segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A miséria do liberalismo

Os principais blogues que se reclamam do «liberalismo» têm na sua página principal vários artigos sobre a nova lei do tabaco (1, 2, 3, 4, 5, 6). Nenhum deles, que eu tenha dado conta, alguma vez escreveu sobre o projecto governamental de alterar a Constituição para legalizar as escutas telefónicas efectuadas pelos serviços de informações estatais.
Portanto, presumo que para estes «liberais» a limitação da possibilidade de fumar em espaços fechados é um maior atentado à liberdade do que a legalização das escutas das conversas que têm ao telefone. Para eles, é mais importante poderem fumar no café da esquina do que negarem ao Estado o direito a escutar o que dizem ao telefone.
É nestes momentos que me dou conta de que estou a ficar velho.

11 comentários :

JLP disse...

"Nenhum deles, que eu tenha dado conta, alguma vez escreveu sobre o projecto governamental de alterar a Constituição para legalizar as escutas telefónicas efectuadas pelos serviços de informações estatais."

Está distraído.

Tão distraído que nem notou que um dos seus próprios artigos passados é praticamente constituído na totalidade por uma citação uma notícia por via de um desses "blogues liberais".

Mas ficam-me duas dúvidas: afinal, não é a "esquerda republicana" que está no governo? Além disso, numa casa como esta, com tantos defensores do utilitarismo, da democracia e do relativismo moral, não sei se terão grande margem de manobra de crítica. Afinal, as regras (nomeadamente as da revisão da constitição) estão a ser democraticamente seguidas...

João Vasco disse...

jlp:

A essa falácia chama-se na gíria "boneco de palha".

Acha mesmo que qualquer defensor da democracia considera que o que quer que os deputados façam será sempre o melhor para todos? Que qualquer defensor da democracia não deve criticar o governo ou os deputados? Acha que tudo o que é legítimo em democracia está acima da crítica dos democratas?

Por um lado isso significa que rejeita a democracia. Por outro lado isso significa que não conhece o mundo à sua volta, um mundo onde os mais acérrimos democratas acham que criticar o governo e os deputados faz parte da saúde da democracia.


Quanto ao utilitarismo, a crítica ainda é mais disparatada. Acho que devia aprender o que é utilitarismo, porque há muitos equívocos por aí. O utilitarismo é compatível com o liberalismo clássico, a anarquia, a ditadura, a democracia, etc... Na verdade só é compatível com um destes sistemas: aquele que for o melhor para todos. Mas isso não é ponto assente.
Por exemplo, se dissesse que o utilitarismo = ditadura (nem que seja da maioria), apenas mostraria que:

a) Acharia que a ditadura é o melhor sistema para todos

ou:

b) Não saberia o que é o utilitarismo e deveria aprender.

---


Por fim, há muita esquerda fora do governo. Mas mesmo que alguém seja da "esquerda que está no governo", isso significa que não o deva criticar?

JLP disse...

Caro João Vasco,

"Por um lado isso significa que rejeita a democracia."

Acha mesmo?

"Por exemplo, se dissesse que o utilitarismo = ditadura (nem que seja da maioria)"

Está a ler (ou inferir) coisas que eu não escrevi.

O que eu reforço é que a democracia, por si só, se não for limitada por um Estado de Direito e por um ordenamento constitucional é um perigo tão grande como o é a tirania ou a ditadura. E a tese nem é original nem é minha.

Também não digo que o utilitarismo implique ou seja equivalente a ditadura, e confirmo a sua compatibilidade potencial com o liberalismo clássico. Mas há leituras e leituras em relação à forma desse utilitarismo, e nem todas beneficiam desse juízo de compatibilidade.

O que já digo, e também reforço, e que tem emergido de troca de argumentos anteriores, é que a combinação de utilitarismo, com democracia não limitada e com relativismo moral é uma receita para o desastre e para a consumação de uma ditadura da maioria. Principalmente porque substitui o juízo do que "é bom para todos" por juízos de "bom para a maioria", ou pior, para juízos de "o que o estado (ou os eleitos, ou representantes) acham que é bom para a maioria".

João Vasco disse...

«O que eu reforço é que a democracia, por si só, se não for limitada por um Estado de Direito e por um ordenamento constitucional é um perigo tão grande como o é a tirania ou a ditadura. E a tese nem é original nem é minha.»

