Acabei de ler recentemente «O Capital no séc XXI», livro que recomendo vivamente. A proposta do livro é ambiciosa: explicar as dinâmicas subjacentes à acumulação e distribuição de capital, a evolução de longo-prazo da desigualdade, a concentração da riqueza e o crescimento económico.
Estes debates têm estado no coração do debate político, mas os contributos da ciência económica foram até recentemente escassos (às vezes erróneos) por falta de dados históricos suficientes, ferramentas estatísticas para os analisar, e uma teoria com eles compatível.
É isto que o trabalho de Thomas Piketty vem mudar: à convicção mais ou menos assumida entre os economistas de que proporção do PIB para o factor trabalho (1 menos alfa) é aproximadamente constante no longo prazo, Piketty revela dados empíricos que mostram alterações profundas neste valor. Nas décadas que se seguiram às guerras mundiais, os países desenvolvidos viram as desigualdades diminuir ou estabilizar, e a aparente compatibilidade entre a economia de mercado e essa evolução da distribuição da riqueza levou a teoria económica - que tanto se desenvolveu nesses anos - a explicar tal compatibilidade, sem que existisse a perspectiva histórica para compreender que esses anos eram a excepção e não a regra. Thomas Piketty não só apresenta os dados que demonstram o carácter excepcional da evolução da distribuição da riqueza durante esses anos, como também desenvolve uma teoria que explica perfeitamente porque é que assim foi, e porque que é que esses anos foram a excepção e não a regra.
Efectivamente a economia de mercado conduziu a sociedades tão desiguais e tão pouco meritocráticas como as que a Europa já conheceu durante os séculos XVIII, XIX e início do século XX. Não admira, portanto, que nos países desenvolvidos as desigualdades estejam a aumentar, a mobilidade social a diminuir, e os "empreendedores" se vão transformando gradualmente em "rentistas". A teoria explica-o, os dados empíricos comprovam-no.
O livro não precisaria das cerca de 700 páginas para expor os dados e a teoria que os explica. Poucas dezenas seriam suficientes. Mas sendo a tese tão inovadora, e algo inconveniente, existe uma preocupação de que a mesma seja inatacável. Piketty faz um grande esforço para explicar cada passo, cada assumpção, e a antecipar cada crítica.
Na realidade, todas as vezes que li uma crítica ao livro de Piketty, tenho vontade de recomendar a leitura desta ou daquela página onde essa crítica foi antecipada e magistralmente refutada. Por exemplo, muitos alegam que Piketty falha ao não identificar como a criação de riqueza é hoje muito mais meritocrática do que era durante o século XIX, e até mencionam a lista Forbes e a quantidade de empreendedores que lá se encontram. Parecem não ter lido essa mesma observação no próprio livro, e até dados bem mais relevantes no mesmo sentido, e sem tantas debilidades metodológicas. Piketty não afirma que vivemos actualmente num mundo menos meritocrático que o passado vitoriano (dedica capítulos inteiros a afirmar e explicar o oposto), mas sim que ele se está a tornar mais desigual e menos meritocrático de dia para dia.
O livro termina com uma proposta política. Na realidade, ele dividido em quatro partes, três delas do foro científico, e a última do foro político. A solidez científica das teses apresentadas é tal que o livro acaba por merecer os mais inesperados elogios: desde a Economist, a Vítor Gaspar, e toda a sorte de economistas ligados à direita, muitos são unânimes: o contributo científico do trabalho de Piketty é louvável, mas as suas propostas políticas seriam contra-producentes.
Se o diagnóstico não estivesse tão bem fundamentado, certamente todos o recusariam. Não sendo o caso, muitos preferem aceitar o diagnóstico, desde que não se procure qualquer forma de tratamento. Ou às vezes dizem-se umas palavras bonitas sobre a magia da globalização e sobre como tudo correrá bem, ao arrepio daquilo que o livro demonstra com clareza.
Para mim, pelo contrário, a proposta de Piketty pareceu-me tão interessante como o resto do livro. As vantagens do imposto sobre o património (muito reduzido e progressivo) proposto por Piketty vão muito além do contributo para impedir as desigualdades extremas a que a economia de mercado pode conduzir (os impostos sobre o rendimento, mesmo progressivos, parecem atrasar a dinâmica descrita, mas não estancá-la): eles também promovem o empreendedorismo face ao "rentismo".
Estou convencido que esta pode ser a ferramenta mais importante para combater as desigualdades no século XXI: pela sua elegância e simplicidade, pela sua eficácia, pelos menores efeitos perniciosos que qualquer alternativa comparável, e pelo respeito intelectual que inspira mesmo nos seus detractores mais aguerridos, a proposta de Piketty pode realmente ser a pedra basilar de um programa progressista para o futuro.
