sábado, 19 de janeiro de 2008

Liberdades positivas e negativas - IV

Carrafeu é uma aldeia isolada na selva. Nesta aldeia vivem 30 pessoas. Uma destas pessoas é Laura, uma mulher deslumbrante e solteira. Os pais de Laura - a única família que tinha em Carrafeu - morreram recentemente. Laura não tem dinheiro para saír de Carrafeu, e a sobrevivência na selva é impossível.

Os habitantes de Carrafeu querem ver Laura nua. Uns porque desejam ver o seu corpo, outros porque desejam que ela passe por tal humilhação, outros pelas mais diversas razões, todos pretendem que ela se dispa para toda a aldeia.

Podem seguir duas vias:


Via A
Os habitantes de Carrafeu escolhem um porta voz. Este aproxima-se de Laura e aponta-lhe uma pistola dizendo:
-Ou te despes já, perante toda a aldeia, ou mato-te.


Via B
Os habitantes de Carrafeu escolhem um porta voz. Este aproxima-se de Laura dizendo:
-Ou te despes agora,perante toda a aldeia, ou, no exercício da nossa liberdade individual, cortamos qualquer relação económica contigo, deixamos de fazer qualquer transacção. Assim, não tendo acesso a comida ou qualquer forma de a obter, só te restará morrer à fome.


Para muitos estas situações parecem idênticas. Em ambos os casos Laura é coagida a despir-se, mesmo contra a sua vontade. Poder-se-á dizer que será sua vontade despir-se caso o faça, visto que teve também a opção de morrer. Poucos levarão tal argumentação a sério.


Mas existe algo que distingue estas vias. É que na via B não foram violadas as liberdades negativas que os liberais de direita valorizam. Para um liberal de direita ortodoxo a via A é ilegítima, mas o mesmo não poderá ser dito da via B.

Este exemplo mostra, sem mais, que a escravatura é possível num sistema de estrito respeito pelas liberdades negativas valorizadas pelos liberais de direita. Assim se mostra que este liberalismo não é muito liberal...

15 comentários :

Miguel Madeira disse...

Eu, que sou tudo menos um "liberal de direita", vejo um diferença entre essas situações e, para compensar, um ponto em que elas são ainda mais parecidas do que parecem:

- a diferença: na segunda é mesmo necessários que todos os outros 29 habitantes da aldeia estejam de acordo e que nenhum fure o boicote (eventualmente com esperanças de uma sessão privada), enquanto na primeira basta uma maioria (ou mesmo que só um faça a ameaça e os outros não tomem posição); no entanto, se substituirmos os 29 habitantes por um latifundiário dono de toda a aldeia, as situações já se tornam idênticas

- agora, a semelhança ainda mais profunda: porque é que a Laura precisa dos outros aldeões para alguma coisa?. Imagino que a referência a ela ser "pobre" queira dizer que ela não não tem acesso a meios de produção que lhe permitam trabalhar para si, sendo obrigada a vender a sua força de trabalho a outrêm. Mas o que impede ela de, p.ex., cultivar um pedaço de terra que não seja legalmente dela? Em última instância, de novo a tal pistola (vinda directamente da "via A")

João Vasco disse...

Miguel Madeira:

Não foi por acaso que eu escolhi os 29 aldeões em vez do latifundiário.

Numa sociedade onde fossem protegidas as liberdades negativas que os liberais de direita priorizam, poderia continuar a existir opressão. E muitas vezes não seria um único indivíduo o opressor, mas toda uma sociedade.

Tomemos o exemplo da liberdade positiva de não ser descriminado: um indivíduo disse-me que não fazia sentido que o estado evitasse a descriminação, visto que o mercado cria mecanismos compensatórios que fazem com que esta desapareça - se X é descriminado e por isso ninguém o contrata, quem o contratar vai fazer um bom negócio.

Este argumento é tolo porque se esquece de várias questões óbvias (e se as pessoas optam por descriminar visto que os ganhos materiais não são a sua prioridade? E não continua X a receber menos pelo mesmo trabalho? Etc...), mas mais que isso parece um argumento ignorante.
Na Índia existe uma casta a que chamam a casta dos "intocáveis". Estas pessoas são consideradas nojentas, e muitos acreditam que servem para pouco mais que limpar latrinas.
O governo decidiu, contra as tradições culturas e religiosas, atacar esta descriminação (e se há críticas justas que têm sido feitas são as da falta de vigor nesta luta).

Ao fazê-lo promoveu a liberdade.

