quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A cura pelo cura

  • «O novo acordo de colaboração entre o Ministério da Saúde e a Igreja Católica, no sentido de regular a assistência religiosa nos hospitais, levanta sérias preocupações a dois níveis. Por um lado, porque se aparenta justificar numa suposta eficácia terapêutica que terá a participação de padres católicos no processo de recobro. Por outro lado porque representa uma intromissão inaceitável do Estado nesta matéria tão pessoal que é a religião.
    A Sra. Ministra da saúde Ana Jorge anunciou em Fátima que o acordo com a igreja católica se justificava porque a saúde «não é só o tratamento físico», mas a «espiritualidade entra neste campo global»(1). No entanto, mesmo que o bem estar dos doentes não resulte só da terapia e da medicação, não é verdade que exija uma espiritualidade no sentido de crença religiosa ou dependência do sacerdócio. Muitos doentes encontrarão todo o conforto e consolo nos seus familiares, nos seus amigos e na competência e empenho dos técnicos de saúde que os acompanham. A religião não é uma componente necessária da terapia.
    Além disso, a espiritualidade religiosa não é necessariamente o catolicismo. Só se justificaria por razões médicas celebrar este acordo específico com a Igreja Católica se houvesse evidências concretas que esta religião não só é eficaz no recobro dos pacientes como é mais eficaz que as outras religiões que não estão cobertas por este acordo. Não há indícios que assim seja.
    Quanto ao direito de acompanhamento religioso este acordo tenta resolver um problema inexistente. O direito de receber apoio espiritual já está garantido nas visitas hospitalares, nas quais o doente pode receber familiares, amigos ou sacerdotes da sua religião sempre que tais visitas não comprometam a sua recuperação. Por isso o que parece estar em causa neste acordo não é o direito à assistência religiosa mas sim quem financiará este encargo, se a Igreja Católica ou se o contribuinte. O que põe em causa outros direitos do doente.
    Põe em causa o direito do doente, enquanto doente, que o Ministério da Saúde promova uma utilização eficiente dos recursos de que dispõe. E estes não são tão abundantes que o salário de um capelão não faça falta para equipamento, técnicos de apoio, de enfermagem ou médicos. Põe em causa o direito do doente, enquanto crente, que o Estado não se intrometa na religião nem favoreça umas em detrimento de outras. E põe em causa o direito do doente, enquanto contribuinte, que o seu contributo para o Estado seja usado com justiça para ajudar aqueles que mais precisam em vez de subsidiar a Igreja Católica, uma das organizações mais opulentas de Portugal
    .» (Do Diário Ateísta)

15 comentários :

Zeca Portuga disse...

Hoje não posso demorar-me em comentários. Mas, porque hoje se comemora o dia dos Direitos Humanos, vale a pena lembrar o seguinte:

Dec. Univ. dos Direitos do Homem

"Artigo 18.º
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos."

Não se consta que os doentes não possam.

De resto, a afirmação, gratuitamente falsa de que "a religião não é uma componente necessária da terapia", toma um sentido de absurda e até de alarve!

Mas hoje, honestamente, não posso descutir.

João Vasco disse...

Zeca:

«"Artigo 18.º [...]»

Creio que não leu o texto com muita atenção. Aquilo que está escrito é:

«Quanto ao direito de acompanhamento religioso este acordo tenta resolver um problema inexistente. O direito de receber apoio espiritual já está garantido nas visitas hospitalares, nas quais o doente pode receber familiares, amigos ou sacerdotes da sua religião sempre que tais visitas não comprometam a sua recuperação. Por isso o que parece estar em causa neste acordo não é o direito à assistência religiosa mas sim quem financiará este encargo, se a Igreja Católica ou se o contribuinte.»


A afirmação «"a religião não é uma componente necessária da terapia"» não só não é falsa como está comprovada.
Aquilo que é gratuita é a tentativa frustrada de desmentir e ridicularizar essa afirmação sem apresentar qualquer tipo de fundamentação.
Tenta-se compensar a falta de argumentos com o tom menos próprio, mas os insultos - por gratuitos, nem que mais não seja - não colhem.

JDC disse...

Caro João Vasco:

E no caso de morte iminente? O doente também tem que esperar pela hora da visita, se quiser receber apoio espiritual?

Quanto à comprovação de que a religião não tem qualquer valor terapêutico, está correcto se estivermos a falar de um ateu. Mas e se a pessoa for um crente devoto, que vai todas as semanas à missa, participa nas actividades paroquiais, dá catequese, etc? Aí também não tem qualquer valor terapêutico?

Zeca Portuga disse...

Vale a pena ser sério e dizer a verdade:

1 – O que os incomoda é a presença do padre no Hospital e não a questão do financiamento.
De resto, também esses doentes são cidadãos contribuintes e têm o direito de ser favoráveis à sua utilização de forma decente e honesta, como neste caso. Se a questão for a do financiamento, também eu, monárquico de convicção, tenho o direito de exigir que a república não gaste o meu dinheiro mal gasto: que os partidos vivam à sua custa e nunca com o financiamento dos meus impostos, que o deputados que faltam não recebam o seu ordenado, ou que os clubes de futebol não tenham benefícios que advêm dos meus impostos (ou em seu prejuízo) … etc.
Aliás, grande parte do acompanhamento a doentes é feita por leigos voluntários.

