quinta-feira, 28 de abril de 2005

A avó da direita tinha duas rodas

Num sinal claro de que a comunicação social está hegemonizada pela esquerda mais radical, o Diário de Notícias de hoje desenterra, num Editorial de Luciano Amaral, os velhos mitos da extrema direita sobre a descolonização de 1974-75, que se enumeram e refutam de seguida.
  1. A descolonização faria parte dos planos dos homens do Estado Novo. Em abono desta tese, são citadas a conspiração de Botelho Moniz e as intenções alegadas e nunca concretizadas de Marcelo Caetano. A primeira abortou (e pontificava nela Costa Gomes, que Amaral deve considerar pouco menos do que um perigoso comunista) e das segundas sabemos que Caetano nada fez de concreto nos seis anos em que poderia ter reformado as instituições coloniais, nomeadamente nos três territórios em que não havia guerra e haveria portanto espaço de manobra para ensaiar novos modelos de relações com a «metrópole» (inclusivamente, num deles, existiam as tais «elites mestiças»).
  2. A guerra não estava perdida militarmente. Este mito vem do pré-Revolução, e esconde que na Guiné-Bissau a tropa estava efectivamente em retirada semi-organizada (com a independência já reconhecida por dezenas de Estados) e que em Moçambique se perdera o controlo de vastas áreas territoriais, embora em Angola se tivesse conseguido conter o MPLA através de um acordo com a UNITA (que penso que não seria o grupo político ideal para promover a «descolonização multirracial, pacífica e sem violência» com que Amaral devaneia à distância de trinta anos...).
  3. O presente das ex-colónias africanas é trágico e tirânico. Esta ideia catastrofista da direita é extremamente parcial. Que eu saiba, Cabo Verde é um dos Estados africanos que mais se aproxima de ser uma democracia plural. Mesmo Moçambique e São Tomé e Príncipe, apesar da estagnação socio-económica, estarão longe da «servidão» de que fala Amaral. Resta um país queimado (por ambos os lados) na Guerra Fria (Angola), e um Estado desestruturado (a Guiné-Bissau). As ex-colónias francesas ou britânicas, convém recordá-lo, não se saíram muito melhor. O que não deriva de opções políticas, mas sim de realidades sociais inelutáveis.
A direita continua a achar que a sua avó salazarista tinha duas rodas. Mas ainda não compreendeu o porquê de a avó nunca ter sido uma bicicleta.

A vitória de Bush

Na última New York Review of Books encontra-se um artigo que despeja alguma luz sobre a vitória de George W. Bush nas eleições presidenciais dos EUA.
O autor do artigo argumenta que os Republicanos triunfaram por conseguirem pintar-se como o partido das classes populares, usando o mesmo pincel para esborratarem os Democratas como aristocratas elitistas desligados das «pessoas comuns». Esta operação, que inverteu com sucesso as posições tradicionais da «luta de classes», utilizou sobretudo as posições «liberais» (reais ou presumidas) dos Democratas em assuntos de «valores» como o casamento de pessoas do mesmo sexo, o aborto ou o direito à morte digna, para os afastar do eleitorado mais pobre e rural, que foi mobilizado com êxito pelos fanáticos religiosos e pelos demagogos radiofónicos da direita. Tendo decidido aproximar-se do chão do meio em questões económicas, os Democratas desguarneceram portanto a outra frente de batalha onde poderiam cativar os eleitores que serão mais prejudicados pelo desmantelamento do Estado de bem-estar e pela descida dos impostos dos mais ricos.
A conclusão (irónica) do artigo é que as guerras de «valores» que serviram para vencer no dia da eleição foram meramente oportunistas. Na realidade, os casamentos homossexuais já eram ilegais na maior parte dos Estados. E a tentativa de George W. de impedir o desenlace do caso Terri Schiavo foi conscientemente fútil.
Assistimos a uma orquestração semelhante em Portugal, nas últimas eleições legislativas. Santana Lopes, de forma desastrada, tentou provocar um sobressalto conservador, que falhou por dois motivos principais. Primeiro motivo, faltou-lhe uma rede de fanáticos de aldeia que pudessem assustar as velhotas beatas com fantasmas como a proibição da Bíblia ou o aborto no nono mês (o que aconteceu nos EUA através da rede de igrejas evangélicas). A ICAR não esteve disponível para este trabalho. Segundo motivo, o PS é, nas mentes populares, um partido conservador moderado. Esta avaliação, do meu ponto de vista, é politicamente correcta. No fim do dia eleitoral, Santana Lopes não podia evitar a derrota.
(Todos os anglicismos usados neste texto foram escritos em consciência.)

Por favor, empurrem-me

Já tem dúvidas! Não tarda nada, engana-se... E entretanto vai pedindo que o empurrem para Belém.

quarta-feira, 27 de abril de 2005

Laicidade lusófona (5): Moçambique

Artigo 12
(Estado laico)
  1. A República de Moçambique é um Estado laico.
  2. A laicidade assenta na separação entre o Estado e as confissões religiosas.
  3. As confissões religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funções de culto e devem conformar-se com as leis do Estado.
  4. O Estado reconhece e valoriza as actividades das confissões religiosas visando promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento económico e social.
(...)

Artigo 292
(Limites materiais)
  1. As leis de revisão constitucional têm de respeitar:
(...)
b) a forma republicana do Governo;
c) a separação entre as confissões religiosas e o Estado;
(...)

(Constituição da República de Moçambique.)

Laicidade lusófona (4): São Tomé e Príncipe

Artigo 8.º
Estado Laico
A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um Estado laico, nela existindo uma separação do Estado e no respeito por todas as Instituições religiosas.
(...)
Artigo 15.º
Princípios de lgualdade
1. Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de origem social, raça, sexo, tendência política, crença religiosa ou convicção filosófica.
(...)
Artigo 27.º
Liberdade de Consciência, de Religião e de Culto
1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4. As confissões religiosas são livres no culto, no ensino e na sua organização.
(...)
Artigo 154.º
Limites materiais da revisão
Não podem ser objecto de revisão constitucional:
(...)
b) O estatuto laico do Estado;
c) A forma republicana de Governo;

terça-feira, 26 de abril de 2005

Richard Dawkins sobre as escolas baseadas na religião

«Dear Secretary of State
The government has decided, reasonably enough, that heredity is no basis for membership of parliament, and the hereditary peers are either gone or on their way. Yet, in the very same year, you propose increasing the number of faith schools. Having disavowed the hereditary principle for membership of parliament, you seem hell-bent on promoting the hereditary principle for the transmission of beliefs and opinions.
(...)
For parents to influence their children's opinions and beliefs is inevitable and proper. But to tie labels to young children, which in effect presume and presuppose the success of that parental influence, is wicked and indefensible. But, you may soothingly say, don't worry, wait till they go to school, it'll be fine. The children will be educated in a variety of opinions and beliefs, they'll be taught to think for themselves, they'll make up their own minds. Well, it would have been nice to think so.
But what do we do? We deliberately set up, and massively subsidise, segregated faith schools. As if it were not enough that we have already fastened belief-labels on babies at birth, those badges of mental apartheid are now reinforced and refreshed throughout schooldays. In their separate schools, children, whose parents and grandparents were segregated in the same way, are separately taught their mutually incompatible beliefs.
(...)
'Protestant children' go to the state-subsidized Protestant school. If they are lucky, they won't actually be taught to hate Catholics, but I wouldn't bank on it, especially in Northern Ireland. The best we can hope for is that they will come out thinking only that there is something a bit alien or odd about Catholics. 'Catholic children' go to the Catholic school. Even if they are not systematically taught to hate Protestants (again, don't bank on it), and even if they don't have to run the gauntlet of hate in the Ardoyne Road, we can be sure they won't be taught the same Irish History as the 'Protestant children' down the street.
(...)
As for what is to be done, of course we don't want to destroy institutions that are working well. The way to be fair to hitherto unsupported denominations is not to give them their own sectarian schools, but to remove the faith status of the existing schools (just as the fair way to balance the bishops in the Lords is not to invite mullahs, monsignors and rabbis to join them, but to throw the existing bishops out). After everything we've been through this year, to persist with financing segregated religion in sectarian schools is obstinate madness.

