sexta-feira, 2 de março de 2007

Moisés Espírito Santo sobre o recente referendo

«A Igreja Católica já não vinha a ter a influência que tivera outrora sobre os votos dos católicos, desistindo de entrar em lice. Agora foi o princípio da moral católica – imposta por lei a todos – que se afundou. Até porque, entre os que se dizem católicos e os que praticam de facto o catolicismo (entenda-se a prática dos 7 sacramentos «indispensáveis para a salvação» segundo a Igreja), a diferença é enorme: 80 % dos portugueses dizem-se católicos, enquanto apenas entre 15 a 20 % praticam. Isto quer dizer que a sociedade se vai autonomizando da moral e da dogmática católicas (sem deixar, eventualmente, de ser cristã).
(...)
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O conceito católico de família fundada numa união heterossexual e indissolúvel não é bíblico (a família bíblica era poligâmica, não era triangular e era patriarcal); nem é crística (Jesus nunca se referiu à organização familiar nem à sexualidade). A concepção católica de «família cristã» (triangular e indissolúvel) é posterior à Idade Média. Pretender estender a todo o universo, na modernidade, uma única concepção de família (casal indissolúvel, afectos restringidos a este casal e respectivos filhos, adopção dentro deste casal indissolúvel, etc.) é uma ilusão etnocêntrica e uma prepotência cultural (muito pouco cristã). Porque é que a Igreja se entrincheira aí? Porque é o único modelo familiar que garante a reprodução do catolicismo tradicional que, este, não necessita de conversão individual e se reproduz, exclusivamente, de pais para filhos, num meio familiar triangular e indissolúvel. Enquanto isto, o cristianismo original, evangélico ou protestante, é individualizante e alheio às pressões da organização afectiva familiar.
(...)
A sociedade portuguesa está preparada para aceitar toda a informação científica, sociológica e humanista. A Escola e os «média» também servem para isso. A percentagem de gente analfabeta e incapaz de perceber a informação já é diminuta. O problema é a manipulação moralista.
Mas há o princípio do «direito universal à felicidade» que é consensual. A investigação científica, a eutanásia e o casamento entre pessoas do mesmo sexo entram neste «direito universal à felicidade». A união gay choca contra o casamento tradicional? Mas o valor da virgindade das noivas também caducou e o direito ao divórcio (condenado pela Igreja) já é consensual. A Igreja Católica poderá excomungar o casamento gay mas fá-lo à revelia de Jesus Cristo que nunca se referiu ao casamento e à sexualidade, enquanto o sacramento católico do matrimónio («indispensável para a salvação» dos amantes e progenitores) data do séc. XII. Se as explicações científicas prevalecerem sobre a moral (que é um produto histórico e relativo), se se avançar o «direito de todos à felicidade» (sem prejuízo de ninguém) e se a sociologia do casamento for bem explicada, toda a sociedade aceitará essas reformas, quer a hierarquia eclesiástica queira ou não.
(...)
Nós sabemos que o eleitorado português nem sempre se tem regulou pela reflexão individual: seguia os chefes carismáticos, premiava a «imagem» em menosprezo dos méritos e das realizações, mas isso está a acabar. O «sim» ao aborto é o começo duma nova atitude, entre nós, de o eleitorado decidir pelo pragmatismo e não pelo carisma dos chefes tradicionais
(Moisés Espírito Santo em entrevista à Visão.)

2 comentários :

Pedro Magalhães disse...

«O «sim» ao aborto é o começo duma nova atitude, entre nós, de o eleitorado decidir pelo pragmatismo e não pelo carisma dos chefes tradicionais»

Esperemos que sim, esperemos sim...

Anónimo disse...

Como disse Vital Moreira, com a vitória do Sim no referendo é um enorme passo para que o Direito Canónico deixe de ser direito constitucional, que os retrógados percebam que as leis do estado não se confundem com as da igreja, espero que os proximos "combates", como casamento entre pessoas do mesmo sexo, adopção por estes, procriação medicamente assistida, entre outros venham rápido e sejam bem sucedidos, desenganem-se quem pensa que são assuntos "fracturantes" para a sociedade, pois isso é uma fraude, são sim assuntos que muita gente não quer debater para não ver outros diferentes deles terem a mesma liberdade!

Quanto à igreja católica, deixem de lhe ligar importância e de a frequentar que ela morre por si própria.