quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Liberdades positivas e negativas VII

Uma das críticas mais recorrentes a estes textos que tenho escrito sobre liberdades positivas e negativas é que «não se pode falar em liberdade negativa de furtar, visto que essa violaria a liberdade negativa da propriedade».

Vamos esclarecer: se furtar fosse uma liberdade negativa que devesse ser garantida, isso significaria que deveria ser impedido qualquer acto que limitasse esta minha liberdade - ninguém me poderia impedir de furtar.

Mas o próprio furto envolve a violação de uma liberdade negativa: a da propriedade. Assim sendo - dizem-me - nem sequer faz sentido em falar em «liberdade negativa de furto» pois esta antes de mais violaria a liberdade negativa da propriedade. Na boa tradição do «a minha liberdade acaba onde começa a do outro», não faz sentido assegurar uma liberdade negativa cuja existência implique a limitação de outra liberdade negativa.

No entanto, podemos ver as coisas ao contrário...

Podemos considerar que «se a propriedade fosse uma liberdade negativa que devesse ser garantida, isso significaria que deveria ser impedido qualquer acto que limitasse esta liberdade - ninguém poderia furtar.

Mas isto envolve a violação da liberdade negativa de furto. Na boa tradição do "a minha liberdade acaba onde começa a do outro" não faz sentido assegurar uma liberdade negativa cuja existência implique a limitação de outra liberdade negativa.»


Sejamos claros: eu não defendo esta última posição.
Apenas mostro que aquilo que certos liberais defendem não decorre da defesa das liberdades negativas, mas sim de umas liberdades negativas, e que não existe nenhum critério objectivo que presida a essa escolha.

As liberdades negativas/positivas que se escolhem como prioritárias têm consequências diferentes, mas não existe nenhuma escolha que possa ser considerada a priori melhor que as outras.

É necessário discutir o impacto que elas têm na vida das pessoas, as consequência positivas ou negativas que delas advêm.

Quando uso os cenários imaginados mostro que os axiomas defendidos não garantem situações aceitáveis ou defensáveis a priori, pelo que estes valores acabam em última análise por ser defendidos numa base utilitarista de "na prática funcionam". Claro que esta alegação é muito discutível, e não parece ter a mesma força. Por essa razão, os liberais de direita escamoteiam esta realidade, e tentam atribuir aos seus valores uma neutralidade que é injustificada. Ao contrário do que os liberais de direita apregoam, não existem boas razões para aceitar que o seu liberalismo é o verdadeiro liberalismo.

6 comentários :

Helena Henriques disse...

Ora bolas, desculpem a minha teimosia, mais uma vez, acho que não é por aqui. Afinal o que é o furto (ou o roubo, que se distingue do furto pelo recurso à violência) senão uma forma de aquisição da propriedade considerada socialmente ilegítima? Viola a segurança, e esta função, até ver, está entregue ao Estado.

João Vasco disse...

Helena Henriques:

Mesmo que se considere socialmente ilegítimo lavar os dentes, isso não quer dizer que seja eticamente errado fazê-lo.

Se furtar fosse considerado socialmente legítimo, creio que em muitos casos continuaria a ser errado.

Mas onde é possível encontrar fundamento para esta opinião?

A priori não poderia distinguir um sociedade onde furtar fosse legítimo de uma sociedade onde proibir o furto fosse legítimo e dizer que uma é melhor que outra. Mas podemos especular que em muitos casos há vantagem para todos em limitar a nossa liberdade de furtar, para garantir a segurança de que não nos furtam. Mas são essas vantagens que justificam a proibição do furto, e não um valor "a priori". E quando essas vantagens são menos óbvias, faz sentido discutir se a proibição deve ser mantida.

Quando o estado cobra impostos, apropria-se de bens alheios de forma considerada socialmente legítima. Objectivamente NÃO rouba.
Mas será que é eticamente correcto fazê-lo?

Os liberais de direita defendem que não. Defendem que toda a apropriação coerciva de bens alheios é pouco ética, pelo que "a priori" é errada.
Mas fundamentar esta crença na defesa da liberdade não colhe. Isto porque esta crença previligia certas liberdades em deterimento de outras, e como não existe fundamento "a priori" para tal escolha de prioridades, ela só pode ser justificada à posteriori. O que é incompatível com a posição destes liberais de direita.

Helena Henriques disse...

