quinta-feira, 5 de março de 2009

A globalização da justiça

Quando o braço da justiça começa a ser suficientemente longo para passar por cima da soberania dos Estados, e é emitido, por um Tribunal internacional e em nome dos Direitos do Homem, um mandado de captura contra um Presidente em funções, deu-se um passo significativo para estabelecer uma ordem mundial baseada na justiça. Começa a poder imaginar-se o dia em que os direitos de cada indivíduo deixarão de estar dependentes do capricho do tirano local, e serão garantidos em qualquer parte do mundo.

Pode imaginar-se. Mas só isso.

Porque, evidentemente, um poder jurídico internacional serve de pouco sem uma polícia internacional. Bashir só será detido se for apanhado num dos Estados que reconhecem o TPI (apesar de tudo, são 108). E uma polícia internacional é algo que, nesta fase, ninguém deseja. Até porque poderia começar a deter os senhores da CIA e congéneres (MI5, SIS, etc.) que andaram por esse mundo fora a torturar e a matar. Enquanto se trata apenas de um ditador africano cruel e sanguinário, estamos todos de acordo. Mas a globalização da justiça poderia ter consequências desagradáveis para alguns «ocidentais»...

6 comentários :

JDC disse...

Vai-me desculpar, mas quando refere a "direitos de cada indivíduo" está a referir-se a que direitos? Quem dita quais são esses direitos? O Ocidente? Porque é que zonas do planeta com filosofias diferentes da do Ocidente se devem sujeitar a uma visão do mundo que não é deles? É a lei do mais forte?

Pois, isto do relativismo é uma seca...

Ricardo Alves disse...

Exacto, o relativismo é «uma seca», para além da questão (menor) de ser liberticida.

Um muçulmano deve ter tanto direito a abandonar a sua religião como um cristão, seja na Arábia Saudita ou em Portugal. O apedrejamento de uma mulher é sempre um crime, em português, chinês ou árabe.

Se acha que eliminar a pena de morte em todo o mundo é «sujeitar (...) zonas do planeta (...) a uma filosofia que não é a deles», então, desculpe lá, mas parece-me que está a fazer a escolha errada. Prefere a sujeição do condenado ao carrasco, ou a «sujeição cultural» da China à Europa?

Ou seja, para que o «Ocidente» não «imponha» os Direitos do Homem, o JDC aceita que o Bashir imponha um genocídio no Sudão? De que lado está, afinal? Do lado das «filosofias», ou do lado das pessoas?

JDC disse...

Caro Ricardo Alves,

Não percebeu o que quis dizer. Um pouco por essa Europa fora temos vindo a assistir a uma aceitação de costumes e tradições, apesar de nos chocarem (mais ou menos). Exemplo disso são os tribunais de sharia em Inglaterra.
Tudo isto se processa sob a bandeira da tolerância e respeito pela diferença cultural, levados ao extremo.
Obviamente que não sou a favor da pena de morte e muito menos de genocídios e aplaudo a decisão do TPI. Tenho, ainda, muito pesar de os Direitos do Homem não serem aplicados na China. Porém, a China tem uma história e contexto muito diferentes dos nossos e não podemos exigir que eles abdiquem da sua identidade só porque achamos que eles estão errados (ou podemos?).
No fundo, tentei apenas contrariar o espírito do relativismo ao demonstrar que ainda há valores que são absolutos. O grande problema, porém, é saber quem tem autoridade para dizer quais são esses valores. Como tal, acho inviável e arrogante a criação de uma polícia com jurisdição internacional (interpol?) pois para isso já temos os EUA que tentam impor a democracia à lei da bala. O Ricardo Alves foi (e é) contra a guerra no Iraque, não é verdade?

Ricardo Alves disse...

JDC,
justamente. Não apenas podemos, como devemos exigir da China que abdique da sua identidade quando isso significa desculpar a pena de morte.

Quanto a uma polícia internacional, acho que realmente não será para amanhã.

Filipe Castro disse...

Concordo com o Ricardo. Há bibliotecas cheias de etnografias cheias de traços culturais disfuncionais. Não acho que a "identidade cultural" seja um valor sagrado e indiscutível. Quando eu era pequeno os ribatejanos diziam que bater na mulher era como dar corda ao relógio, uma coisa que se devia fazer todas as noites.

As coisas não são relativas no sentido radical dos pos-modernos: é melhor uma sociedade que não mete os vizinhos no forno do que uma que mete os vizinhos no forno.

Sobretudo acho um bocado histéricas as posições radicais que se tornaram normais nos últimos 40 anos: para a esquerda as pessoas são todas boas e devem ter o direito de fazerem o que que lhes apetecer (incluindo arrancar o clitóris às filhas), e para a direita as pessoas são todas más e têm de ser permanente reprimidas (se fumarem uma broca) para evitar o caos e a dissolução da sociedade...

JDC disse...

Obrigado, Ricardo Alves e Filipe Castro, por me mostrarem que ainda há gente de esquerda que não cai nessas posições radicais pós-modernas. Estou positivamente surpreendido.