Yours very sincerely
Richard Dawkins
Charles Simonyi Professor
University of Oxford
(Aconselho a leitura do artigo na íntegra. Está mesmo muito bem argumentado!)

«O maior espetáculo da Terra»

«A agonia, a morte e as exéquias de João Paulo II provocaram uma comoção sem precedentes em todo o planeta. Até agora, só o assassinato do presidente Kennedy fora objeto de uma emoção parecida, embora, postas numa balança, a repercussão internacional deste último episódio resulte mínima comparada à do falecimento do primeiro papa polonês da História.
Deve-se ver nesse extraordinário espetáculo um fenômeno superficial, meramente midiático, instigado pela curiosidade frívola que os meios de comunicação haviam mantido em ebulição, transformando Karol Wojtyla, desde aquele 16 de outubro de 1978 em que subiu à cadeira de São Pedro até sua morte, num dos ícones mais divulgados da atualidade? Sem dúvida, esse é um fator a considerar na hora de explicar a quase incrível mobilização destes dias e a atenção de boa parte do mundo voltada a Roma por causa do desaparecimento do Sumo Pontífice. Mas é um fator entre outros, mais sérios, que convém tratar de perfilar, já que contém advertências sobre a realidade política, espiritual e cultural do mundo em que vivemos e seus caminhos imediatos.
A personalidade carismática e enérgica, de grande comunicador, e a coragem pessoal que João Paulo II demonstrou ao longo de seu pontificado devem ser levadas em conta, é claro, assim como a rotundidade retilínea de suas convicções, algo que atrai muitos mortais, pois lhes dá segurança, os exonera das corrosivas dúvidas e os absolve de ter de escolher entre opções às vezes dilacerantes. Que outro, sobretudo se esse outro é alguém tão resoluto e claro como Wojtyla, creia, pense e decida por alguém é algo que não só seduz muitos católicos; trata-se de uma debilidade à qual é propensa boa parte da humanidade, e não só entre os crentes, pois também ateus e agnósticos sucumbem a essa tentação. É certo, também, que sua pregação em favor da paz, dos pobres, da aproximação às outras igrejas,principalmente a judaica, e da solução negociada dos conflitos e seus esforços nesse campo, durante a crise dos Bálcãs, por exemplo, ou em prol de uma reabertura do diálogo entre Israel e Palestina, contribuíram para lhe conferir uma imagem de líder sensível e carregado de humanidade.
Dito isso, a idéia de democracia de João Paulo II não era precisamente aquela cultivada por muitos de nós que nos consideramos democratas e para quem os âmbitos da religião e do Estado devem estar tão claramente diferenciados quanto o privado e o público. A idéia de um Estado laico e uma religião confinada na esfera individual e familiar era intolerável para este papa que nunca deixou de condenar com firmeza toda medida social e política que entrasse em conflito com os ensinamentos da Igreja, ainda que se tratasse de disposições e leis aprovadas por governos de inequívoca origem democrática, respeitosas do sistema legal vigente e apoiadas pela maioria da população. A idéia de consensos alcançados com base em concessões recíprocas, de coexistência na diversidade de modos de vida e de costumes e práticas diferentes e às vezes inimigos entre si - a essência mesma de uma sociedade democrática - tinha para João Paulo II uma limitação dogmática: para os não-católicos também não devia ser tolerado aquilo que ao rebanho católico era proibido e, segundo sua mensagem explícita, as leis da cidade assim deviam determinar. No uso do preservativo, no divórcio e na descriminação do aborto, entre outros temas, sua intransigência foi inabalável. Essa concepção da democracia respondia a um modelo ideal que, mais que social cristão, era excludentemente social católico.
Depois do nazismo e do comunismo, outra besta negra para Karol Wojtyla foi o liberalismo, que ele denunciou com severidade destemperada em suas encíclicas. Ele enxergava no liberalismo, como nas caricaturas e estereótipos dos marxistas sobre o capitalismo, a origem de um sistema materialista, desumanizado, rapinante e explorador, que sufoca a vida espiritual, incita à cobiça e ao individualismo egoísta, aumenta os abismos econômicos entre ricos e pobres e relaxa a moral e os costumes.
Por isso, atacava o mercado livre, descria da competência concedida ao veredicto dos consumidores e defendia um intervencionismo estatal na economia que, guiado pela doutrina da fé católica, impedisse os excessos, redistribuísse os benefícios e garantisse a justiça social. A transparente boa intenção e a eloqüência fogosa com que o papa vindo de Cracóvia promovia essas idéias não podem atenuar seu anacronismo. Sua rejeição da modernidade não dizia respeito somente ao domínio econômico. Era ainda mais contundente quanto ao sexo e às relações humanas. Se, a partir do Concílio e do pontificado de João XXIII, os chamados católicos "progressistas" cultivavam ilusões sobre um"aggiornamento" da Igreja, que admitisse o controle da natalidade, que os sacerdotes se casassem, que a mulher assumisse funções sacerdotais, e ainda medidas como a eutanásia, os matrimônios gays e a clonagem de órgãos humanos, logo descobriram que, com João Paulo II, a Igreja não só não faria a menor concessão em nenhum desses assuntos como, pelo contrário, retrocederia até as posições mais tradicionais e intolerantes.
O paradoxal é que essa regressão conservadora, ao invés de acentuar as divisões numa Igreja que já se encontrava muito dividida, parece tê-las cancelado por um período que poderia ser longo. É uma das façanhas de João Paulo II: ter conseguido uma unificação, um alinhamento na Igreja católica que ninguém teria se atrevido a prever há um quarto de século.
Parece evidente que, hoje, a instituição está mais coesa, menos ameaçada por crises e divisões, do que nunca antes em meio século. A unificação foi obtida pelo método mais expedito: expulsando do rebanho os dissidentes e heterodoxos ou, no mais indolor dos casos, mantendo-os dentro, mas mudos e invisíveis. A Teologia da Libertação está liquidada e os que ainda a apregoam aos brados, como LeonardoBoff, ou os teólogos críticos e pugnazes da linha oficial vaticana, como Hans Küng, fazem mais ruído fora do que dentro da Igreja, onde sua influência, por obra do papa falecido, parece decadente e talvez extinta. Gustavo Gutiérrez conserva seu prestígio, mas suas posições se moderaram muito e tudo indica que a mais alta hierarquia já não as considera "subversivas". Prelados e sacerdotes "progressistas" foram marginalizados e substituídos em cargos de responsabilidade por quem defende a tradição. Nos 27 anos de pontificado de João Paulo II, as organizações mais próximas da ortodoxia conservadora, como Opus Dei, Legionários de Cristo, Sodaliscium, entre outras, se beneficiaram de um apoio entusiasta e conseguiram uma posição poderosa dentro da instituição. Ao menos por enquanto, os católicos "progressistas" parecem uma espécie encurralada, lutando contra a extinção.
Como não é concebível que uma sociedade progrida e prospere sem uma vida espiritual e religiosa, e, no caso do Ocidente, religião quer dizer sobretudo cristianismo, teria sido desejável que o catolicismose adaptasse, como já fez no passado, quando as circunstâncias o obrigaram a aceitar a democracia, às realidades de nosso tempo em matéria sexual, moral e cultural, começando pela emancipação da mulher e terminando pelo reconhecimento do direito à igualdade das minorias sexuais. No entanto, em grande medida por obra da formidável personalidade de Wojtyla e sua pregação contagiante, aconteceu o contrário. Isso não deixará de ter efeitos sobre a vida política e, na Europa, talvez signifique uma involução antiliberal semelhante à que teve lugar nos Estados Unidos com a irrupção dos movimentos religiosos fundamentalistas nos processos eleitorais.
Como explicar que um papa de corte tão inequivocamente antimoderno seja chorado, venerado e lembrado por tantos homens e mulheres, dentro e fora da Igreja Católica? Porque em terra de cego quem tem um olho é rei. Nesta época de grandes naufrágios ideológicos, os antigos sistemas filosóficos que pretendiam substituir, ou complementar, a religião como explicação do mundo e da História e estabelecer pautas para a convivência, o progresso e a justiça caíram em total descrédito. Tudo isso se reflete na mediocrização generalizada dos líderes políticos e na decepção provocada pelo oportunismo e o cinismo de que os governantes mais conspícuos costumam se vangloriar. Nesse contexto, o surgimento de alguém tão claramente guiado por princípios em sua atuação, tão coerente e persuasivo e tão dotado para acomunicação preencheu um vazio e lhe rendeu uma imensa popularidade. Em suas incansáveis excursões pelo mundo, ele logo alcançou uma estatura de gigante. Seu êxito, ao contrário do que alguns escreveram nestes dias, não se deve a suas idéias antiquadas e a seu reacionarismo. Raríssimas vezes as idéias conquistam o grande público. Foram os gestos, as imagens, emoções e paixões que ele era capaz de despertar com sua palavra e suas obras, e também com a percepção, acertada ou equivocada, de que atrás de tudo isso havia, em quem assim atuava, um ser de exceção, que fizeram de Wojtyla um herói de nosso tempo.
Não sou crente e os assuntos do outro mundo nunca me importaram. Se ele existe, talvez ali o magistério e as realizações de João Paulo II sejam proveitosos para as almas. Neste, temo que tenham deixado um tanto maltratada a cultura da liberdade
(Mario Vargas Llosa em O Estado de S. Paulo, 17/4/2005)

