segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Consumismo - II

A economia clássica diz-nos que uma troca corresponde à criação de riqueza. Afinal, os dois agentes só participam na troca se cada um deles considera mais valioso aquilo que recebe do que aquilo que dá. Se ambos terminam a troca com algo mais valioso do que aquilo que tinham, então a riqueza aumentou. Ponto final.

Reticências, que as coisas não são bem assim. Se um indivíduo está interessado numa troca e o outro não, não quer dizer que a troca não se faça. O indivíduo interessado na troca pode utilizar várias estratégias para que a transacção se realize. A manipulação, a mentira, a ameaça (nos limites que forem socialmente aceites), e outras estratégias podem ser empregues, permitindo assim que sejam efectuadas trocas que não seriam necessariamente no interesse de ambas as partes. Assim sendo, é possível que uma troca crie riqueza, e é possível que destrua.

Estas estratégias de manipulação e engano são utilizadas hoje na publicidade (ver também aqui). Quando uma troca traz muita vantagem a um determinado vendedor, ele vai querer realizar o máximo de transacções. Assim, o publicitário eficaz é aquele cuja mensagem mais se aproximará deste objectivo, que alcança não apenas aqueles clientes "a priori" interessados na transacção, mas também persuade o máximo daqueles que não estariam.

Imaginemos um universo em que existem 3 fabricantes de sabonetes cada um com um produto conhecido por todos, dos quais cada um deles adequaria melhor ao gosto de 1/3 dos consumidores. Seria de esperar que se dois fabricantes iniciassem uma estratégia publicitária agressiva, a vendas do terceiro fabricante diminuissem - de outra forma não valeria a pena iniciar tal estratégia. Assim, ficariam todos pior servidos: não só os consumidores que tivessem alterado os seus hábitos de consumo, mas também todos outros que pagariam mais pelos sabonetes consumidos (a publicidade não é gratuita).

O advento actual do consumismo tem uma razão de ser análoga. Quando trabalhamos trocamos o nosso tempo por dinheiro. Se não existisse publicidade, no que respeita a quem ganha mais do que o suficiente para providenciar às suas necessidades básicas, ocorreria uma transacção entre tempo de lazer e bens de consumo. Cada um trabalharia o número de horas que desejaria para maximizar o seu bem estar.

Mas enquanto que os bens de consumo são publicitados, o tempo sem consumir não é. Tal como no caso do sabonete não publicitado, é de esperar que a publicidade distorça esta escolha no sentido de fazer as pessoas consumirem mais do que aquilo que seria o seu melhor interesse.

A publicidade recorre aos impulsos naturais descritos no texto anterior, tentando exacerbá-los no limite das possibilidades dos meios ao dispor. Interessa não apenas associar o objecto de consumo a sensações agradáveis, despertando o desejo do consumidor; interessa associar a posse do objecto a sucesso, e o reverso ao falhanço; interessa que tal associação não persuada apenas o potencial comprador mas também a sua rede social, por forma a torná-la real.

Assim, o consumismo exacerbado é uma consequência natural e expectável da publicidade.

6 comentários :

Anónimo disse...

Concordo com o texto.

Simplesmente me pareceu que a questão da evolução não explicar o fenómeno no seu conjunto se prende com o facto de não fornecer o contexto em que o comportamento se manifesta - as causas gerais do comportamento são consideradas.

Dizes que a teoria da evolução não explica o gatilho o consumismo compulsivo e apresentas a hipótese de é o ambiente fortemente publicitário a que as pessoas estão expostas que as leva a embarcar nesse comportamento. Eu não discordo.

Mas quando dizes que a evolução explica porque é que os seres humanos manifestam o seu poder ostentando «bens considerados valiosos» tens então de concordar que a teoria não explica quais os objectos valiosos e porque são considerados valiosos. Isso pertenceria ao contexto.

João Vasco disse...

«tens então de concordar que a teoria não explica quais os objectos valiosos e porque são considerados valiosos. Isso pertenceria ao contexto»

Tenho de concordar?

Não sei se tenho, mas lá que concordo, concordo.

Anónimo disse...

Dizer que a evolução não explica tudo num comportamento é como dizer que a balística não explica o motivo do homicídio.

João Vasco disse...

Hum... Não concordo com a analogia.

Se calhar seria melhor dizer que a balística não nos permite saber tudo sobre um homicídio (envolvendo balas). Ainda assim pode dar informação extremamente útil.

Anónimo disse...

Pareceu-me que dizias que a evolução explicava bem a ostentação de poder mas que não explicava bem o consumismo compulsivo. Eu acho que explica tão bem uma coisa como outra mas sempre deixando algo importante de fora - o contexto.

João Vasco disse...

Hum...

Se calhar não me expliquei bem. A Selecção natural explica porque é que podemos ter determinadas propensões, mas não consegue individualmente explicar o comportamento numa sociedade complexa como a nossa.

Nesse sentido, podem existir sociedades em que as pessoas não ostentam o poder e a riqueza - o contexto, como bem dizes. Acho até que devemos procurar isso: evitar apreciar mais alguém apenas porque tem mais poder e riqueza. Se as pessoas não forem mais apreciadas por isso, ou até mesmo se esse tipo de ostentação for vista com maus olhos, esse tipo de comportamento será mais raro.

Mas é mais fácil criar um contexto em que um determinado comportamento (a ostentação da riqueza, por exemplo) é usual, se à partida existir uma propensão natural para esse comportamento.

Assim sendo, a publicidade pode ser mais eficaz do que seria, pois são essas propensões que os publicitários usam para manipular as decisões das pessoas quanto aos seus hábitos de consumo.

E assim sendo, este tipo de propensões naturais acaba por ser estimulado de tal forma, que acaba por condicionar o comportamento mais ainda do que aquilo que seria natural (que já de si poderia ser mais do que aquilo que seria desejável...).