perco-os instantaneamente. Os olhos deles perdem a vida: há um bloqueio emocional generalizado na minha sala de aula e os cérebros dos meus alunos apagam-se todos ao mesmo tempo."

Este longo parágrafo é "delicioso"! Como seria possível ser de outra maneira quando vemos o combate dos Republicanos contra Obama e a "solidariedade" necessária perante a doença nas classes pobres?

Se na catedral de St.Patrick incitam aos dons à igreja ( sem esquecer de os declarar ao Estado, because os impostos !), isso não significa outra coisa que um "negócio" entre a "alma" que é preciso contentar, com o menor custo possível, e a imagem "caridosa" que passa bem na sociedade. Enquanto que é de justiça que os mais pobres precisam.

A América foi construída sobre um principio de violência como solução para a implantação inicial num território que pertencia a outros, e para resolver os problemas na sociedade na vida do dia a dia. E continua hoje. E quando a América investe algures é sempre com um objectivo : os seus próprios interesses.