25 de Abril com a ARL

...E foi um belo 25 de Abril. Como já se está a tornar habitual, descemos a Avenida da Liberdade com a Associação República e Laicidade. Fomos mais do que o ano passado. No próximo ano seremos mais ainda, quase de certeza.

A Deus o que é de Deus, a César o que é de César, Abril é laico!
Nem rei nem Concordata, República laica!
Liberdade, Igualdade, Fraternidade!

sexta-feira, 22 de abril de 2005

O artigo II-70 da «Constituição europeia»

O confessionalismo do Tratado Constitucional europeu não se revela apenas no artigo I-52 e no Preâmbulo. O artigo II-70, que tem sido defendido como sendo a transcrição do artigo 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, fá-lo sem reproduzir o segundo parágrafo desse artigo.
«Artigo 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
  1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.
  2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.»
O Tratado Constitucional reteve, destes dois parágrafos, apenas o primeiro. Porquê?

Laicidade lusófona (3): Cabo Verde

Artigo 2º
(Estado de Direito Democrático)
(...)
2.A República de Cabo Verde reconhece e respeita, na organização do poder político, a natureza unitária do Estado, a forma republicana de governo, a democracia pluralista, a separação e a interdependência dos poderes, a separação entre as Igrejas e o Estado, a independência dos Tribunais, a existência e a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública.
(...)
Artigo 48º
(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1.É inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, todos tendo o direito de, individual ou colectivamente, professar ou não uma religião, ter uma convicção religiosa da sua escolha, participar em actos de culto e livremente exprimir a sua fé e divulgar a sua doutrina ou convicção, contanto que não lese os direitos dos outros e o bem comum.
2.Ninguém pode ser discriminado, perseguido, prejudicado, privado de direitos, beneficiado ou isento de deveres por causa da sua fé, convicções ou prática religiosas.
3.As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são independentes e livres na sua organização e exercício das suas actividades próprias, sendo consideradas parceiras na promoção do desenvolvimento social e espiritual do povo cabo-verdiano.
(...)
7.É assegurada protecção aos locais de culto, bem como aos símbolos, distintivos e ritos religiosos, sendo proibida a sua imitação ou ridicularização.
(...)
Artigo 49º
(Liberdade de aprender, de educar e de ensinar)
1.Todos têm a liberdade de aprender, de educar e de ensinar.
2.A liberdade de aprender, de educar e de ensinar compreende:
(...)
A proibição de o Estado programar a educação e o ensino segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas;
A proibição de ensino público confessional;
(Constituição da República de Cabo Verde.)

quinta-feira, 21 de abril de 2005

Laicidade lusófona (2): Brasil

Preâmbulo
Nós, representantes do povo brasileiro (...) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
(...)
Art. 19.
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
(...)

Laicidade lusófona (1): Angola

Artigo 10º - (Estado Laico)
1. A República de Angola é um estado laico, havendo separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas.
2. As religiões são respeitadas e o Estado dá protecção às igrejas, lugares e objectos de culto, desde que não atentem contra a Constituição e a ordem pública e se conformem com as leis do Estado.
(...)
Artigo 344º - (Limites Materiais de Revisão)
As Leis de revisão constitucional têm de respeitar:
(...)
d) A forma republicana do Governo;
(...)
k) A laicidade do Estado;

A elevação dos deputados conservadores

Frase dirigida por Nuno Melo (líder da bancada do CDS/PP) à deputada Helena Pinto (BE), durante o debate parlamentar sobre a despenalização do aborto.
Não há dúvidas. Quanto a elevação, regras de boa educação e princípios éticos de debate, os nossos conservadores excedem-se. Suponho que se alguém replicasse «o Nuno Melo está bêbado e quase a vomitar a bancada» ninguém se importaria, pois as regras de boa educação são recíprocas. Ou será que a convicção de estar do lado correcto concede indulgência instantânea?

Padres, católicos, casados

Sim, existem padres católicos casados. Ao contrário do que muita gente pensa, a regra do celibato não é dogmática. É uma regra disciplinar.
Historicamente, existe notícia de padres que viviam maritalmente na «igreja cristã primitiva» (fosse lá isso o que fosse). E a regra do celibato só foi imposta no século 11 da nossa era. Ler aqui.
Actualmente, existem padres católicos casados. As situações em que tal acontece são, pelo menos, as três seguintes:
  1. Padres católicos do rito «oriental» praticado na Ucrânia, Chéquia, Hungria, Eslováquia e outras áreas da fonteira entre catolicismo romano e cristianismo ortodoxo. Este rito, embora sob a autoridade da Igreja romana, está muito próximo das tradições da ortodoxia eslava, e uma dessas tradições é justamente a possibilidade de os padres se casarem. A ICAR tem tentado restringir esta situação, nomeadamente proibindo que padres deste rito mas fora da zona geográfica referida sejam casados. Mais detalhes aqui.
  2. Padres de igrejas protestantes que, desgostados com a heterodoxia crescente das suas igrejas, as abandonam e, conjuntamente com os seus «rebanhos» ou não, aderem à ICAR. Esta situação ocorreu com alguns grupos de Episcopais e até de Anglicanos, sobretudo nos EUA mas também na Europa, e foi autorizada por JP2 em 1980. Alguns desses sacerdotes eram casados quando mudaram de igreja, e continuaram a sê-lo depois de serem ordenados como padres católicos do rito «latino». No entanto, os novos padres destas paróquias não poderão ser casados. Mais detalhes aqui, ou acolá.
  3. Padres que casaram civilmente. Parece ser uma situação menos rara do que se pensa nos EUA. Possivelmente, alguns até darão missa. Outros continuam a prestar «assistência pastoral», embora estejam, formalmente, fora da ICAR. Existe mesmo um movimento chamado «Rent-a-Priest» nos EUA.
Curioso, não é? Já a regra de não ordenar mulheres parece ser mesmo dogmática...

