quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Referendos e ditadura da maioria

Há muita coisa que, referendada, não teria maioria: o direito das testemunhas de Jeová de baterem à porta das pessoas, o adultério não ter consequências de maior, o toque dos sinos depois das 22h, o direito a uma consulta de planeamento familiar aos 14 anos, o transplante de órgãos de um falecido, a violência doméstica ser crime público, ou o direito de passear cãos na rua sem pratinho e vassoura atrás.
Felizmente (ou não...), ainda ninguém se lembrou de referendar estas candentes questões. E ainda bem que assim é, porque Portugal não é apenas uma democracia, é também uma república em que os direitos estão acima das maiorias. O contrário seria uma ditadura da maioria. O que não seria bom. Para uns ou para outros, conforme as circunstâncias.

7 comentários :

F. Penim Redondo disse...

Trata-se de uma questão importante.
Sempre que se toma uma decisão que é contrária à opinião dominante isso é feito com que legitimidade ?
Quem é que decide o que é, ou não é, passível de decisão popular ?
Estamos numa democracia tutelada por quem ?

João Vasco disse...

F. Penim Redondo:

Existem duas abordagens possíveis.

Uma é a do estrutural versus conjuntural.

Por exemplo, mesmo que uma maioria circunstancial considere que escravizar as pessoas com sardas é legítimo; isso é impedido porque uma maioria mais ampla impediu maiorias futuras de escravizar quem quer que fosse; e seria portanto necessário uma maioria igualmente ampla para revogar esse impedimento.

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Mas existe outra forma de ver o problema, e é que a democracia é um meio e não um fim.

É um meio de promover determinados valores (liberdade, justiça, etc..), e não é o único.

Tomemos o caso da liberdade: se a maioria quiser que o salário do chefe de estado não ultrapasse um milhão de contos (é um exemplo disparatado, eu sei), mas este quer ter esse salário, e sobe os impostos com esse objectivo, então a impossibilidade de cumprir a vontade da maioria neste caso é um atentado à sua liberdade.

Mas se a maioria quer escravizar as pessoas com sardas, o maior atentado à liberdade seria conseguirem-no.

É assim que eu vejo, a democriacia é um meio para chegar a certos valores (liberdade e justiça, por exemplo); e quando existe contradição entre a democracia e estes valores, é onde a democracia deve ter os seus limites.

Em última análise, só é legítimo que o poder venha das maiorias quando uma razão exterior (que isso promova a liberdade, por exemplo) o justifica. A priori, nada nos diz que o poder da maioria é mais legítimo que outro qualquer. Só à posteriori, em nome dos outros valores que referi, e apenas quando isso não atenta contra eles.


Ou seja: não procuro a liberdade por ser democrata; sou democrata apenas porque (e enquanto) procuro a liberdade e a justiça.

F. Penim Redondo disse...

João Vasco,

o seu argumento parece bom mas tem um defeito: quem é que decide se uma determinada decisão favorece ou não "determinados valores (liberdade e justiça, por exemplo)" ?
Como sabe há, sobre essas questões, vários pontos de vista.

Um regime democrático, com a sua Constituição e as suas instituições, é uma espécie de contrato que se baseia na aceitação voluntária por parte da maioria dos cidadãos.

O desrespeito continuado desse consenso tácito só pode conduzir à perda de legitimidade do tal contrato.
É por isso que eu penso que as "minorias esclarecidas" devem evitar esse tipo de habilidades, a não ser que estejam em causa questões essenciais, pois a prazo elas terão consequências funestas.

João Vasco disse...

F Penim Redondo:

«quem é que decide se uma determinada decisão favorece ou não "determinados valores (liberdade e justiça, por exemplo)" ?
Como sabe há, sobre essas questões, vários pontos de vista.»

Antes houvese um algoritmo simples que nos desse a resposta adequada.

Eu imagino uma sociedade onde uma pequena percentagem da população estivesse escravizada, e imagino que pudessem existir diferentes pontos de vista a respeito da solução mais justa e livre, respeitar a liberdade da maioria e aceitar a escravatura, ou impôr o fim da escravatura.

Não existirá, nesse caso, nenhum algoritmo simples que nos diga que lado está certo e errado. Mas isso não quer dizer que quem queira acabar com a escravatura (neste exemplo) abdique de lutar por aquilo que acredita estar certo.

Não pode alegar a discordância por parte da maioria para não lutar, porque em termos éticos não é o facto de muitos acreditarem que a A é a acção moral, ou conducente maior justiça e liberdade, que isso passa a ser verdade.

E é possível que a luta não possa ser limitada à argumentação até que a maioria reconheça os erros da escravatura, porque sendo a maioria parte interessada na manutenção da situação, existe um enviesamento cognitivo a favor do status quo que é difícil de ultrapassar.

Este exemplo mostra que as questões éticas muitas vezes são complicadas, não têm uma resposta simples que possa ser deduzida a partir de meia dúzia de princípios.

Creio que torna claro que nem sempre devemos reconhecer legitimidade às maiorias, que há casos em que fazê-lo compromete a liberdade e a justiça que são a razão (a nível ético; na prática existe também a questão do poder) que nos levaria a respeitar esta legitimidade em primeiro lugar.

Mas não nos dá a resposta em relação a quais os casos em que isso acontece. Isso tem de ser discutido, tem de existir reflexão crítica, têm de ser abordados diferentes pontos de vista, evitados preconceitos e enviesamentos cognitivos. Nem sempre a resposta é simples.



«É por isso que eu penso que as "minorias esclarecidas" devem evitar esse tipo de habilidades, a não ser que estejam em causa questões essenciais, pois a prazo elas terão consequências funestas.»

Claro, mas é só dessas questões essenciais que se está a falar. A laicidade, por exemplo, é uma questão essencial. A separação de poderes é outra, etc..

Ricardo Alves disse...

F. Penim Redondo,
como sabe, a resposta é que o pacto constitucional garante determinados direitos individuais, equilíbrios entre órgãos de soberania e limites ao poder de cada instituição que, tendencialmente, não devem ser alterados. A resposta, portanto, é que a legitimidade dessas algumas «decisões contrárias à maioria» é a da própria maioria, no momento constituinte.

João Vasco disse...

Ricardo:

Essa foi a primeira resposta que dei (estrutural versus conjuntural).

Mas acho que a resposta mais profunda é a segunda.


Se uma maioria é a favor da escravatura, mesmo uma maioria que tenha escrito uma constituição que o permite, acredito que essa vontade da maioria não tem legitimidade. Pode tê-la do ponto de vista da letra da lei, mas não a tem do ponto de vista ético.
Porque consideramos a maioria legítima em nome da justiça e liberdade e apenas quando em nome destes valores; ao invés de considerarmos a justiça e liberdade importantes em nome da vontade da maioria.

É uma questão ética, e não uma questão de submissão a um determinado poder.

Anónimo disse...

Por exemplo:pq não referendar o bodo ao BPN com 3 500 milhões de Aérios?E,deus meu,ninguém vai dentro.Este é o direito dos bankters,que já têem os seus no governo!