quarta-feira, 7 de março de 2007

O salazarismo foi um fascismo

No Kontratempos, o Tiago Barbosa Ribeiro escreveu um espantoso artigo onde defende que o salazarismo não foi um fascismo. (Felizmente, existem dois excelentes comentários em que os seus argumentos são criticados.) Algumas breves achegas.
  1. «O salazarismo afastou-se do tipo ideal-fascista que emergiu no âmago da modernidade europeia». Do «ideal» teórico, todas as concretizações práticas se afastaram, até a italiana. De resto, houve variações nacionais, resultantes das circunstâncias da chegada ao poder, das características de cada país, ou dos objectivos imediatos. «Tipo ideal», só nos livros.
  2. «Globalmente identificado no campo político-ideológico do movimento fascista europeu, o salazarismo diferencia-se daquele pelas suas causalidades sociais mas também pela sua própria natureza política e ideológica». Se fosse assim, Tiago Barbosa Ribeiro teria encontrado diferenças de natureza. Pelo contrário, e como nota um comentador, só encontra diferenças de grau.
  3. «Só isso explica a sobrevivência do Estado Novo depois da derrota do Eixo em 1945, num conflito mundial em que se manteve virtualmente neutro». A «sobrevivência» resultou exactamente da neutralidade (e também da cedência das Lajes a partir de 1943). Qual é o mistério?
  4. «[O regime] reprime a oposição, mas não a suprime». Não é bem assim. Os grupos anarquistas foram rigorosamente suprimidos, apesar de alguns militantes se terem refugiado no PCP (que tinha uma organização centralizada e autoritária mais apta para resistir à repressão). As organizações populares republicanas foram também suprimidas, por vezes, como em Fevereiro de 1927, em frente a pelotões de fuzilamento. Outros, foram deportados. O facto de muita gente equacionar resistência ao Estado Novo e luta comunista, deveria levar Tiago Barbosa Ribeiro a interrogar-se sobre o que aconteceu às outras oposições que existiam organizadas em 1926. A resposta é que foram mesmo suprimidas.
  5. «A matriz católica, que restaurou as forças tradicionalistas e permitiu a neutralização das veleidades totalitárias do regime, diferenciando o autoritarismo nacionalista conservador do Estado Novo dos nacionalismos modernizantes da Itália e da Alemanha.» De acordo que o regime era de matriz católica, mas não compreendo porque esse facto o torna menos totalitário. Entre as manifestações de Fátima e as de Nuremberga, o resultado, em termos de unificação e mobilização social, será assim tão diferente?
  6. «O exército português também nunca se aproximou do fascínio militarista que era exercido pelo poderio da Wehrmacht nazi ou do Exército Vermelho comunista.» Salazar não promovia o «fascínio militarista» porque não tinha ambições de expansionismo territorial, na Europa ou fora dela. E não as tinha porque o Estado Novo herdou um império e queria preservá-lo, ao contrário dos regimes da Alemanha e da Itália, que não herdaram e precisavam de conquistar.
  7. «A hibridez constitucional, num regime que rejeita a democracia e formula o autoritarismo de Estado mas dota-o de princípios de representação democrática». «Princípios de representação democrática», num regime em que a oposição nunca elegeu um deputado, e onde os sindicatos eram «oficiais» ou clandestinos? Francamente. Um pouco mais e tentam convencer-nos de que o Estado Novo era uma democracia liberal...

9 comentários :

cãorafeiro disse...

PARTICULARMENTE HILARIANTE o argumento da hibridez constitucional...

como se a constituição de 1933 valesse alguma coisa.

Miguel Madeira disse...

"Não foi o partido que tomou em mãos o poder nem o partido existiu como estrutura clássica de enquadramento"

"A militarização e o milicianismo foram um valor formativo do Estado Novo, mas a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa nunca accionaram princípios de violência paramilitar como as brutais Secções de Segurança alemãs ou a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional em Itália."

"Desejando-se popular, o regime não assentou a sua força em massas politicamente activas ou fanatizadas, procurando antes inverter a mobilização que existiu durante o período da Primeira República"

Esses 3 pontos não serão suficientes para refutar a tese que Salazar foi fascista? Afinal, penso que a especificidade do "fascismo" (tal como surgiu em Itália) face à direita autoritária mais "clássica" era o seu carácter populista e pseudo-"revolucionário", e é exactamente isso que falta no salazarismo.

Ricardo Alves disse...

Miguel Madeira,
só reconheço validade ao primeiro ponto. E também é válido para a Espanha. Em Portugal, o «take-over» de Salazar é organizado a partir de um grupo católico conservador, por co-optação, dentro das forças que fizeram o 29 de Maio.