quarta-feira, 20 de abril de 2005

França: alarga-se a vantagem do «non»

Segundo a última sondagem, 55% dos franceses estarão dispostos a rejeitar o Tratado Constitucional, enquanto 45% estarão pelo «sim». A mesma empresa dava anteriormente 53% e 47%, respectivamente. Portanto, alarga-se a vantagem do «non».
A mesma sondagem dá a percentagem de indecisos em baixa, de 33% para 28%.
É muito curioso verificar que 63% do eleitorado de esquerda está pelo «não», enquanto 65% do eleitorado de direita está pelo «sim». Trata-se, claramente, do necessário «non de gauche».

terça-feira, 19 de abril de 2005

«La laïcité ne doit pas privilégier une religion au dépend des autres»

«J’ ai participé aux travaux de la commission présidée par Bernard Stasi avec le souci constant d'y faire valoir la laïcité, sans privilège d'aucune religion, ni des religions par rapport aux humanismes athée ou agnostique. Il en allait selon moi de l'égalité républicaine, qui exclut toute hiérarchie entre les convictions spirituelles. Il en allait également de l'authenticité d'une vie spirituelle déliée, qui ne se confond pas avec le désir de privilèges temporels. J'ai souhaité une réaffirmation laïque non seulement par la loi qui protège l'école de toutes les manifestations ostensibles d'appartenance religieuse mais aussi par diverses recommandations propres à promouvoir la laïcité chaque fois qu'elle est mise en cause. Ainsi, le rapport de la commission rappelle qu'il n'est pas normal que certaines communes de France ne disposent pas d'écoles publiques, et propose que les cours de religion dans les départements concordataires d'Alsace-Moselle cessent d'être systématiquement inscrits dans l'horaire normal des enseignements. Imaginerait-on des cours d'humanisme athée avec obligation pour les familles de croyants de solliciter une dispense de ces cours pour leurs enfants ? Je regrette que le gouvernement s'en soit pour l'instant tenu à la seule loi concernant les signes ostensibles. Il fallait par ailleurs que soit exemplaire l'attitude des responsables politiques, de droite ou de gauche, pour que l'action entreprise en faveur de la laïcité soit crédible. Nous sommes loin du compte.
J'ai appelé de mes voeux la loi adoptée en mars 2004, et je me félicite de son adoption par l'Assemblée nationale, car elle est fondamentalement juste. Mais, pour lui donner toute sa lisibilité dans l'opinion, il me semble que les représentants du peuple se doivent de ne pas laisser croire que la laïcité peut être à géométrie variable, en acceptant pour la religion catholique une violation de la neutralité de la sphère publique qui est refusée à une autre religion. Je me souviens d'avoir défendu la loi sur Radio Beur, en rappelant à un auditeur de confession musulmane qu'en 1905 la loi de séparation laïque avait reconduit l'_expression de la foi catholique, alors dominante dans le pays, à la sphère privée, individuelle ou collective, et que cent ans après cette règle devait être appliquée à toutes les religions. Je me suis d'ailleurs constamment insurgé contre l'appellation indue de «sur le voile», aussi mal intentionnée que fausse, puisque la loi concernait toutes les religions. En effet, c'est une telle appellation qui tend à produire le sentiment de stigmatisation qu'elle prétend dénoncer.
Aujourd'hui, je n'en suis donc que plus révolté par les atteintes au principe de laïcité auxquelles nous venons d'assister ces derniers jours, à l'occasion de la mort du pape et de son obsédante médiatisation publique. Les drapeaux en berne, l'implication officielle des autorités de la République dans des cérémonies religieuses, l'injonction au deuil public d'un chef religieux par l'instrumentalisation de l'émotion, ont eu quelque chose d'inique et même d'indécent au regard de l'authentique chagrin de ceux qui étaient touchés, car celui-ci s'éprouve avant tout dans l'intimité de la conscience et ne requiert aucune mise en scène.
Je mesure que la pédagogie recommandée dans l'application de la loi salutaire qui bannit des établissements scolaires publics les signes ostensibles d'appartenance religieuse sera désormais plus difficile à mettre en oeuvre. Il sera en effet moins aisé d'expliquer à une jeune fille ou à un jeune homme que la retenue s'impose au sein de l'école, quand celle-ci est invitée à une démonstration symbolique dont la dimension religieuse, quoi qu'on en dise, est évidente. Il faudra quand même le faire, car on ne saurait justifier que la laïcité soit mise à mal sous prétexte que par ailleurs une faute a été commise contre elle. Le ruban qui a noué les drapeaux en berne des établissements scolaires publics ne peut-il pas, toutes proportions gardées, être perçu comme une sorte de manifestation religieuse ostensible ? L'article 28 de la loi de 1905 interdit tout marquage de type religieux des édifices publics. On peut considérer qu'une telle exigence ne vise qu'à assurer l'égalité de traitement de tous les citoyens, et doit donc être observée avec vigilance. La responsabilité de l'institution publique elle-même est en jeu. L'argument sophistiqué de l'hommage à un «chef d'Etat» ne peut tromper personne. D'abord parce que bien des chefs d'Etat sont morts sans que la France mette les drapeaux en berne. Ensuite parce qu'il est démenti par la nature même des éloges dithyrambiques adressés au pape défunt. Jamais ceux-ci n'ont invoqué ses qualités supposées d'homme d'Etat ; seules ont été mises en avant les actions liées à son magistère religieux. Les éloges, généralement dépourvus de tout sens critique, ont d'ailleurs confiné à l'idolâtrie, comme si le respect dû à un homme ­ à tout homme ­ devait impliquer son apologie sans mesure. Je n'entends pas ici juger l'oeuvre du pape, et je respecte l'affliction de ceux qui sont touchés par sa disparition, comme je respecte l'homme de conviction qu'il fut. Mais je considère que la République laïque n'a pas à porter le deuil d'un chef religieux. En d'autres temps, Georges Clemenceau refusa toute présence officielle de son gouvernement à un Te Deum à Notre-Dame de Paris, donné en hommage aux morts de la Première Guerre mondiale. L'émotion était pourtant très vive, car il n'y avait pas en France une famille qui ne comptât un mort ou un blessé. Mais le souci de l'universalité, et le respect des principes, firent rappeler que ces morts n'étaient pas tous croyants, non plus que les citoyens de la République française. Par respect égal de tous, les membres du gouvernement qui voulaient participer à l'office religieux ne devaient le faire qu'à titre privé.
On reste songeur quand les préfets sont invités à assister en tenue, ès qualité, à des hommages religieux au «Saint-Père» alors qu'il est recommandé aux fonctionnaires, au nom de la nécessaire réserve laïque, de ne pas se produire dans des manifestations électorales à l'approche du référendum. D'un côté, on bafoue la sphère publique par un marquage religieux légitimement vécu comme discriminatoire par les citoyens athées, agnostiques, ou adeptes d'autres religions. D'un autre, on bafoue l'indépendance de la sphère privée, qui recouvre en termes de droit la faculté de participer librement au débat public sur le traité constitutionnel européen, pourvu que ce soit en dehors de l'exercice de ses fonctions. Pour ma part, je ne me priverai pas de cette possibilité, alors que j'entends continuer à respecter scrupuleusement la réserve laïque dans l'exercice de mes fonctions de professeur. Jamais mes élèves n'ont pu tirer de mes cours une indication concernant mon option spirituelle. Lorsque l'un d'entre eux me demande si je suis croyant ou athée, je refuse de répondre, en justifiant mon silence à la fois par le caractère privé de ma conviction spirituelle et par l'invocation de la laïcité, qui me fait obligation de ne mentionner de façon préférentielle ni l'athéisme ni la religion. Le respect de la neutralité, en la matière, vaut aussi respect égal des croyants et des athées. Je m'étonne que cette déontologie laïque, souvent rappelée aux enseignants, ne soit pas mise en oeuvre par ceux dont l'attitude doit être exemplaire en raison même de leur visibilité publique. Les représentants du peuple sont-ils ceux de tous les Français, ou seulement de ceux qui croient en Dieu ? La même remarque peut valoir aussi pour les chaînes de télévision publique, certes fondées à couvrir un événement dont nul ne nie l'importance, mais également tenues de respecter une juste mesure et une certaine distance, ne serait-ce par simple respect de la diversité des convictions spirituelles des téléspectateurs.
La laïcité unit tous les hommes, quels que soient leurs choix spirituels. Ne peuvent donc être privilégiés par l'Etat et les institutions publiques ni la religion ni l'athéisme. Sachons nous souvenir de l'hommage du poète à l'union des athées et des croyants dans la lutte pour la liberté, qui pourrait valoir aussi pour celle des citoyens dans le souci des seules références universelles :
«Celui qui croyait au ciel/ Celui qui n'y croyait pas,/ Qu'importe comment s'appelle/ Cette clarté sur leurs pas/Quand l'un fût de la chapelle/ Et l'autre s'y dérobât/ Tous les deux étaient fidèles/ Des lèvres du coeur des bras» (Louis Aragon)»
(Artigo de Henri Peña-Ruiz no Libération de 15 de Abril de 2005; Peña-Ruiz é filósofo e autor de vários livros sobre a laicidade.)