Estes debates têm estado no coração do debate político, mas os contributos da ciência económica foram até recentemente escassos (às vezes erróneos) por falta de dados históricos suficientes, ferramentas estatísticas para os analisar, e uma teoria com eles compatível.
É isto que o trabalho de Thomas Piketty vem mudar: à convicção mais ou menos assumida entre os economistas de que proporção do PIB para o factor trabalho (1 menos alfa) é aproximadamente constante no longo prazo, Piketty revela dados empíricos que mostram alterações profundas neste valor. Nas décadas que se seguiram às guerras mundiais, os países desenvolvidos viram as desigualdades diminuir ou estabilizar, e a aparente compatibilidade entre a economia de mercado e essa evolução da distribuição da riqueza levou a teoria económica - que tanto se desenvolveu nesses anos - a explicar tal compatibilidade, sem que existisse a perspectiva histórica para compreender que esses anos eram a excepção e não a regra. Thomas Piketty não só apresenta os dados que demonstram o carácter excepcional da evolução da distribuição da riqueza durante esses anos, como também desenvolve uma teoria que explica perfeitamente porque é que assim foi, e porque que é que esses anos foram a excepção e não a regra.
Efectivamente a economia de mercado conduziu a sociedades tão desiguais e tão pouco meritocráticas como as que a Europa já conheceu durante os séculos XVIII, XIX e início do século XX. Não admira, portanto, que nos países desenvolvidos as desigualdades estejam a aumentar, a mobilidade social a diminuir, e os "empreendedores" se vão transformando gradualmente em "rentistas". A teoria explica-o, os dados empíricos comprovam-no.
O livro não precisaria das cerca de 700 páginas para expor os dados e a teoria que os explica. Poucas dezenas seriam suficientes. Mas sendo a tese tão inovadora, e algo inconveniente, existe uma preocupação de que a mesma seja inatacável. Piketty faz um grande esforço para explicar cada passo, cada assumpção, e a antecipar cada crítica.
Na realidade, todas as vezes que li uma crítica ao livro de Piketty, tenho vontade de recomendar a leitura desta ou daquela página onde essa crítica foi antecipada e magistralmente refutada. Por exemplo, muitos alegam que Piketty falha ao não identificar como a criação de riqueza é hoje muito mais meritocrática do que era durante o século XIX, e até mencionam a lista Forbes e a quantidade de empreendedores que lá se encontram. Parecem não ter lido essa mesma observação no próprio livro, e até dados bem mais relevantes no mesmo sentido, e sem tantas debilidades metodológicas. Piketty não afirma que vivemos actualmente num mundo menos meritocrático que o passado vitoriano (dedica capítulos inteiros a afirmar e explicar o oposto), mas sim que ele se está a tornar mais desigual e menos meritocrático de dia para dia.
O livro termina com uma proposta política. Na realidade, ele dividido em quatro partes, três delas do foro científico, e a última do foro político. A solidez científica das teses apresentadas é tal que o livro acaba por merecer os mais inesperados elogios: desde a Economist, a Vítor Gaspar, e toda a sorte de economistas ligados à direita, muitos são unânimes: o contributo científico do trabalho de Piketty é louvável, mas as suas propostas políticas seriam contra-producentes.
Se o diagnóstico não estivesse tão bem fundamentado, certamente todos o recusariam. Não sendo o caso, muitos preferem aceitar o diagnóstico, desde que não se procure qualquer forma de tratamento. Ou às vezes dizem-se umas palavras bonitas sobre a magia da globalização e sobre como tudo correrá bem, ao arrepio daquilo que o livro demonstra com clareza.
Para mim, pelo contrário, a proposta de Piketty pareceu-me tão interessante como o resto do livro. As vantagens do imposto sobre o património (muito reduzido e progressivo) proposto por Piketty vão muito além do contributo para impedir as desigualdades extremas a que a economia de mercado pode conduzir (os impostos sobre o rendimento, mesmo progressivos, parecem atrasar a dinâmica descrita, mas não estancá-la): eles também promovem o empreendedorismo face ao "rentismo".
Estou convencido que esta pode ser a ferramenta mais importante para combater as desigualdades no século XXI: pela sua elegância e simplicidade, pela sua eficácia, pelos menores efeitos perniciosos que qualquer alternativa comparável, e pelo respeito intelectual que inspira mesmo nos seus detractores mais aguerridos, a proposta de Piketty pode realmente ser a pedra basilar de um programa progressista para o futuro.
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