segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Terramoto: o Estado a ajustar-se a uma sociedade em mudança

A laicidade avança quando os debates sobre as leis do Estado são racionais e pragmáticos, e não teológicos e dogmáticos. Quando os crentes aceitam raciocinar sobre a res publica pondo de lado os argumentos do clero que lhes exige obediência, e preocupando-se em primeiro lugar com a comunidade política que existe tanto para eles como para os ateus, a fé passa finalmente a ser um assunto privado e não político. Deu-se um passo importante nesse sentido na campanha para o referendo de ontem (muito mais do que em 1998, alguns católicos leigos assumiram abertamente o seu voto pela despenalização; o único sacerdote católico que o fez claramente foi o Mário de Oliveira).

A ICAR, principalmente a hierarquia e a sua ala mais reaccionária, sofreram a sua maior derrota desde o 25 de Abril. Tinham-se empenhado muito mais do que em 1998, quando partiram do princípio de que o «sim» ganharia e tentaram desvalorizar o referendo fazendo um apelo misto ao «não» e à abstenção. Desta vez envolveram-se a fundo, desde a CEP até aos movimentos de leigos, o que ajuda a explicar que o «não» tenha obtido mais 200 mil votos do que em 1998. No entanto, as maiores subidas percentuais do «sim» deram-se nas regiões mais conservadoras.

Os políticos derrotados neste referendo chamam-se António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Em 1998, após o Parlamento votar favoravelmente a despenalização, reuniram-se em privado, talvez tenham orado, e decidiram criar um obstáculo à legalização da IVG. Lideravam os dois maiores partidos nacionais e pensaram sobretudo no interesse da igreja a que pertenciam. Por responsabilidade deles, as mulheres que abortaram na última década fizeram-no na clandestinidade.

O Estado começa agora a acertar o passo com uma sociedade que desde o 25 de Abril se tem secularizado rapidamente (de 1973 até 2005, os casamentos civis passaram de 18% para 45%; os nascimentos fora do casamento, de 7% para 31%; os divórcios, de 1 por cada 100 casamentos para 47 por cada 100 casamentos; os católicos praticantes passaram de 2,44 milhões em 1977 para 1,93 milhões em 2001). Se o «sim» tivesse ganho em 1998, os debates posteriores sobre a Lei da Liberdade Religiosa de 2001 e a Concordata de 2004 teriam sido diferentes.

Perderam os que acreditam que o problema do aborto clandestino se resolve fechando os olhos à realidade e fazendo sermões às mulheres. Ganharam os que preferem enfrentar os problemas, por difíceis que sejam. Ficou mais claro, para os católicos praticantes ou para os católicos culturais, qual é a diferença entre um crime e um pecado, entre uma lei do Estado e uma questão pessoal com a própria religião. Nesse sentido, ganhámos todos.

[Publicado originalmente no Diário Ateísta.]

16 comentários :

Anónimo disse...

Católico Cultural... gostei dessa...

Além de Conservador, Liberal, Ateu e Gemeos também sou Católico Cultural... Certo?

Anónimo disse...

Acho no entanto exagerado ou dai talvez não atribuir á secularização do estado a taxa de divorcios , nascimentos fora do casamento entre outras "grandes conquistas" da laicidade...

È verdade que vivemos num estado que tudo quer fazer e tudo e todos quer reger...

Se me disseres que o baixo nivel de nascimentos é também causado pelo estado... isso concordo! O nosso estado na sua tentativa de nos condicionar e governar tem depauperado os baixos rendimentos que os portugueses dispõem. Isso sim mina e destroi muitas tentativas de criar uma familia mais alargada.

Eu considero a laicidade uma conquista da Liberdade do Homem sobre o Homem. Mas considero isso nem o Inicio nem o Fim da Historia como tu sugeres...

Foi em nome da laicidade que milhões no seculo passado pereceram, em torno a da mistificação do estado como o supra sumo de tudo... Eu prefiro considerar o Homem... mas isso são crenças dum católico cultural...

Ricardo Alves disse...