segunda-feira, 18 de abril de 2005

Citações de Michel Onfray

«On ne tue pas un rêve, on n'assassine pas un subterfuge. Ce serait plutôt lui qui nous tue, car Dieu met à mort tout ce qui lui résiste. En premier la raison, l'intelligence, l'esprit critique
«Déconstruire les monothéismes, démystifier le judéo-christianisme - mais aussi l'islam, bien sûr - puis démonter la théocratie, voilà trois chantiers inauguraux pour l'athéologie.
De quoi travailler ensuite à une nouvelle donne éthique et produire en Occident les conditions d'une véritable morale post-chrétienne, où le corps cesse d'être une punition, la terre une vallée de larmes, la vie une catastrophe, le plaisir un péché, les femmes une malédiction, l'intelligence une présomption, la volupté une damnation.»
«Je ne sache pas que les Papes, les Princes, les Rois, les Califes, les Emirs aient majoritairement brillé dans la vertu tant déjà Moïse, Paul et Mahomet excellaient respectivement pour leur part dans le meurtre, les passages à tabac ou les razzias
«Le religieux conduit à l'émasculation, il vise la castration des énergies, leur inclusion dans des instances qui les stérilisent. L'Etat et L'Eglise excellent dans ces entreprises. La religion produit des communautés et celles-ci s'évertuent à fonctionner de manière autonome, instruisant leur dossier pour produire, ensuite, des lois, des ordres, des règles, des commandements auxquels il s'agit de se subordonner. Abdiquer sa souveraineté au profit d'une sécurité obtenu par le groupe, c'est toute l'alchimie du contrat social auquel voudrait nous faire croire ses partisans
Michel Onfray é filósofo e o autor do «Traité d´athéologie».
(Sítio oficial; mais citações aqui.)

Eu sou um «laicista radical»

O texto reproduzido em baixo foi enviado ao jornal Público em resposta a um artigo de Vital Moreira intitulado «Constituição europeia e religião». Nesse artigo, Vital Moreira acusava pessoas indeterminadas de serem «laicistas radicais» e «fundamentalistas» por defenderem a supressão do artigo I-52 da Constituição europeia, ou seja, por defenderem a laicidade da União Europeia. O Público entendeu não publicar esta carta de leitor. Fica aqui reproduzida.

«Senhor Director,
No Público de 12/4/2005, para minha perplexidade,Vital Moreira (VM) acusa os laicistas que se opõem à Constituição europeia de serem «radicais» e «fundamentalistas». VM defende, surpreendentemente, a institucionalização do diálogo europeu com as igrejas (estabelecido no artigo I-52), que apresenta como «condição da democracia participativa» (que prefere à democracia representativa?), mas não desmente que assim se institui um regime europeu semi-confessional distinto da separação das Igrejas do Estado que, felizmente, vigora em Portugal desde a Constituição (laicista «radical» e «fundamentalista»?) de 1976. VM nem sequer manifesta estranheza por a Constituição europeia separar o diálogo com as igrejas e organizações filosóficas do diálogo com as associações da sociedade civil, este já incluído no artigo I-47. Omite igualmente que o artigo I-52, ao também proteger contra a legislação europeia o estatuto de que gozam as igrejas ao nível nacional, evita que a legislação europeia contra a discriminação religiosa ou contra as sonegações de fundos afecte as igrejas, e perpetua os seus privilégios nacionais relativamente a outras associações, tornando assim o dito «diálogo» muito desigual.
Concordo no entanto com VM quando afirma que o Preâmbulo, na sua forma actual, confere à democracia e aos direitos fundamentais uma inspiração parcialmente religiosa inexacta, pois estas liberdades afirmaram-se, historicamente, em oposição ao poder das igrejas.
Tudo somado, espanta-me que VM não veja, mesmo perante o apoio das igrejas europeias ao Tratado Constitucional, que este não é laico. É caso para dizer que o europeísmo, como se diz do amor, pode cegar.
Ricardo Alves
13/4/2005»

sexta-feira, 15 de abril de 2005

«Soundbytes» ou «sound bites»?

Este vai parecer um artigo mesquinho, mas como este blogue é pessoal decidi conceder-me um momento de irritação pura com um erro de ortografia muito comum.
Alguns indivíduos da nossa praça pública escrevem correntemente, há cerca de dez anos, «soundbyte» quando se querem referir a um comentário rápido e mordaz feito por um político. Não se trata de mais do que uma tendência muito contemporânea para querer parecer sofisticado inserindo palavras inglesas em textos escritos por portugueses e destinados a portugueses. O cómico é que «soundbyte» (com y) contém um erro de ortografia e induz um significado distinto. «Soundbyte» (com y) é um volume de som embalado ou transportado electronicamente. Em tradução livre, um «soundbyte» é um volume de som, um «byte» de informação sonora. O que eles querem dizer escreve-se «sound bite», e traduz-se literalmente como «mordidela» (do verbo to bite) sonora (poderia usar-se também bitaite). É assim que a imprensa de língua inglesa escreve, mas os tais que puseram o termo a circular em Portugal, dada a sua cultura anglófona eminentemente televisiva, nunca viram a diferença escrita.
O erro propagou-se e é agora muito comum, aparentemente como símbolo de anglofilia e elevação cultural. Na realidade é o seu contrário. O que é divertido.
(Quem não acredita que consulte o Dicionário.)

quinta-feira, 14 de abril de 2005

Procurar as diferenças

«Passaram pouco mais de cem anos sobre a queda do poder temporal dos papas, caso contrário, também eu, presentemente, seria um papa-rei com exércitos armados e, talvez, com uma polícia para defender os bens, as terras e os palácios do papa. Como teria sido bonito se o papa tivesse renunciado espontaneamente ao poder temporal! Deveria tê-lo feito antes
Quem assim falou foi o Papa João Paulo 1, o tal que, ao fim de trinta e três dias de reinado, morreu em circunstâncias que em qualquer país civilizado implicariam uma autópsia (como morreu no Vaticano, nunca houve autópsia). A simples ideia de que a ICAR ter perdido poder temporal é uma coisa boa apela à imaginação: será que Albino Luciani se preparava para reconhecer a soberania da República italiana sobre o Vaticano, aproximando assim a ICAR de se tornar uma mera instituição da sociedade civil?
E qual foi o papel efectivo do «caso Ambrosiano» no desaparecimento deste homem? Talvez um dia se venha a saber a verdade...
(Palavras de Albino Luciani encontradas no Terra da Alegria.)

quarta-feira, 13 de abril de 2005

Religião obrigatória em Timor?