2 – “A afirmação «"a religião não é uma componente necessária da terapia"» não só não é falsa como está comprovada”.
Não é rigorosamente verdade.
Não existe nenhum estudo sério sobre o assunto. Vejo muitas vezes, mas falsamente, citado um hipotético estudo sobre o assunto.
A esse posso contrapor centenas de casos (e estudos de caso) que indicam exactamente o contrário.

Recordo-me de um estudo que fiz há uns anos, para demonstrar a invalidade da estatística, quando eivada de erros de método.

O estudo consistia em demonstrar duas coisas:
1 – Os alunos que frequentam educação pré-primária têm piores resultados escolares;
2 – Os resultados dos alunos do ensino secundário (7º a 9º ano), do Alentejo tinham melhores resultados que os de Lisboa.

Ilustrei isso largamente com muitos dados estatísticos reais… Mas, nem eu acreditava nisso.

Eis a questão de fundo: invocar medições estatísticas como estudos sérios… é uma ignóbil falsidade.

João Vasco disse...

Zeca Portuga:

1- Mas aquilo que acredita que nos incomoda é irrelevante. Se me incomodasse o cheiro dos padres eu tinha mais é que aguentar.

Aquilo que está em discussão é a questão do financiamento. E tal como diz, apenas queremos que a sua utilização seja decente e honesta, e que portanto não se ande a subsidiar a religião de uns, sob pena de desrespeitar a fronteira entre estado e Igreja.

Quanto a acreditar que a república não deve gastar o seu dinheiro mal gasto, estamos todos de acordo. Se X é mal gasto, e o Zeca mostrar que é pior gasto que as alternativas, concordaremos consigo em X.

Aquilo que mostramos é que isto é um exemplo de dinheiro mal gasto. Se o Zeca defende que há outros, tudo bem. Concordo a 100% naquilo que referiu em relação aos clubes, só para dar um exemplo.


2- Ah. O Zeca quer contrapor a estudos estatísticos que avaliam centenas de casos nas mesma condições, casos individuais e estudos de caso.
Assim se percebe que a discussão está enviesada à partida...


Depois, essa forma de demonstrar a invalidade da estatística é curiosa.
Se eu for para a porta da sede do PSD e fizer uma sondagem, e os resultados saírem disparatados, poderei "demonstrar" que as sondagens não funcionam, ou que palpites sem fundamentação e casos escolhidos sobre amigos meus valem mais que as sondagens publicadas...

Ou então demonstro que tenho um cepticismo injustificado nas sondagens, apenas porque não gosto dos seus resultados...

João Vasco disse...

JDC:

«E no caso de morte iminente?»

Essa é uma pergunta muito interessante, que aponta para um problema mais geral.
Será que não deveriam ser permitidas visitas em certos casos de morte iminente (quando não pudesse prejudicar de alguma forma o trabalho dos médicos)?


«Mas e se a pessoa for um crente devoto, que vai todas as semanas à missa, participa nas actividades paroquiais, dá catequese, etc? Aí também não tem qualquer valor terapêutico?»

Esta é uma pergunta interessante à qual irei responder sem referência a nenhum estudo científico e apenas pela minha perspectiva da realidade, baseada na minha limitada experiência de vida. É uma sugestão que lanço para o ar.

Eu não sei até que ponto pode ter valor terapeutico o facto de alguém se sentir acompanhado pelos membros da sua comunidade - amigos, familiares, etc...
Acredito que há casos em que isso é irrelevante, praticamente não existem casos em que isso seja prejudicial, e podem existir casos em que isso pode ajudar.

Nesse sentido, caso o doente visse o sacerdote como membro da sua comunidade próxima, sentir o seu acompanhamento seria semelhante ao de sentir o acompanhamento de um amigo.

Mas está fora de questão que o estado vá pagar aos amigos de alguém para visitarem uma determinada pessoa. O dinheiro é melhor gasto em médicos, enfermeiros, medicamentos e equipamento, que ainda há escassez.

Portanto, seria pior pagar a alguém que eventualmente poderia ser visto como um amigo, mas poderia até ser visto de forma oposta, ainda para mais beneficiando uns face a outros.


Mas notemos que isto não passa de especulação minha. Pode ser que ao contrário daquilo que afirmo, não existisse em nenhum caso qualquer efeito positivo para a saúde.
Mas repito a conclusão, mesmo que exista um efeito ligeiro, subornar "amigos" para visitarem o paciente parace ser menos eficiente que investir o dinheiro directamente na cura (mais enfermeiros, melhor equipamento, mais exames, evitar falta de remédios, etc...).

Ricardo Alves disse...

