segunda-feira, 4 de setembro de 2006

A segunda lei da termodinâmica em formato teológico

Neste post o Orlando Braga apresenta uma série de argumentos para criticar as buscas por entender e explicar a criação da vida sem o factor Deus. Na verdade o texto não é mais do que uma compilação dos argumentos em geral apresentados pelos defensores da teoria do desenho inteligente, muito de moda entre os fundamentalistas cristãos norte-americanos, e que ao parecer o Vaticano quer importar para o velho continente. O post termina no entanto por ser interessante como oportunidade para desde a blogosfera lusitana analisarmos como apresentam estes novos-criacionistas os seus argumentos, e criticarmos os "truques" por eles utilizados.
###1 - Começamos pela sua crítica à possibilidade de 'acidentes aleatórios' tornarem matéria inanimada em matéria viva. Como sempre nestes casos começa-se por buscar os argumentos de alguém do mundo científico que sirva de aval fundamental, neste caso o elegido é o físico Fred Hoyle, que sendo ateu, e aproveitando-se para deixar bem claro este facto, dará uma solidez ainda maior a tudo. Hoyle terá calculado a probabilidade que teriam cada 20 aminoácidos em aparecerem na Natureza na correcta sequência para formar uma célula viva chegando ao que parece a um valor 1 em 1040000. Neste momento Orlando diz o seguinte absurdo: os matemáticos normalmente consideram a hipótese de 1 em 1.050 (1 seguido de 50.000 zeros) como uma impossibilidade matemática. Não sei sinceramente de onde o autor foi sacar semelhante idéia mas seria muito mais provável que um físico como Hoyle, por exemplo, a dissesse, mas nunca um matemático... Improbabilidade não é o mesmo que Impossibilidade, que o digam os vencedores de loterias e eu já conheci mais que um, se bem nunca tenha tido pessoalmente esta sorte. De qualquer forma parece ser que realmente é verdade que Hoyle utilizou tal raciocínio para concluir que uma teoria de evolução natural terrestre para a criação da vida era absurda. Acontece que o cálculo de Hoyle não é minímamente científico, e ainda que ele fosse um cientista nem todas as bujardas que o homem dizia eram ciência, longe disso. Antes de mais nada, é óbvio que o raciocínio de Hoyle e do Orlando pecam por reducionismo, considerando possível modelar a sequenciação de aminoácidos por via da física atómica quando a matéria a diferentes escalas e em diferentes lugares cria padrões de organização distintos impossíveis de prever por via da física atómica. O absurdo do raciocínio salta à vista de todos pois "impossibilitaria" practicamente qualquer coisa conhecida do nosso dia a dia, a macro-escala, de acontecer a não ser que se entrasse em linha de conta com Deus, é claro...

2 - A argumentação continua por caminhos estranhos, citando supostas evidências descobertas que não conheço, nem o autor refere quais, de inexistência de uma sopa pré-biótica, necessária nos modelos mais correntes para a criação dos primeiros aminoácidos na Terra. Orlando diz que os cientistas têm descoberto muitas razões para pensar que a Terra primordial não era de todo constituída por uma 'sopa pré-biótica', e eu não sei aqui até que ponto não se confundem, Orlando e suas fontes, entre 'existência de' e 'constituído por'... De qualquer forma é reincidente a pressa com que algumas pessoas desejam substituir a ignorância inegável que possamos ter sobre determinado problema com o factor Deus. Orlando aqui tão pouco é original.

3 - Utiliza-se a já conhecida argumentação baseada na teoria da informação com termodinâmica misturadas a gosto do freguês, para numa simulação de raciocínio, dar a impressão de que cientificamente a criação natural de vida é absurda, e contradiz a segunda lei da termodinâmica sobre o aumento de entropia em sistemas isolados e fora de equilibrío. Não se diz por exemplo que a segunda lei da termodinâmica não impede um sistema de organizar-se no caso de não ser isolado, nem de aparentemente poder apresentar uma maior organização macroscópica à custa de "desorganizar-se" a nível microscópico (e total). E para absurdo maior Orlando tenta aplicar a termodinâmica às teorias em lugar dos sistemas, ou pior, utiliza-a para fazer a comparação entre teorias e sistemas, destacando ele próprio a sua afirmação, roubada a um físico chamado Hubert Yockey, de que a informação genética contida no mais pequeno organismo vivo é muito maior do que o conteúdo de informação descoberto nas leis da física. Para Orlando este facto matemático é fundamental... Depois ele anda à volta com vários exemplos de complexidade macroscópica do mundo em que vivemos, incluindo "Os Lusíadas", que ele diz serem incompatíveis com a regularidade das leis da física, para chegar a este corolário magnífico, que diríamos roubado ao estilo de João César das Neves: Da mesma forma que a informação contida n’ 'Os Lusíadas' não foi determinada pelos químicos utilizados na tinta das penas de Luís Vaz de Camões, assim a informação do código genético (ainda que codificada num alfabeto de 4 letras) não é determinada pelos elementos químicos desse seu alfabeto.