A ICAR de Timor-Leste está em guerra aberta com o Governo da FRETILIN. A razão é o ensino da religião católica nas escolas públicas, que o Governo quer que deixe de ser obrigatório e de ter peso na nota final. Os bispos locais reagiram atacando o Governo, e muito particularmente Mari Alkatiri, que é muçulmano.
Comentários?
  1. Como sabia Afonso Costa, a ICAR só recua empurrada. É tudo uma questão de relação de forças. Em Timor, tendo a força que tem, não hesita em querer obrigar todos os jovens a serem doutrinados na religião católica. Por cá, está numa posição mais recuada apenas porque as circunstâncias a obrigam.
  2. Ficam também à vista as consequências da promoção mediática que foi feita de Ximenes Belo e da ICAR como símbolos da resistência timorense. Os objectivos deles nunca foram uma democracia laica, sempre foram o confessionalismo de Estado. E o resultado está à vista: a ICAR local comporta-se como um poder político.

terça-feira, 12 de abril de 2005

O PR não é neutro

O Presidente da República assumiu-se em Paris como um «partidário do "sim"» ao Tratado Constitucional europeu, e sugeriu que se empenhará na campanha cá em Portugal.
Embora eu seja um partidário do «não», não me causa qualquer incómodo que o PR tome posição. Acho mesmo que o Presidente só se deve abster de se pronunciar em questões partidárias. E lamento, isso sim, que Jorge Sampaio não pareça disposto a empenhar-se da mesma forma no referendo pela despenalização da IVG.

segunda-feira, 11 de abril de 2005

Hirsi Ali: «Daughter of the Enlightenment»

Apesar de o New York Times electrónico ser um serviço pago, a entrevista de Christopher Caldwell a Aysan Hirsi Ali circula por vários fóruns. Pode ser encontrada, na íntegra, ali. Seguem alguns excertos.
«Hirsi Ali was an obedient, serious girl. Her religious observance drifted between the devout and the fanatical. But this did not stop her growing realization that there was less scope for women than for men in her world, or her sense that Islam was to blame for it. A crisis came in 1992, when her father contracted her in marriage to a Somali-Canadian cousin she did not know. After a wedding ceremony in Kenya, she followed him on a flight to Canada. During a layover in Germany, scheduled for the completion of her immigration paperwork, she decided to bolt -- an idea that did not occur to her, she says, until she arrived in Europe.
(...)
On Tuesday, Sept. 11, 2001, Hirsi Ali was in her second week of work as a researcher at the think tank of the center-left Labor Party, a job she'd sought after a short corporate stint peddling drugs to doctors for GlaxoSmithKline. Although she now describes herself as an atheist (''I do not believe in God, angels and the hereafter''), she had not at that point wholly lost her faith. The water-cooler talk that week was converging on agreement that it was simplistic to blame the attacks on Islam. Hirsi Ali begged to differ. She had been haunted by the letter left by the hijacker Mohamed Atta, in which he reminded his accomplices to pray for martyrdom. ''If I were a male under the same circumstances,'' she says, ''I could have been there. It was exactly what I used to believe.''
(...)
She took the floor at a conference in an Amsterdam political club to say that what Islam needed was not understanding from others but its own Voltaire.
(...)
''Submission Part 1'' the 11-minute film that Hirsi Ali conceived and wrote and that van Gogh directed, was shown on television soon thereafter. It presented four fictional episodes. All involved violence against women and the Koranic verses that had been, or could be, used to justify it. These verses were written on the skin of the actresses' seminaked bodies.
(...)
Her defenders use the same term to praise her that detractors use to sneer at her: she is a ''model immigrant.''
(...)
Until recently, the Netherlands adhered to a national policy cumbersomely known as ''integration with maintenance of one's own identity.'' It arose partly out of unspoken guilt over the country's failure to save many Jews under German occupation during World War II and partly out of a modish multiculturalism. But letting ethnic communities go their own way also had a long history in the Netherlands. The ''Pacification'' of 1917 formalized a system in which different groups -- Catholics, Protestants, secular citizens and others -- lived in separate institutional universes, or ''pillars.'' A Catholic would typically attend a Catholic school, read a Catholic newspaper, join a Catholic trade union and social club and vote for a Catholic political party.
(...)
In 2002, Bolkestein's VVD persuaded Hirsi Ali to leave her Labor policy group to take a place on the VVD's parliamentary list for the next election. Some on the left greeted her departure with relief -- Labor usually competes with two other left parties for Muslim votes, and activists had threatened to withdraw support for Labor when Hirsi Ali began speaking out. Still, it is a natural question whether the VVD -- traditionally a businessmen's party -- is the right place for a Third World feminist.
(...)
Until the arrival of Hirsi Ali, Dutch feminists tended to duck when there appeared to be a conflict between the rights of women and the culture of immigrants.
(...)
''I confront the European elite's self-image as tolerant,'' she says, ''while under their noses women are living like slaves.''
(...)
Hirsi Ali claims a direct line of intellectual inheritance from the Dutch Enlightenment (...) She calls Spinoza her biggest Western inspiration.
(...)»

«Not in my name»

«With the clash of two state funerals and a wedding, unreason is in full flood this week. Yet again, rationalists who thought they understood this secular, sceptical age have been shocked at the coverage from Rome.
(...)
The millions pouring into Rome (pray there is no Mecca-style disaster) herald no resurgence of Catholicism. The devout are there, but this is essentially a Diana moment, a Queen Mother's catafalque. People queue to join great public spectacles, hoping it's a tell-my-grandchildren event.
(...)
Bill Clinton had it right yesterday: "The man knows how to build a crowd." Curiously, the celebrity nature of this event - a must-do for 200 world leaders - signifies the opposite of what it seems. It shows how far people have forgotten what the church really is, how profoundly ignorant and indifferent they have become to history and theology. Hell, he was just a good ol' boy, wore white, blessed folk, prayed for peace - why not?
(...)
The Vatican's deeper power is in its personal authority over 1.3 billion worshippers, which is strongest over the poorest, most helpless devotees. With its ban on condoms the church has caused the death of millions of Catholics and others in areas dominated by Catholic missionaries, in Africa and right across the world. In countries where 50% are infected, millions of very young Aids orphans are today's immediate victims of the curia. Refusing support to all who offer condoms, spreading the lie that the Aids virus passes easily through microscopic holes in condoms - this irresponsibility is beyond all comprehension.
(...)
But genuflecting before this corpse is scarcely different to parading past Lenin: they both put extreme ideology before human life and happiness, at unimaginable human cost.
(...)
A Vatican edict in the 1960s threatened to excommunicate anyone breaking secrecy on child sex allegations, and guaranteed that ever more children continued to suffer.
(...)
Still the Vatican turns a blind eye to this most repugnant and damaging of all sexual practices, the suffering little children whose priests come unto them. Yet at the same time it thunders disapproval of sex in every other more innocent circumstance, blighting the lives of millions with its teaching on gays, divorce, abortion and unrealistic self-denial. There is no reckoning how many of the world's poorest women have died giving birth to more children than they can survive; contraception is women's true saviour.
(...)
At the funeral will be a convocation of mullahs, rabbis and all the other medieval faiths that increasingly conspire together against modernity. Islamic groups are sternly warning the Vatican to stand firm against liberal influences on homosexuality, abortion, contraception and the ordination of women. What is it about religion that unites them all on sex? It always expresses itself as disgust for women's bodies, leading to a need to suppress women altogether. Why is controlling women's bodies the shared battle flag of every faith?»
(Polly Toynbee, no The Guardian.)

quinta-feira, 7 de abril de 2005

Direito de solo

O artigo de Rui Pena Pires (RPP) no Diário de Notícias de hoje é uma defesa notável (e muito republicana) das alterações de que a lei da nacionalidade carece. RPP aponta o sentido das alterações necessárias: «em primeiro lugar, consagrar a aquisição da nacionalidade portuguesa originária pelos filhos de estrangeiros nascidos em Portugal; em segundo, facilitar a naturalização dos estrangeiros residentes após um período mínimo de permanência no País». Efectivamente, a lei da nacionalidade portuguesa está, mais do que seria desejável, próxima da aquisição da nacionalidade pelo «direito de sangue» (inclusivamente atribuindo a nacionalidade portuguesa a descendentes de emigrantes que residem no estrangeiro e aí estão radicados), embora seja prioritário, num momento de grande movimento imigratório, que quem nasce em Portugal seja automaticamente português («direito de solo»). Assim se facilitaria a plena inclusão dos imigrantes.
Como RPP argumenta, a integração na República passa pelo acto político de reconhecer a nacionalidade e assim a cidadania plena.

