quarta-feira, 6 de abril de 2005

«O avião do cardeal»

«A escritora Rosa Montero chamava-lhe ontem, nas páginas do El País, "histeria mortuária". Não é a primeira vez que o mundo se vê submergido numa avalanche mediática em torno da morte. Recorde-se o caso de Lady Di ou, num registo mais doméstico e recente, o do futebolista Fehér. A aldeia global vibra com a alegria, mas é a dor que se presta a manifestações planetárias de maior dimensão e intensidade. É da natureza humana.
No caso de João Paulo II, esse trabalho dos media é grandemente facilitado pelo Vaticano - estamos perante o Papa que melhor soube utilizar a comunicação social para espalhar a sua mensagem e a Igreja que deixa aprendeu-lhe a lição. Mas dir-se-ia que os media deverão ter espantado osspin doctors do Vaticano, ao mergulharem deliberadamente o mundo numa espécie de liturgia non-stop, em que todos somos tomados por fervorosos católicos. Só este ambiente inebriante com que a generalidade dos media estão a tratar a morte de João Paulo II poderá explicar a absoluta indiferença, mesmo nos meios políticos mais contestatários, com que foi acolhida a notícia de que o Presidente da República decidiu emprestar um avião do Estado para que o cardeal-patriarca de Lisboa se deslocasse a Roma. Não vale a pena discutir a questão dos custos envolvidos - seria demagógico -, nem recordar os episódios de baixa política que têm rodeado a utilização deste tipo de meios. Interessa apenas o simbolismo do gesto - um Estado laico que coloca os seus meios ao serviço de uma confissão religiosa.
Dir-se-á que a mesma Igreja também coloca os seus meios ao serviço do Estado e que se manifesta até bastante generosa em suprir algumas falhas desse mesmo Estado, nomeadamente no apoio aos desfavorecidos. A verdade, porém, é que ambos teriam a ganhar numa clara separação de águas, como aliás estabelece a Constituição e os instrumentos jurídicos assinados por Portugal e pela Santa Sé.
Isso é ainda mais fundamental numa altura em que as democracias ocidentais implicitamente proclamam a sua superioridade face a regimes que têm na confusão entre Igreja e Estado um dos seus traços essenciais.»
Editorial de João Morgado Fernandes no Diário de Notícias

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