«talvez não atribuir á secularização do estado a taxa de divorcios , nascimentos fora do casamento entre outras "grandes conquistas" da laicidade...»

Está a ver tudo ao contrário. A ascensão do casamento civil e o aumento dos nascimentos fora do casamento são indicadores da secularização da sociedade: do afastamento das pessoas, nas suas práticas sociais, face às normas da religião tradicional.

A laicidade remete para a esfera política. Laicidade seria não terem chamado um bispo católico ao Parlamento quando se estava a discutir uma Lei da Liberdade Religiosa que não se aplicava à igreja dele.

Quanto ao início, meado, ou fim da História, não falei de nada disso.

Não me lembro de crimes em nome da laicidade no século 20. Pode ser mais específico?

David Cameira disse...

Ricardo Alves,

" Foi em nome da laicidade que milhões no seculo passado pereceram, em torno a da mistificação do estado como o supra sumo de tudo... Eu prefiro considerar o Homem... mas isso são crenças dum católico cultural... "

Se calhar não é laicidade ( q é um sistema mertamente formal ) mas é do ATEISMO, ESTALINISMO, MAUISMO, POLPOTISMO E OUTROS ISMOS, algozes da cultura da morte( q é tao celebrada por estes dias ), que o comentador se está a referir

Ricardo Alves disse...

«Se calhar não é laicidade (...) mas é do ATEISMO, ESTALINISMO, MAUISMO, POLPOTISMO E OUTROS ISMOS»

Ora vê? Afinal o David Cameira já vai entendendo isto... Essas tragédias foram em nome de ideologias autoritárias como o estalinismo e o maoísmo. Nem sequer em nome do ateísmo de Estado (que não costumava ser invocado ao enviar gente para os gulagues), e jamais em nome do laicismo.

Estou a ver que nos estamos a entender: houve tantos mortos por laicidade de Estado como pela democracia.

David Cameira disse...

" Nem sequer em nome do ateísmo de Estado (que não costumava ser invocado ao enviar gente para os gulagues)"
A Albania de ENVEROCHA professava o ateismo de estado e criminalizava as atitudes religiosas...

Fora isso, globalmente concordo com o Ricardo
Mas , por ex, o BE falamuito do laicismo e da laicidade mas , na pratica , sao todos é uns " trolhas " dai que as duas coisas se confundam fenomenologicamente, por vezes

David Cameira disse...

OPS,

HÁ POUCO FALTOU ISTO : " (...) sao todos é uns " trolhas " JACOBINOS (...)"

Ricardo Alves disse...

«A Albania de ENVEROCHA professava o ateismo de estado e criminalizava as atitudes religiosas...»

E faziam muito mal.

«o BE falamuito do laicismo e da laicidade»

Falará?

David Cameira disse...

oU , PELO MENOS , AGITA-O COMO ESPANTALHO..
Tenho de reconhecer que a " sua " ARL é mais profunda e rigorosa q o BE...

Mas vcs tb me parecem um bocadinho jacobinos...

E, já agora, os Puritanos e os baptistas do novo mundo tb defendiam a laicidade do estado "
a cada um segundo os ditames da sua propria consciencia "

" JUREI, SOB O ALTAR DE DEUS ETERNA HOSTILIDADE A TODAS AS FORMAS DE OPRESSÃO SOBRE O ESPIRITO HUMANO "
Thomas Jeferson

Ricardo Alves disse...

David Cameira,
o Thomas Jefferson, creio eu, era cristão unitário. Uma confissão religiosa bastante heterodoxa. (Hoje em dia, até vão ao ponto de fazer campanha pelo casamento entre homossexuais...)

E sim, a laicidade dos EUA não se deve apenas aos livre pensadores, mas também às «seitas» protestantes («seitas» era a linguagem da época).

Anónimo disse...

Ricardo, houve varios estados que usaram e abusaram do termo "Laicidade" para imporem a sua propria religião. Religião ou simplesmente culto pessoal.

Basta olhar para o inicio do nosso seculo xx para comprender como os politicos ao abrigo da chamada laicidade impuseram um regime que abertamente hostilizava (e muitas vezes matava) a igreija Catolica. Não preciso de chegar á Russia para ver isso.