Reforce isso à vontade. A ideia de que isso é sequer polémico neste espaço é que não sei onde a foi buscar.
Mais ainda depois disso também ter sido reforçado por aqui várias vezes.


«Está a ler (ou inferir) coisas que eu não escrevi.»

Atente no tempo verbal que usei. Não inferi nada, e usei esse tempo verbal mesmo para deixar isso claro.

Ricardo Alves disse...

jlp,
tem que admitir que o seu post de Novembro n´«O Insurgente» (que, ainda por cima, se resume a uma citação do DN...) é um pouco pobre como prova de que os liberais se preocupam com as escutas feitas pelos serviços de informações, e com a revisão da Constituição que se prepara para as facilitar (o artigo do CAA não conta porque é sobre as escutas com mandato judicial).

Diga-me lá, honestamente: não há mais artigos n´«O Insurgente» ou no «Small Brother» sobre as escutas feitas pelos serviços de informações? É que sobre a lei do tabaco são às dúzias! Vá fazer as contas: só n´«O Insurgente», deve ter uma desproporção de 100 para 1 (em número de artigos) entre os dois temas... O que me permite concluir que o vosso liberalismo não estará realmente preocupado em criar para cada cidadão uma esfera de liberdade e privacidade em que o Estado não interfira.

Afinal, no seu entender, qual destas é a questão mais grave para as liberdades dos cidadãos?

Ricardo Alves disse...

Quanto ao resto:
-este blogue não está no governo; ;)
-nunca dei conta de que algum de nós fosse relativista, antes pelo contrário;
-aqui, sempre se colocaram as liberdades individuais acima das maiorias.

JLP disse...

Caro Ricardo Alves,

Apesar de pouco, demonstra claramente que não se é alheio ao problema.

E é tudo uma questão de timing. Em comparação com a lei do tabaco, prefiro para já concentrar-me nos desvarios que se conseguem fazer passar com uma maioria simples neste país, e que já estão em vigor, do que com meras conjecturas sobre alterações constitucionais que o PS não consegue fazer passar sozinho e que se apresentam à distância.

Não tenha dúvidas que, pelo menos da minha parte, pode contar com intervenções mais profundas quando a questão deixar de ser uma mera conjuntura longínqua, ainda mais quando é patrocinada por um ministro que possivelmente nem estará no cargo daqui por umas semanas.

Em termos comparativos de gravidade... é sem dúvida uma decisão complexa!

"-nunca dei conta de que algum de nós fosse relativista, antes pelo contrário;"

Tenho algumas dúvidas, face a tomadas de posição tomadas em intervenções passadas. Sobre o assunto, recomendo a troca de argumentos numa sucessão de artigos antigos no SB que é referida num artigo que vou apontar ao seu colega João Vasco.

"-aqui, sempre se colocaram as liberdades individuais acima das maiorias."

Parece-me uma tomada de posição profundamente anti-democrática! :-)

Ricardo Alves disse...

jlp,
não se trata de «meras conjecturas». É um facto público, noticiado pelos jornais com uma clareza obscena, que o SIS, o SIRP e a PSP efectuam escutas ilegais (telefónicas e outras) de forma rotineira.

http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1309151

O senhor Alberto Costa quer rever a Constituição para liberalizar ainda mais as escutas. E não pense que será o PSD a pará-lo. Nesta questão, se não forem os cidadãos a organizarem-se para se defenderem, estaremos bem tramados.

Mas diz muito quanto ao seu «liberalismo» que tenha dúvidas quanto à gravidade comparativa das escutas e do tabaco.

Ricardo Alves disse...

Ah, e realmente não me considero relativista. Escrevi vários artigos no Diário Ateísta contra o relativismo epistemológico, por exemplo (faça uma busca por «BSS»).

E tenho defendido que os direitos individuais devem estar acima das maiorias. Por exemplo, a liberdade de conciência, ou a liberdade de expressão, devem ser exercidas mesmo que isso desagrade à maioria que segue a religião X. Já escrevi isto várias vezes.

Anónimo disse...

"E tenho defendido que os direitos individuais devem estar acima das maiorias."

mas isso é uma atitude muito pouco de esquerda. diria mesmo que é uma atitude absolutamente liberal.

João Vasco disse...

anónimo:

O seu erro está em considerar que o liberalismo e a esquerda se opõem.

Veja mais aqui:

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2007/10/socialismo-e-liberalismo-ii.html