4 - Depois a alucinação continua com mentiras como esta: Hoje é reconhecido que o Universo físico está programado para propiciar e criar as condições para a existência da vida (sintonização universal para a Vida). Reconhecido por quem? Parece que pelo menos por um tal John Polkinghorne, que ele refere como sendo sendo físico em Cambridge mas não como sendo também teólogo, e cuja citação Orlando extrae de um livro chamado "Beyond Science"... O Orlando anda aqui às voltas, sem o dizer, com o princípio antrópico. Se trata de um princípio com enunciados e abordagens muito distintas que vão do duvidoso ao banal, chegando ao pseudo-científico. De qualquer forma a situação actual está longe de poder possibilitar o tipo de afirmações teológicas bombásticas relativas a supostos reconhecimentos científicos generalizados sobre um Universo programado para criar vida...

Assim que quando Orlando termina o seu post dizendo que O Deus de barbas e 'castigador' já não existe. Mas existe inexoravelmente uma força superior que tudo isto criou: chamemos-lhe o Deus Cósmico. Ele existe, sem dúvida., ele não está chegando ao resultado de nenhuma equação matemática como quer fazer crer, mas simplesmente renovando a velha histeria religiosa em formato de sermão de aldeia global do século XXI, e de acordo com os novos cânones norte-americanos do gênero. Nada se perde, nada se cria, tudo se moderniza e se complica. Pura termodinâmica.

7 comentários :

Rui Fernandes disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
João Miguel Almeida disse...

O absurdo do texto que critica as actuais teorias sobre a origem da vida é a conclusão: «Ele existe, sem dúvida». Um defensor da origem extra-terrestre da vida neste planeta podia subscrever o mesmo raciocínio e concluir: «a vida é de origem extra-terrestre, sem dúvida».
As actuais teorias sobre a origem da vida, não explicam tudo, mas os seus aspectos insatisfatórios são um desafio para a ciência.
Se Deus faz sentido é num espaço aberto pelas interrogações que não têm resposta científica.

João Miguel Almeida disse...

Reformulo a última frase para ser mais claro: se Deus faz sentido é num espaço aberto pelas interrogações que não podem ter resposta científica.

Ricardo Alves disse...

Rui,
olha que estás a perder o teu tempo...
Dica: não responder a quem leva o «paranormal» a sério. ;)

Rui Fernandes disse...

É que talvez tenha exagerado na dose, e entra o complexo de culpa, etc. Coisas de educação católica.

Rui Fernandes disse...

Mas depois li os posts com elogios a Oriana Fallaci e perdi qualquer sentimento de culpa... e já não precisei de ler mais nada.

no name disse...

como já tive oportunidade de dizer em ocasiões anteriores, a negação da evolução, do big bang, da mecânica quântica, da relatividade geral, da geometria aproximadamente esférica da terra, ou de qualquer outra teoria científica devidamente estabelecida é, não só, uma atitude que revela ignorância e alguma dose de estupidez, mas é, acima de tudo, nos moldes que é feita, de uma hipocrisia incrível.

senão vejamos: o "método científico" é sempre o mesmo. seja para qualquer uma das teorias indicadas em cima, seja para as teorias que dão base a toda a tecnologia digital que nos rodeia, incluindo computadores e telemóveis. uma pessoa que escolhe usar um meio digital ou electrónico para negar a ciência sujeita-se, nestas condições, a ser catalogado como de parvo ou de hipócrita. e alguém que reincide no facto deve, a meu ver, ter direito a uma fotografia no dicionário ilustrado, junto da definição de "hipócrita sem limites".

finalmente, rui e ricardo, acho que nunca é demais levantar e responder a estes assuntos. é, também, dever daqueles que fazem ciência ajudar a sociedade a libertar-se das correntes escuras dos misticismos primitivos...