O Estado apropria-se de bens alheios como contra-prestação para os serviços que lhe cabe prestar, aliás essa noção de 'apropriação de bens alheios ' é curiosa, um vez que se sou sócia de um clube não considero que as quotas que pago sejam uma apropriação por este dos meus bens, posso é ter uma opinião acerca da forma como o clube os vai gerir, e isso é outra coisa. Quanto a ética e legitimidade são questões diferentes, estão em círculos diferentes do normativo, há normas que nada têm a ver com ética, caso das normas de transito, cuja infracção os juristas chamam de ilícito de mera ordenação social, outras terão uma ligação maior à ética - caso de adquirir a propriedade sobre outro ser humano, esta consciência ética é evolutiva e sabemos que nem sempre foi assim, não há muito tempo era legítima a escravatura, e muitos lutaram e sofreram durantes anos para que esta barbaridade mudasse. A noção de liberdade de propriedade tem a ver com entender que todo o ser humano pode adquirir propriedade - não precisa de ter o rendimento x, licenciatura, cor, ou ser nacional do país onde adquire o bem - o direito de propriedade em si já cabe à legislação regulamentar - em Inglaterra, sobre os bens imóveis ele é temporário, uma vez que o solo é da Rainha/Estado, e isto não levanta grandes questões. A própria propriedade entendida de forma limite como direito de usar, fruir e abusar tem limitações que são éticas, eu proprietário de uma plantação não posso destrui-la, cometo um crime - isto tem a ver com a função social da propriedade mais ou menos atendida em cada ordenamento, mas que é ditada por imperativos de ordem ética. O problema com os liberais é, a meu ver, não o problema das liberdades mas o facto de quererem à viva força a elas limitar a ordem social esquecendo totalmente a igualdade por entender que sempre haverá o desigual e fundamentando-se (desculpando-se) com aquilo a que se pode chamar válvulas de escape social (mecanismos de ascensão social - caso do famoso sonho americano ou, o mais comum dos jogadores de futebol, por exemplo). Assim, entendem eles que os direitos económicos, sociais e culturais são ficções românticas com as quais a organização social não se deve preocupar para não perturbar a ordem 'natural das coisas' e que as garantias de liberdade garantem a 'igualdade de oportunidades' e é 'natural' que só os mais fortes consigam atingir mais sucesso. Isto é, do meu ponto de vista, a falácia que tem de ser discutida e que muito sofrimento vem causando. Discutir se a pedra que cai da falésia é livre e que raio de liberdade tem ela.

João Vasco disse...

«O Estado apropria-se de bens alheios como contra-prestação para os serviços que lhe cabe prestar, aliás essa noção de 'apropriação de bens alheios ' é curiosa, um vez que se sou sócia de um clube não considero que as quotas que pago sejam uma apropriação por este dos meus bens, posso é ter uma opinião acerca da forma como o clube os vai gerir, e isso é outra coisa.»

Creio que os liberais de direita argumentariam que não querem ser sócios de um clube que lhes obriga a pagar a saúde e educação de terceiros, e que isso não os devia obrigar a mudar de país.

Posto isto concordo com muitas das observações que fez. A utopia (i)liberal que defendem estaria muito longe sequer de garantir qualquer espécie de igualdade de oportunidades (como já demonstrei nalguns textos no passado: http://esquerda-republicana.blogspot.com/2006/08/falcias-da-tica-neo-liberal-vi-herana.html ), muito menos garantiria que os recursos seriam alocados da maneira mais adequada para garantir o bem comum.

David Lourenço Mestre disse...

Joao Vasco, nao se fique pelo wikipedia, fica a perder. Leia isaiah berlin. Tem muita obra sobre o assunto. E é na esteira do liberalismo classico ingles que isaiah lembra que a acçao humana tem de ser limitada pela lei, que a lei nao apenas garante justiça, segurança, cultura, alguns graus de igualdade mas a propria liberdade. Neste quadro a liberdade positiva e a liberdade negativa vivem em permanente tensao e fiscalização. Já kant um dos pais da besta lega nos uma pérola ao gosto do Vasco, o principio do liberalismo exige que “as restrições da liberdade individual, inevitáveis em virtude do convívio social, sejam repartidas uniformemente na mediada do possível”. Voando uns séculos Popper, sem invocar o homo homini lúpus de Hobbes lamenta que sem o estado, “os mais fracos não teriam qualquer direito a serem tolerados pelos mais fortes, dever-lhes-iam, pois, gratidão pela bondade da sua tolerância. Então aqueles indivíduos que considerem esta situação pouco satisfatória e acreditem que qualquer individuo deve ter direito de viver e exigir protecção contra o poder dos fortes, reconhecerão igualmente a necessidade de um estado que proteja os direitos de todos.”

Se ainda estiver na faculdade ponha se a caminho da biblioteca

João Vasco disse...

David Lourenço Mestre:

Que para os liberais em geral a acção humana tem de ser limitada pela lei não é novidade nenhuma. Apesar do tom paternalista que usou, nada daquilo que disse constitui grande novidade para mim.
Não foi isso que eu discuti, que problematizei.

Aquilo que eu noto é que as fronteiras tradicionalmente associadas às liberdades negativas parecem-nos naturais devido a conjunturas culturais, mas são perfeitamente arbitrárias. Isto é algo que nem mesmo aqueles que propuseram estas definições se aperceberam, tão imersos estão certos valores na nossa cultura.
Mas se explorarmos as consequências das definições, abstraindo-nos das interpretações que tradicionalmente delas têm sido feitas, a arbitrariedade de certas fronteiras torna-se óbvia.

E percebe-se que consoante o ponto em que a fronteira é colocada implica que uns ganhem e outros percam.

Se eu tiver uma bananeira no solo do meu quintal, mas cujas folhas estejam sob o solo do quintal do vizinho, ela está a invadir a propriedade dele ou não?
Uma resposta ou outra será sempre uma convenção, e se nos abstrairmos de elocobrações utilitaristas, nunca poderemos deixar a arbitrariedade. Mas a qualquer decisão tomada corresponderá um vencedor e um vencido.

O mesmo se passa em relação à propriedade. Que protecção deve ter? Que liberdades devem ser sacrificadas para garantir essa? Qualquer que seja a escolha, haverá derrotados e vencedores. O ideal é ver qual é a melhor para todos.