Um padre pela laicidade?

«Por estes dias, foi enviada à ministra da Educação deste Governo de maioria absoluta PS uma carta, com a chancela da Associação Cívica REPÚBLICA e LAICIDADE. O documento, oportuníssimo, insurge-se contra a permanência de certos símbolos católicos nas Escolas e noutros espaços públicos, bem como contra a realização de missas e outros actos de culto em espaços escolares, tudo coisas manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Constituição da República Portuguesa.
A primeira entidade a exigir que esses símbolos fossem retirados das escolas deveria ser a própria Igreja católica, a qual também deveria inibir-se de alguma vez cair na tentação de converter a escola pública do Estado em capela ou igreja, onde têm lugar certas liturgias quaresmais e não só, que só aos católicos dizem respeito e, mesmo a estes, nunca no espaço da escola que eles frequentam em pé de igualdade com outros não católicos. Infelizmente, não é por essas águas límpidas que navega a Igreja católica que está em Portugal. Prefere as águas sujas do compadrio, da promiscuidade, da “mancebia” com o Estado. O Estado, por sua vez, embora seja lesto em aprovar leis e decretos-lei saudavelmente “laicos”, mostra-se depois quase infantil na sua aplicação, sobretudo, quando essa aplicação envolve situações de facto que beneficiam a Igreja católica. E prefere deixar correr.
Deste modo, mais de trinta anos depois de Abril, custa ver os maiores representantes do Estado, ateus ou agnósticos que sejam, a assumir posturas oficiais de sacristães do clero, não vão suas reverências zangar-se e passar a pronunciar maldições contra o Estado e contra eles próprios.
(...)
Nunca concordei com a conversão das salas de aula das Escolas públicas em capelas ou templos paroquiais. Nem que lá se exibam os símbolos que são exibidos nos templos. Tão pouco que lá se dê catequese, disfarçada de ensino religioso. A laicidade é um valor que brota do Evangelho. À luz da prática de Jesus, até a Igreja que se reivindica do seu nome, deve fazer seu este valor. Na medida em que a Igreja viver a laicidade, nessa medida é sacramento de Jesus que não foi sacerdote nem nunca criou um corpo de sacerdotes. Que a laicidade é um dos elementos constitutivos da Igreja, provavelmente, nem a Associação Cívica REPÚBLICA e LAICIDADE tem disso consciência. Mas é assim que são as coisas. Não sei também quando é que as Igrejas cristãs chegarão a ver as coisas assim, mas quanto mais rapidamente isso acontecer melhor. Para que também a Política, não a Religião, se torne a principal actividade da Igreja. Evidentemente, a Política como cuidado da terra e do universo, a começar pelo cuidado dos seres humanos mais fragilizados e mais sofredores.»
(Mário de Oliveira; ler na íntegra acolá.)

quarta-feira, 6 de abril de 2005

«O avião do cardeal»

«A escritora Rosa Montero chamava-lhe ontem, nas páginas do El País, "histeria mortuária". Não é a primeira vez que o mundo se vê submergido numa avalanche mediática em torno da morte. Recorde-se o caso de Lady Di ou, num registo mais doméstico e recente, o do futebolista Fehér. A aldeia global vibra com a alegria, mas é a dor que se presta a manifestações planetárias de maior dimensão e intensidade. É da natureza humana.
No caso de João Paulo II, esse trabalho dos media é grandemente facilitado pelo Vaticano - estamos perante o Papa que melhor soube utilizar a comunicação social para espalhar a sua mensagem e a Igreja que deixa aprendeu-lhe a lição. Mas dir-se-ia que os media deverão ter espantado osspin doctors do Vaticano, ao mergulharem deliberadamente o mundo numa espécie de liturgia non-stop, em que todos somos tomados por fervorosos católicos. Só este ambiente inebriante com que a generalidade dos media estão a tratar a morte de João Paulo II poderá explicar a absoluta indiferença, mesmo nos meios políticos mais contestatários, com que foi acolhida a notícia de que o Presidente da República decidiu emprestar um avião do Estado para que o cardeal-patriarca de Lisboa se deslocasse a Roma. Não vale a pena discutir a questão dos custos envolvidos - seria demagógico -, nem recordar os episódios de baixa política que têm rodeado a utilização deste tipo de meios. Interessa apenas o simbolismo do gesto - um Estado laico que coloca os seus meios ao serviço de uma confissão religiosa.
Dir-se-á que a mesma Igreja também coloca os seus meios ao serviço do Estado e que se manifesta até bastante generosa em suprir algumas falhas desse mesmo Estado, nomeadamente no apoio aos desfavorecidos. A verdade, porém, é que ambos teriam a ganhar numa clara separação de águas, como aliás estabelece a Constituição e os instrumentos jurídicos assinados por Portugal e pela Santa Sé.
Isso é ainda mais fundamental numa altura em que as democracias ocidentais implicitamente proclamam a sua superioridade face a regimes que têm na confusão entre Igreja e Estado um dos seus traços essenciais.»
Editorial de João Morgado Fernandes no Diário de Notícias

terça-feira, 5 de abril de 2005

A laicização da escola pública

A iniciativa da Associação República e Laicidade (ARL) de pedir o fim dos crucifixos e dos rituais religiosos na escola pública desencadeou um debate salutar, que tem sido particularmente vivo no blogue Barnabé. O debate parece ter amainado nas últimas horas, e podem portanto retirar-se algumas conclusões.
  1. Ninguém põe em causa a interpretação da lei feita pela ARL. Os crucifixos nas salas de aula de escolas públicas serão portanto propaganda religiosa ilegal, assim como os rituais religiosos que aí têm lugar (conferir os artigos 41º e 43º da Constituição da nossa República, e os artigos 2º, 4º e 9º da Lei da Liberdade Religiosa).
  2. As escolas não são igrejas, como afirmou lapidarmente Vital Moreira. O exercício legítimo de uma religião (a católica ou outra) pode ter lugar na esfera privada (associativa), como aliás já acontece e deve continuar a acontecer. O que é ilegítimo é confundir o que é estatal (a escola da República) e obrigatório (a escolaridade básica) com o que é privado (a crença) e facultativo (a prática religiosa).
  3. Existem, muito provavelmente, centenas senão milhares de escolas em todo o país que impõem a presença de crucifixos a alunos que não são católicos. Registo, com agrado, que são cada vez menos os católicos que defendem que a sua religião e respectivos símbolos devem ser impostos a todos.
  4. O caso do padre Loreno confunde muitas mentes sensíveis, que argumentam que a Lei Eleitoral da Assembleia da República limita a liberdade de expressão. A verdade é que a limita, mas é indubitável que essa limitação é necessária para assegurar a tranquilidade das campanhas eleitorais. Não é por acaso que o artigo 153º, que se aplica aos «ministros de qualquer religião», é enquadrado por dois artigos (o 152º e o 154º) onde o legislador preveniu as tentativas de coacção que possam ser perpetradas por empregadores ou outras pessoas. Trata-se, claramente, de precaver contra qualquer abuso de uma relação de poder para fins eleitorais, quer essa relação de poder seja patrão-empregado ou padre-crente.
  5. A laicidade não é de esquerda nem de direita. É um tipo de regime, como a democracia é uma forma de governo. Pessoalmente, sou de esquerda, mas a democracia e a laicidade são consensos que podem e devem abarcar a esquerda e a direita. A fractura é entre clericais (os que querem impôr a sua religião a toda a comunidade) e laicistas (os que defendem a neutralidade e a independência do espaço público face às religiões e ideologias).
  6. Existe uma questão religiosa na sociedade portuguesa, que começa agora a ser debatida. Esperemos que haja a coragem política de fazer cumprir as leis e a Constituição. É o mínimo que se pede.

segunda-feira, 4 de abril de 2005

Comunicado do Comité Laïcité République

«Paris, le 04 avril 2005

LES DRAPEAUX DE LA REPUBLIQUE EN BERNE POUR UN CHEF RELIGIEUX.