«Zeca Portuga»,
honestamente, incomoda-me que um padre se possa aproximar da minha cama de hospital quando eu estiver enfraquecido pela doença ou pelos tratamentos. É que posso não estar em condições para dar a resposta adequada.

E sim, também me incomoda o financiamento da assistência religiosa.

João Vasco disse...

Ricardo,

Mas pelo que percebi só têm autorização para se aproximar se previamente tiveres declarado que era essa a tua vontade. Acho que isso é uma alteração que faz muito sentido, se não percebi mal.

Sei que antes não era assim, e o erro em que assim não fosse é tão óbvio que não creio estar em discussão.

Zeca Portuga disse...

Eu seria completamente contra, se não ficasse salvaguardada essa situação: quem não quer, não é obrigado.

Por mero acaso, conheço muitos casos de pessoas que mudaram de opinião, precisamente no hospital. Mas que seja sempre salvaguardada a vontade do doente.

Aliás, na situação actual, entendo o seguinte:

1 - qualquer padre ou leigo que se dirija (na qualidade de ministro religioso) a um ateu, contra sua vontade, deve ser repreendido e se for maltratado, está tudo desulpado;

2 - Em termos religiosos, é condenável que um "ministro de Cristo", nessa qualidade, dirija a palavra a um anti-cristão.

João Vasco disse...

Zeca:

Mas, tal como foi escrito no texto e no meu comentário anterior, isso não está em discussão. Que um doente não deve ver um sacerdote contra a sua vontade é bastante óbvio, pois não deve ser obrigado a ver ninguém contra a sua vontade.

Aquilo que está em jogo é diferente. Tal como o estado não paga aos meus amigos para me irem visitar, se estiver doente, por muito que isso possa ajudar na recuperação - que creio não ser um facto comprovado, mesmo que acredite que aconteça nalguns casos - então também não deve pagar aos seus amigos, mesmo que os "amigos" sejam os sacerdotes da sua religião. E porque é que não deve pagar aos amigos de ninguém? Porque o dinheiro é melhor usado a colmatar a escassez de pessoal, meios e equipamento.

Zeca Portuga disse...

Vasco:
Das suas palavras, deduzo que voc~e não tenha a minima noção do efeito do conforto espiritual, para um crente de uma qualquer religião.

Muitas pessoas tem mais vontade de falar com o padre do que todos os médicos ou familiares. Há pessoas cuja ansiedade e o sentimento de privação podem levar a extremos... o efeito da presença do conforto espiritual supera todas as capacidades dos psicologos.

Há coisas que voc~e não imagina. Por exemplo: tenho um amigo jornalista que foi autorizado a fazer um trabalho de reportagem dentro de um hospital e a queixa que mais ouviu foi contra a televisão: "porque razão não transmitem a missa numa hora melhor?"

Se voc~e imagina que um padre necessita do dinheiro do estado para alguma coisa, está redondamente engando.

Porém, trata-se de um serviço á comunidade de que todos podem usufruir, se quiserem. Como tal deve ser pago.

Estes dias assistia a um documentário na RTL, e notei, com certo agrado que o hospital pediátrico em causa tinha crucifixos na parede... porque será?

Ricardo Alves disse...

João Vasco,
de acordo com a lei de assistência religiosa em vigor, um padre (católico) pode aproximar-se de um doente, independentemente de este ter requerido a sua presença ou não. E é pago pelo Estado para isso.

Os projectos em discussão parecem fazer depender a presença do sacerdote do pedido do doente, o que é um passo no sentido certo.

«Zeca Portuga»,
se a presença de um sacerdote é assim tão indispensável para alguns doentes, podem pagar-lhe directamente. Ou organizarem-se para a comunidade religiosa a que pertencem pagar a sacerdotes que vão de hospital em hospital prestando esse serviço. Meter o Estado ao barulho é perverter a religião...

Zeca Portuga disse...

Ricardo:

Não posso concordar consigo. Ao estado compete "fornecer" ao doente tudo aquilo de que ele precisa - também lhe "fornece" um psicologo, s ele necessitar. E, se quer a minha opinião, nestas questões, a diferença entre um psicologo um padre é quase irrelevante, com a diferença da maior confiança e aceitação do padre.

Ricardo Alves disse...

«Zeca Portuga»,
se ao Estado compete fornecer tudo aquilo de que o doente necessita, então ele que pague a deslocação dos meus familiares e amigos ao hospital, um computador portátil para usar enquanto estiver no hospital, etc, etc, etc.

Não há orçamento, «Zeca Portuga». Não há.

Zeca Portuga disse...

Ricardo:

Relativamente aos familiares, não concordo - a familia tem obrigações.

No que respeita ao computador, não é novidade. Muitos hospitais, sobre tudo na pediatria, t~em computadores.
O computador é algo de pessoal. é um bem e não deve ser fornecido pelo Hospital (tal como o telemóvel, por exemplo). Mas, relativamente aos serviços, a Internet deveria ser fornecida gratuitamente em todos os Hospitais.

E, se não é, não e por falta de orçamento!...