Falo sobre isto porque realmente nem sempre a opressão vem da parte de uma minoria. Nesse sentido o exemplo que dei (os 29 aldeões) não era inocente: servia para lembrar esta realidade.

João Vasco disse...

«a semelhança ainda mais profunda: porque é que a Laura precisa dos outros aldeões para alguma coisa?»

Neste exemplo podemos imaginar que em Carrafeu a agricultura é impossível. As pessoas trabalham nas minas e transaccionam os seus bens, e Laura não tem acesso ás minas a menos que seja contratada.

Novamente, estas condicionantes não são inocentes.


Se eu dissesse que era possível subsistir no mato, mesmo que com uma sobrevivência miserável, facilmente me poderiam dizer "então a via B é perfeitamente legítima: se Laura quer a ajuda dos outros para ter uma vida mais confortável do que aquela que consegue sozinha, tem de ceder ao que eles pretendem. estes têm de ser livres de não negociar com ela".

Teoricamente isto pode ser uma saída airosa. Mostra que se está muito longe de ter qualquer sensibilidade face à situação da Laura, mas nem soa assim tão mal.
Mas será que mesmo que a sobrevivência no mato fosse impossível, estes liberais de direita pensariam da mesma forma?
Se sim, a desadequação dos seus valores fica visível.

Tudo isto é uma metáfora à nossa situação.
Nós realmente precisamos uns dos outros. Precisamos que a sociedade nos eduque, nos proporcione acesso à comida, a cuidados de saúde, etc. para ter uma existência digna, ou mesmo para sobreviver.
Assim sendo, mesmo no pleno(?) respeito pelas minhas liberdades individuais (tirando a liberdade de agredir e furtar), é possível a alguns elementos da sociedade escravizar-me. Sim, tenho sempre a alternativa de agonizar e morrer à fome, ou mesmo de ir comer insectos para o mato - mas será uma alternativa assim tão diferente de levar uma bala?

Anónimo disse...

Concordo, deviamos todos adoptar o fascismo ou o comunismo pois o estado é que sabe o que nós precisamos

João Vasco disse...

Helder:

Se o Helder não é capaz de ver nenhuma alternativa às utopias dos liberais de direita que não passe pelo fascismo nem pelo comunismo, lamento a sua estreiteza de vistas.

Acha que as democracias dos países da UE são comunistas? Ou são fascistas? Só para dar um exemplo mais óbvio...

Miguel Madeira disse...

"Falo sobre isto porque realmente nem sempre a opressão vem da parte de uma minoria. Nesse sentido o exemplo que dei (os 29 aldeões) não era inocente: servia para lembrar esta realidade."

Mas, em casos em que a opressão venha da maioria, como é que um governo democrático a resolve?

"Neste exemplo podemos imaginar que em Carrafeu a agricultura é impossível. As pessoas trabalham nas minas e transaccionam os seus bens, e Laura não tem acesso ás minas a menos que seja contratada."

Não sei se isso mudará muito a questão.

João Vasco disse...

«Mas, em casos em que a opressão venha da maioria, como é que um governo democrático a resolve?»

Duas notas:

a) A opressão (que não venha de uma pequena minoria) não tem necessariamente de vir da maioria. Pode vir de um grupo que é maioritário numa determinada região, por exemplo. Pode vir de um grupo que, não sendo maioritário, é suficientmente vasto para não ser uma minoria.

b) A questão que apresento aqui não é a questão de "como resolver" este problema, mas sim a de mostrar que ele existe.
Se numa comunidade de 30 pessoas, 29 quiserem oprimir uma delas, em princípio vão conseguir.
Aquilo que me interessa saber neste ponto é se têm esse direito. Se seria bom que fossem impedidos de o fazer ou não.
Neste momento não me interessa se seriam impedidos por um governo democrático, por um ditador sensibilizado, ou por Deus. Apenas estou a questionar se deveria acontecer isso ou não.

--

Por outro lado, numa democracia a vontade da maioria também depende dos diferentes valores éticos.
E se a maioria oprime um grupo, eu posso considerar que essa opressão não ingfringe as liberdades negativas deste grupo, pelo que é legítima; ou posso considerar que é ilegítima.
Assim, sendo, poderei bater-me para que esta opresão seja ilegalizada. Mesmo que não tenha o apoio da maioria, posso conquistá-lo com a força dos meus argumentos. E isto remete para o que se passa na Índia com os intocáveis. Claro que haverão sempre aqueles que não vão querer saber de argumentos, mas impedi-los de oprimir os intocáveis não é uma limitação à liberdade - pelo contrário.