Le Comité Laïcité République s’indigne de la décision prise par le gouvernement de mettre en berne les drapeaux des mairies, à l’occasion de la mort du pape Jean-Paul II.

Il s’agit d’une atteinte supplémentaire à la laïcité de la République Française dont la loi de 1905 précise qu’elle ne reconnaît aucun culte. En aucune manière la mort d’un chef religieux ne saurait justifier l’affichage d’un deuil public ou national.

Faut-il penser que les citoyens français qui ne sont pas catholiques sont tenus de s’associer au deuil d’une confession particulière ?

Le Comité Laïcité République dénonce autant cette décision qui enterre la neutralité de l’Etat que l’indécent raz-de-marée médiatique dont les chaînes publiques de télévision nous ont abreuvé depuis des semaines sur l’agonie du pontife.

Rien ne justifie cette marque de deuil de la République, à moins d’annoncer clairement que la France est redevenue la fille aînée de l’Eglise et que les français non catholiques sont des citoyens de seconde catégorie.

Rien, par ailleurs, dans les discours de ce chef religieux, hostile aux idéaux de la République, à la liberté de conscience et aux Droits de l’Homme, ne permet de comprendre en quoi la République Française serait tenue d’honorer sa mémoire. Ce qu’elle n’a pas fait pour tant d’autres hommes qui ont servi la cause de l’humanité sans distinction de confession.

Le Comité Laïcité République demande qu’il soit mis un terme à ces manifestations démagogiques de deuil public. Il demande aussi que les représentants de la République, respectant la Loi de 1905, n’assistent, à titre officiel, à aucune célébration religieuse.

Le Bureau National»

Revista de imprensa (4/4/2005)

  1. As deputadas Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, integrantes do mini-grupo parlamentar católico (MHD), entregaram na Assembleia da República um projecto de lei que pretende suspender os julgamentos por crime de aborto. O comentário que me ocorre é que concordo que deixe de haver julgamentos, mas que continuo a preferir que a AR despenalize o aborto mesmo sem recurso a referendo. E a haver este último, que seja o mais rapidamente possível, antes da eleição do próximo Presidente da República… Pergunta: com a lei destas senhoras deputadas, o que aconteceria a uma clínica (privada) que facilitasse interrupções voluntárias de gravidez sistematicamente? Diário de Notícias
  2. Na França, há protestos contra o luto nacional por ocasião da morte do monarca absolutista do pseudo-Estado vaticânico, protestos esses que vêm de políticos de relevo. É aquilo a que se pode chamar um país numa fase mais avançada de luta... Libération
  3. O obituário de Karol Wojtyla no Libération está a quilómetros do tom reverente e apologético que medra na nossa comunicação social. O Le Monde, no entanto, é quase tão beato como a nossa RTP. Já o editorial do The Guardian beneficia de alguma distância protestante e é razoavelmente equilibrado. Por cá, apenas o Carlos Esperança, no Diário Ateísta, tem a coragem de dizer com todas as letras quem foi realmente Karol Wojtyla. E toda a imprensa faz por esquecer a maneira escandalosamente grosseira e mal educada como Karol Wojtyla recebeu o Presidente da nossa República e a sua esposa.
  4. Entretanto, nas Filipinas, o clero católico ameaça de excomunhão os políticos que apoiem políticas de controlo de natalidade. A luta pela liberdade individual, inevitavelmente contra Karol Wojtyla e a sua herança, continua. Libération
  5. O Independente de sexta-feira traz um artigo sobre a campanha da Associação República e Laicidade pelo fim dos símbolos e rituais religiosos nas escolas públicas. Além disso, tem um artigo onde detalha o currículo de António de Oliveira Guterres como monitor de Formação Moral na Mocidade Portuguesa. Deliciosa é a reacção de um padre amigo de Guterres à entrada deste no PS: «Então tu aderiste ao PS? Com a tua formação cristã, estava mais a ver-te no CDS». Sem comentários.

domingo, 3 de abril de 2005

Desligar a televisão

Desligar a televisão, deixar os jornais no cesto, ouvir a Antena 2 no carro, sair com a família, ir ao cinema, ler um livro, procurar outros que pensem como nós, consultar o Diário Ateísta: são as minhas recomendações para manter a sanidade mental durante os próximos dias. Estamos cercados por hordas de fanáticos e se protestarmos contra o massacre seremos acusados de ser nós os «fundamentalistas».

sábado, 2 de abril de 2005

Falta de espaço, diversão e confusões

  • Rui Tavares, respondendo no Barnabé a Bruno Cardoso Reis, equaciona um dilema quanto aos símbolos religiosos: ou se respeita o princípio da igualdade (todos têm direito a ver os seus símbolos na parede da escola), ou o princípio da neutralidade (a parede fica vazia). Não acredito que a primeira solução seja exequível. Por duas razões: em primeiro lugar, não há parede que chegue, e em segundo lugar os símbolos de algumas religões são ofensivos para os seguidores de outras. Portanto, o mais simples e menos conflituoso é mesmo deixar a parede sem símbolos de facções religiosas ou outras...
  • Bruno Reis apresenta, a este respeito, um argumento curioso: devem permanecer nas escolas os crucifixos com valor artístico. Como argumento de diversão, é original e poderia até servir para promover a exibição nas escolas de «O triunfo da vontade», de Leni Riefenstahl. Mas ilude o essencial: os crucifixos não foram parar ao espaço escolar (que é «público» no sentido de estatal) pelo seu (discutível) valor artístico. São, isso sim, propaganda religiosa ilegal, facto que não o vi referir.
  • Bruno Reis faz também alguma confusão à volta do caso do padre Loreno. Parece defender que os sacerdotes (apenas os católicos?) estarão acima da lei eleitoral, que pretende ver alterada. Defenderá Bruno Reis também o fim do período de reflexão pré-eleitoral e de outros preceitos que limitam a liberdade de expressão durante o período eleitoral?
  • Finalmente, Bruno Reis afirma que «[Afonso Costa] confiscou todos os bens da Igreja Católica». Não me parece muito exacto. Será que se refere às ordens religiosas? E quanto às igrejas, com que fundos senão (fundamentalmente) os públicos e estatais foram erigidas antes de 1910 (e mesmo depois)?

sexta-feira, 1 de abril de 2005

O bom combate

A iniciativa da Associação República e Laicidade de pedir ao Governo o fim dos crucifixos e dos rituais religiosos nas escolas públicas foi referida positivamente nos blogues Causa Nossa e Oeste Bravio (para além do meu artigo no Diário Ateísta). É particularmente reconfortante ler a posição claríssima de Vital Moreira, pois demonstra que a polémica que tivemos sobre a laicidade da Constituição europeia não implica que não partilhemos os mesmos valores republicanos.