O segundo ponto está errado: a Legião espancava opositores sempre que havia eleições. E atacava com violência os locais onde se organizava a oposição (ou quando era essa a opinião dos legionários, o que mostra o grau de arbitrariedade).

Mesmo a parte «movimentista» e «pseudo-revolucionária» dos fascismos tem eco no salazarismo. Durante muito tempo, o 28 de Maio foi promovido como «a Revolução Nacional». E Salazar dizia que «a Revolução continua enquanto houver um português com fome ou sem casa» (não me recordo se foram estas as palavras exactas, mas era este o sentido).

Não, as diferenças essenciais estão na forma como Salazar chegou ao poder, e nas circunstâncias específicas de cada país (grau de industrialização, ter ou não colónias...). O resto são diferenças de enfase ou de estilo pessoal.

dorean paxorales disse...

Ricardo, falas nos anarquistas e PC mas esqueces de mencionar que Salazar "suprimiu" os camisas azuis de Rolão Preto, o único movimento a reclamar-se fascista em Portugal. Foi de propósito?

Ricardo Alves disse...

Não, foi esquecimento. É um caso bastante diferente: tiveram existência legal, faziam reuniões públicas, etc. Não eram oposição ao regime. Eram uma facção do regime que, na sua fase inicial, tentava afirmar-se contra a ascensão de Salazar. Era fascista? Os monárquicos integralistas ainda hoje o reclamam como seu. A maioria do seu movimento aderiu ao Estado Novo, onde foram integrados sem problemas.

dorean paxorales disse...

Hum... Não. O Movimento Nacional-Sindicalista foi fundado em 1932 precisamente para desafiar Salazar e já era um movimento fascista.
A tua confusão deve-se ao facto de Rolão Preto, o seu líder, ter tido contactos intermitentes com as vias democrática e fascista:

Primeiro colaborou com Gomes da Costa no golpe militar mas afastou-se quando o salazarismo subiu ao poder.
Depois, fundou o MSN com outros, desafiando o regime. Por terem recusado integrar o partido único do Estado Novo, o movimento foi ilegalizado por em 1933 (não houve integração nenhuma "sem problemas", nem tiveram grande existência legal).
Mais tarde, a oposição de Rolão Preto ao regime até continuou pela via "democrática", depois da Segunda Guerra, chegando a fazer parte da candidatura de Humberto Delgado à presidência (serviços de imprensa do MUD onde escreveu alguns dos discursos da campanha).

Nos entretantos, esteve preso e, deportado para Espanha, viveu na casa de Primo de Rivera, ajudando na redacção do programa político e ainda teve tempo para combater nessa guerra monstruosa ao lado da Falange.

Ainda teve tempo para presidir ao PPM em 1974 e ser condecorado a título póstumo por Mário Soares pelo "amor à liberdade"...

Confusos? Também eu.

dorean paxorales disse...

Eis o comentário provocado em Rolão Preto pela ascenção de Hitler ao poder, no seu jornal "A Revolução", n.º 276 (1/2/33):

«um dos grandes povos europeus sacode definitivamente o seu pesadelo democrata, enquanto um novo César sobe triunfante as escadas do Capitólio».

Anónimo disse...

A minha resposta aqui.

Ricardo Alves disse...

Dorean,
acho que a nossa confusão resulta das ideias confusas do personagem. ;)

Os teus factos estão essencialmente correctos (mas não baralhes o MUD, que existiu de 1945 a 1949, com a campanha de Humberto Delgado, uma década depois; Rolão Preto esteve em ambos mas são coisas distintas). A questão é o que fazer desses factos.

Rolão Preto foi monárquico integralista antes e depois de ser «fascista». Mesmo na fase fascista, chegou a «cozinhar» uma cruz suástica misturada com a cruz de «Cristo». Mas, nessa mesma época (anos 30), dizia-se «para além da democracia, do fascismo e do comunismo»(!).

Para mim, o essencial é que o seu movimento não foi reprimido pelo salazarismo. Foi tolerado, e quando cresceu demais dividiu-se e a maioria integrou-se no regime. O objectivo deles era tornarem-se o partido do regime, ou um dos partidos do regime, não era derrubarem o regime. Nesse sentido, disse e repito que eram uma facção do regime, e não da oposição ao regime.

Curiosamente, os integralistas ainda hoje dizem que ele não foi fascista, nem nos anos 30:

http://www.angelfire.com/pq/unica/il_frp_francisco_rolao_preto.htm

Uma biografia mais resumida:

http://www.arqnet.pt/portal/biografias/rolaopreto.html