João Vasco disse...

«Mas, em casos em que a opressão venha da maioria, como é que um governo democrático a resolve?»

Duas notas:

a) A opressão (que não venha de uma pequena minoria) não tem necessariamente de vir da maioria. Pode vir de um grupo que é maioritário numa determinada região, por exemplo. Pode vir de um grupo que, não sendo maioritário, é suficientmente vasto para não ser uma minoria.

b) A questão que apresento aqui não é a questão de "como resolver" este problema, mas sim a de mostrar que ele existe.
Se numa comunidade de 30 pessoas, 29 quiserem oprimir uma delas, em princípio vão conseguir.
Aquilo que me interessa saber neste ponto é se têm esse direito. Se seria bom que fossem impedidos de o fazer ou não.
Neste momento não me interessa se seriam impedidos por um governo democrático, por um ditador sensibilizado, ou por Deus. Apenas estou a questionar se deveria acontecer isso ou não.

--

Por outro lado, numa democracia a vontade da maioria também depende dos diferentes valores éticos.
E se a maioria oprime um grupo, eu posso considerar que essa opressão não ingfringe as liberdades negativas deste grupo, pelo que é legítima; ou posso considerar que é ilegítima.
Assim, sendo, poderei bater-me para que esta opresão seja ilegalizada. Mesmo que não tenha o apoio da maioria, posso conquistá-lo com a força dos meus argumentos. E isto remete para o que se passa na Índia com os intocáveis. Claro que haverão sempre aqueles que não vão querer saber de argumentos, mas impedi-los de oprimir os intocáveis não é uma limitação à liberdade - pelo contrário.

Filipe Melo Sousa disse...

A Laura não se pode sentir prejudicada se eu não quiser praticar actos de comércio com ela. Mesmo que o meu comportamento como agente económico for irracional. Pois, eu seria o primeiro a perder.

João Vasco disse...

Filipe Melo de Sousa:

Se o seu comportamento for irracional, e o Filipe ficar prejudicado por não querer transaccionar com ela, ela não deixa de ser prejudicada à mesma. Por isso, claro que se pode sentir prejudicada - visto que de facto está a sê-lo.

Nem sequer sei que sentido tem considerar o oposto.

Anónimo disse...

estes posts sobre as liberdades positivas e negativas são de uma grandessíssima diarreia mental.

engenheiros a brincar à filosofia política. tenham dó: calem-se!

por aqui só dá medíocres.

Anónimo disse...

"A opressão (que não venha de uma pequena minoria) não tem necessariamente de vir da maioria. Pode vir de um grupo que é maioritário numa determinada região, por exemplo. Pode vir de um grupo que, não sendo maioritário, é suficientmente vasto para não ser uma minoria."

eu esta não percebi... não sendo uma maioria pode ser um grupo suficientemente vasto para não ser uma minoria.

desculpe?... importa-se de repetir?...

será que por aqui nunca ouviram falar do princípio da não contradição?

esta gente mete as mão pelos pés, os pés pelas mãos, e dão aquele ar de quem está a dizer uma coisa muito importante.

dah!!!!!!

João Vasco disse...

anónimo:

Ficamos todos felizes por saber que acha que estes textos são uma grande "diarreia mental". Lamento que tenha perdido tempo a lê-lo a ainda assim tenha tido vontade de dar a sua opinião sobre textos tão deprezíveis. Mas não nos quer agraciar com as suas razões?

Ou não tem melhores razões que a minha formação em engenharia?

Se calhar esses preconceitos coadunam-se com o vazio argumentativo a que corresponde a sua mensagem.

João Vasco disse...

«eu esta não percebi... não sendo uma maioria pode ser um grupo suficientemente vasto para não ser uma minoria.»

«desculpe?... importa-se de repetir?... »

No dicionário da Lexiteca do círculo de leitores, minoria vem descrito como sendo "fracção menos numerosa".

Assim sendo, numa população com 3 grupos, tendo o grupo A 51% dos elementos, o grupo B 40% e o grupo C 9%, os elementos do grupo C estão são uma minoria, os elementos do grupo A são uma maioria. Os elementos do grupo B não são uma maioria nem uma minoria.


Ao acusar-me de entrar em contradição acabou de cometer a falácia da bifurcação. Parabéns!

João Vasco disse...

Perdão, Lexicoteca.