domingo, 6 de novembro de 2005

O «contrato presidencial» de Manuel Alegre

«Candidato-me a Presidente da República por decisão pessoal, no espírito, aliás, da Constituição. Sem apoios de aparelhos partidários. Livremente. Sou um homem da esquerda dos valores e dirijo-me a todos os portugueses que acreditam na Pátria, na liberdade e na democracia.
(...)
Porque há duas maneiras de entender a identidade de um povo: a identidade-raízes e a identidade-projecto. Portugal tem uma fortíssima identidade histórico-cultural, mas está debilitado quanto à mobilização em torno de uma vontade colectiva.
(...)
Defender a igualdade de homens e mulheres é para mim uma prioridade da organização social.
Candidato-me em defesa de uma sociedade cosmopolita e de inclusão, que saiba conjugar diversidade e cidadania, prevenindo a segmentação social e a discriminação racial.
(...)
Será que a Constituição está a ser cumprida quando há dois milhões de portugueses em estado de pobreza, mais de meio milhão de desempregados, tantas famílias sem habitação condigna, tantos atentados ao meio ambiente, tanto insucesso e abandono escolar, tantas assimetrias regionais e desequilíbrios sociais?
(...)
Quero deixar clara a minha posição: não há modernização do sistema de ensino sem escola pública de qualidade.
(...)
Neste momento sensível de crise da construção europeia, penso que um país como Portugal deve procurar estar no núcleo duro dos centros de decisão europeus, impedindo que a UE seja regida por um directório de grandes potências. Não devemos hesitar em defender os interesses nacionais. Nem arrogância, nem subserviência perante os poderes europeus. A partilha de soberanias em nada afecta, antes reforça, a identidade nacional. Não me conformo com uma visão da Europa que a reduza a um vasto mercado.
(...)
O tratado constitucional europeu deve ser refeito ou revisto de modo a simplificá-lo e permitir submetê-lo a um referendo europeu novo e geral.
(...)
Temos de tornar claro que não interpretamos o extremismo religioso como fazendo parte da cultura islâmica, com a qual temos laços de proximidade que devemos aprofundar.
(...)»

1 comentário :

Anónimo disse...

FALA DE UM VIAJANTE DE TERCEIRA CLASSE

Venho de longe. Meu nome?
Meu nome é terra. Está escrito
Na palma da minha mão.
Meu tempo de não ter fome
Foi o tempo de eu mamar.
Aos seis meses era um homem:
Davam-me sopas de vinho
E eu ficava na canastra
Ficava quieto a dormir.
Minha mãe não tinha tempo
Para ter tempo comigo:
Dava-me sopas de vinho.
Talvez por isso este fogo
Que sempre tive no peito
Que aos seis meses eu ficava
Dormindo podre de bêbado.

E assim cresci por acaso,
Minha escola foram campos
Ribeiros árvores montes.
Meus livros foram os ninhos
Lagartos cobras besouros.
Aprendi tudo nas ervas
Aprendi tudo nos bichos.
Meu professor foi o vento.
Nunca soube ler meu nome.
Para quê? Meu nome é terra.
Está escrito na minha mão.

Não perdi nada que nunca
Tive nada que perder.
Há quem diga que perdi
Só o futuro. É possível.
Mas eu creio que nasci
Com tudo perdido antes.
Adiante. Desde cedo
Trabalhei por conta alheia
Sachei a terra mondei
Dei à terra o meu suor
Lavrei plantei. Não colhi.
Em casa levei porrada
Comi boroa dura
Chorei lágrimas de raiva.
Não que meu pai fosse mau.
Era a terra que comia
Seu coração sua vida.

"Trabalhar de sol a sol?
- queixava-se ele - para quê
Se são os outros que comem
tudo o que a gente semeia?
Na colheita que nos roubam
Roubam a vida de um homem.
Meu nome meu filho é terra:
Está escrito na minha mão".
E às vezes dizia: "Não!
Antes a morte ou a guerra
Do que ser escravo da terra
Que não é de quem trabalha".

Um dia meu pai matou-se.
Abriu os pulsos rasgou-os
com a ponta da navalha.
E o sangue correu correu.
Gravou na terra a vermelho
Esse nome que meu pai
Trazia escrito na mão.

Assim fiquei de repente
A ser o homem da casa
Com minha mãe meus irmãos
Que por essa altura andavam
Na mesma escola em que andei.

Foi num Domingo de Ramos
Que pela primeira vez
Eu soube o que era mulher.
E foi meu leito de núpcias
Um chão de pedra e carqueja.
(porém com penas e rosas
No corpo da minha amada).
E foi então que aprendi
Que morrer deve ser isto:
Uma vertigem uma queda
Até ao centro da terra.

Assim cresci. Fiz um filho.
Dei porrada na mulher
Que meu amor era raiva.
Não tinha beijos na boca
Não tinha festas nos dedos.
Estava seco seco seco.
A terra levava tudo.
Primeiro foi minha mãe
Mais tarde minha madrasta
Minha amante minha amada.
Mas a terra é uma rameira
A terra sugou meu sangue
A terra comeu meus dedos
Meu coração minha vida.
Fiquei seco seco seco.

Cada ano fiz um filho
Dei porrada na mulher
E na taberna voltei
A ter um fogo no peito
Como quando era menino.
Porém já meu coração
Não voava como dantes
Quando eu tinha no meu peito
Uma estrela um vento um pássaro.
Era raiva o que sentia.
E não sei se era do vinho
Se da raiva que sentia
Mas muitas vezes olhando
A palma da minha mão
Vi a sombra duma estrela
Vi o nome de meu pai
Escrito com sangue vermelho
Nas palmas da minha mão.

Trinta e sete anos correram
E em cada dia morri
Cada dia que vivi.
Enchi celeiros adegas.
Muitos comboios levavam
O trigo das minhas mãos.
Alguns dentes mastigavam
A farinha do meu corpo.
Algumas bocas bebiam
O vinho que era meu sangue.
Fiquei seco seco seco.

Até que um dia me disse:
"Trabalhar de sol a sol
Quando são outros que comem
O pão que a gente semeia?
Vou-me embora desta terra".

Vinham notícias de França:
"Cá a gente tem trabalho
Tem sindicatos bières
Vacances securité.
Deixa a terra. Vem-te embora!"

Então um dia levei
Minha mulher para a cama.
Poucas palavras lhe disse.
Apenas disse: "Mulher
Eu quero um filho que seja
O homem que nunca fui.
É meu sangue que te deixo
Minha vida que te dou.
Que ele cresça no teu corpo
Como a flor cresce na terra
Porque toda a minha vida
Se perdeu - mulher - na terra.
Que seja eu próprio o teu filho".

De novo na minha boca
Nasceram beijos. De novo
Meus dedos tiveram festas.
E então de novo senti
Esse modo de morrer:
Uma vertigem una queda
Até ao centro da terra.

Quando veio a madrugada
Eu disse: "Mulher adeus.
Vou-me embora para França".

E quando o dia chegou
Já estava longe de casa.

"Adeus prados e montanhas
rios árvores adeus.
Aqui fica minha vida.
Eu por mim vou seco seco".

E não sei se era saudade
Se eram lágrimas nos olhos
Mas de repente ao olhar
Eu vi os campos em volta
Cheios de espigas vermelhas:
Era o meu sangue florindo
Gota a gota em cada espiga.

Meu nome? Meu nome é terra.
Está escrito na minha mão.

Manuel Alegre.
(Retirado de uma edição clandestina de "O Canto e as Armas".
Início da década de 70).