sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

O marxismo não é anti-religioso

As resistências de alguma esquerda a criticar o islão político foram brevemente afloradas nos comentários a um artigo recente. (Mais sobre isso nos próximos dias.)
Há um equívoco de base: Marx não era anti-religioso (e nem sequer anticlerical); não concebia, de forma alguma, a crítica da religião como um fim em si mesmo, e, se a admitia, subordinava-a à luta socialista. Reduzir a visão marxista da religião ao bitaite do «ópio do povo» é superficial, conforme já expliquei. (Postular uma origem do laicismo no bitaite cristão sobre «César» e «Deus» é ainda mais superficial, mas isso fica para outra ocasião...)
Num artigo publicado na revista trotsquista Combate, o marxista Michael Löwy apresenta um curto historial do pensamento marxista sobre a religião. Vale a pena a leitura. Começa por afirmar que «o ponto de vista de Marx, em 1844, deriva mais do neo‑hegelianismo de esquerda, que vê na religião a alienação da essência humana, do que da filosofia das Luzes, que a denuncia simplesmente como uma conspiração clerical» (o que está correcto; o anticlericalismo dos enciclopedistas e de alguns socialistas não marxistas era, e é, olhado com paternalismo e/ou incómodo por muitos marxistas).
Mais à frente, Löwy avisa que «Engels mostrou um interesse bem mais sustentado que Marx pelos fenómenos religiosos e o seu papel histórico» e conclui que «Engels revelou o potencial contestatário da religião e abriu o caminho para uma nova abordagem das relações entre religião e sociedade, distinta ao mesmo tempo da filosofia das Luzes e do neo‑hegelianismo alemão». E aqui, aparece um tema que será recorrente em muitos marxismos: o potencial «revolucionário» e «socialista» do cristianismo.
Também interessante é a comparação de Löwy da «fé religiosa com a fé marxista: ambas partilham da recusa do individualismo (racional ou empírico) e a crença em valores trans‑individuais: Deus para a religião; a comunidade humana para o socialismo». É evidente que concordo, e por isso rejeito ambos. Entre um colectivismo transcendental controlado pelo clero, e um colectivismo terreno controlado pelo Partido, as diferenças teóricas são irrisórias. Ambos suprimem o indivíduo e a sua liberdade.
O artigo não toca nas relações entre os marxistas actuais e o islamismo. Limita-se a motivar uma simpatia de princípio pela «teologia da libertação», e vê um único problema na colaboração entre socialistas e clericais: a atitude em relação às mulheres. (É impossível justificar qualquer política de igualdade entre sexos a partir das religiões abraâmicas.)
Conclusão: a dominação ideológica do marxismo sobre as esquerdas europeias, durante três gerações completas, levou a que o laicismo (e a própria tradição iluminista) parecesse a muitos, no início deste século, uma relíquia. O Islão e um novo patamar de secularização na Europa ocidental estão a reabilitar a laicidade enquanto princípio estruturante. Talvez não fosse má ideia reabilitar também o socialismo individualista e libertário...

2 comentários :

Pedro Viana disse...

"As resistências de alguma esquerda a criticar o islão político foram brevemente afloradas nos comentários a um artigo recente."

Caro Ricardo,

Se esta afirmação se refere aos meus comentários ao post referido, então acho que não entendeste bem o que quis dizer. Toda, repito, toda, a tentativa de introdução de princípios religiosos em políticas de Estado devem ser criticadas e condenadas. No entanto, esta crítica e condenação deve ser feita sempre de modo genérico e não tomando como alvo uma religião específica, seja ela o cristianismo ou o islão. Em particular, no ocidente é preciso muito cuidado na crítica particularizada do islamismo pelas consequências que isso tem quer a nível do estigma que lança sobre minorias internas já sob pressão e discriminadas quer na mentalização da opinião pública da inevitabilidade dum conflito armado entre "civilizações". A crítica ao islamismo deve ser sempre feita no âmbito duma crítica mais geral da religião, nomeadamente as religiões abraâmicas. Toda a crítica tem um impacto na realidade que não pode ser ignorado, por irresponsabilidade, por quem faz tal crítica. Isto não é um convite à auto-censura, mas sim há ponderação de todas as consequências duma acção.

"Talvez não fosse má ideia reabilitar também o socialismo individualista e libertário..."

Não sei se o Ricardo sabe bem a que se refere... se por socialismo libertário se refere ao anarquismo, então ao meter o individualismo pelo meio está, como já de certo modo andava a suspeitar, mais perto do neo-liberalismo e anarco-capitalismo do que julgava. Ora leia

http://en.wikipedia.org/wiki/Individualist_anarchism

Eu revejo-me mais no anarquismo social:

"Social anarchism aims for "free association of people living together and cooperating in free communities.""

http://en.wikipedia.org/wiki/Social_anarchism

Onde o conceito de comunidade e o princípio da decisão democrática são centrais.

José Moinho disse...

A questão é saber se o socialismo vê a religião como sendo culturalmente positiva ou como um atavismo tolerável enquanto existirem possibilidades de aliança (por exemplo, no âmbito da teologia da libertação). Considero que o homerm necessita de algum tipo de misticismo se quer fugir aos seus instintos de dominação.
cumprimentos
José Moinho
manifestoliberista.blogspot.com