Se muitas vezes é desconhecido... isso tem uma de duas leituras... ou simplesmente não é dado nas aulas (como aconteceu comigo) ou não interessa a um regime republicano como o nosso. Mas não significa que não tivesse acontecido.

A laicidade, para mim deve servir apenas para respeitar os outros e mais não é que uma extensão da Tolerânçia. Mas para muita gente é uma arma de arremesso contra as instituições religiosas. Em particular a tua muito amada ICAR.

Muita gente apenas ataca a Igreija como forma de atacar os Conservadores, pensam que corroendo os valores dogmáticos das instituições religiosas estão atacando o verdadeiro "inimigo". Os valores dogmáticos são de dificil defesa pois como deves saber assentam mais na fé e na tradição do que na racionalidade.

Não sei se é este o teu caso...

Ricardo Alves disse...

Tiago,
não acredite na versão da 1ª República que é contada pela historiografica clerical, católica ou simplesmente conservadora. A 1ª República não foi um regime de ateísmo de Estado.

Sem a separação de 1911 não teríamos registo civil, divórcio, ou liberdade religiosa. Antes de 1910, a ICAR era um ramo do funcionalismo público, sustentada pelo erário público, havia instituições do Estado em que só entrava quem fizesse um juramento religioso, a liberdade de expressão estava limitada pelo «delito» de blasfémia, a «educação» religiosa era obrigatória, não era possível prestar outro culto público que não o católico, era difícil mudar de religião, havia protestantes perseguidos, etc.

Por terem posto fim a tudo isto, os republicanos são acusados de... querer «matar» a ICAR? É ridículo. Só décadas de doutrinamento salazarista (e, do outro lado, marxista-leninista) é que conseguiram convencer as pessoas de que isto é verdade.

Olhe, instrua-se. Leia Raul Rego ou Arnaldo Madureira, por exemplo. Verá que andaram a enganá-lo sobre a 1ª República...

Anónimo disse...

A tua querida primeira república não foi ateista pela simples razão de que vivia num pais profundamente católico. Mas tentou... Aliás esta tentação que existe em Portugal de tentar moldar a população (o povinho) porque são atrasados foi feita. Metade da população masculina perdeu o direito ao voto. Consideravam se democráticos mas só davam poder de voto a meia dúzia de iluminados.

A Primeira República foi de tal maneira uma mancha na nossa história, que nem passados cem anos a conseguem limpar.

Ricardo Alves disse...

«A tua querida primeira república não foi ateista pela simples razão de que vivia num pais profundamente católico. Mas tentou...»

Não, não tentou. Francamente, os protestantes saíram da clandestinidade em 1910!
Olhe, leia isto:

http://www.geocities.com/republaicidade/Historicos/Protestantes.html

E mais isto:

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2005/09/desfazendo-os-mitos-sobre-repblica-2.html

Sinceramente, estas conversas chegam a um determinado ponto em que só vale a pena continuar se houver um mínimo de boa fé do outro lado. Se acha que a 1ª República tentou um regime de ateísmo de Estado, é porque acredita nas tretas que os clericais andam a contar há um século.

Repito-lhe: tente ler Arnaldo Madureira. Ou Carlos Ferrão.

(E quanto ao universo de sufrágio, não era muito diferente daquele que o antecedeu...)

Anónimo disse...

Pois claro... foi AUMENTADO para METADE do que era... Será isto que queres ouvir??!

Uma Democracia, na qual pouco mais do que Lisboa e Porto votavam... Uma Democracia de iluminados... sem duvidas... o resto não passavam de labregos analfabetos!!

É a verdadeira mentalidade Republicana!!

Ricardo Alves disse...

«Uma Democracia, na qual pouco mais do que Lisboa e Porto votavam»

Isso não é verdade. E olhe que o universo de sufrágio variou durante a República.

Mas, já agora, pergunto-lhe: ter retirado aos sacerdotes o estatuto de funcionários públicos é «perseguir» a ICAR? Nesse caso, será que ainda hoje a perseguimos (a ela e às outras igrejas)?