Há quase 15 anos
exilado no Texas, é-me ainda difícil perceber o que leva os americanos a elegerem
delinquentes e sociopatas como Reagan, Bush, ou Rick Perry, e continuarem a
adulá-los ao mesmo tempo que perdem o emprego, a pensão de reforma e o seguro
de saúde, que a indústria das prisões suborna os políticos para lhes prenderem
os filhos, que a indústria do armamento os manda morrer pela indústria do
petróleo em países cujos nomes eles não sabem nem pronunciar, e que os
gangsters das finanças lhes gastam as poupanças em lamborghinis e jantares com
prostitudas que levam dez mil dólares por hora.
O que é que faz
os americanos destruírem o bem estar que constroem e entregarem as poupanças e o
poder de decidirem sobre o próprio futuro a gangsters e a sociopatas?
Não é fácil falar
desta realidade. Como Foucault explicou
eloquentemente, todas as sociedades impõem uma série de regras que controlam,
seleccionam, organizam e redistribuem as coisas ditas de forma a enfraquecer e
domesticar o poder e o perigo das palavras.
As pessoas aceitam sem problemas que certas explicações da realidade sejam
deixadas aos malucos e aos comediantes, indefesos e sujeitos à censura do poder
(por exemplo, Herman José nunca se atreveu a dizer piadas sobre bispos ou
generais). Certas verdades não se podem dizer senão
a brincar. George McGovern disse
dos artigos de Hunter S. Thompson compilados em Fear and Loathing: On the Campaign Trail '72: "not
factual but accurate". O mesmo se
poderia dizer do texto de Sue Townsend sobre Margaret Thatcher: The Secret Diary of Margaret Hilda Roberts. Não
é factual, mas descreve com grande precisão a cabeça duma sociopata sem outras emoções
que nojo e desprezo pelos pobres e os indefesos.
A avalanche de
textos laudatórios que se seguiu à morte de Thatcher fez-me pensar na
fragilidade da democracia. A maioria dos
antropólogos acredita que os humanos, como a maioria dos primatas, têm
tendência para seleccionar chefes (alpha
males) que os protejam e guiem. Nesse
sentido a democracia é uma instituição anti-natural, que tenta nivelar os
direitos, as liberdades e as garantias de todos os cidadãos. Sabemos que as maiorias não se excitam
facilmente com as ideias da liberdade e da dignidade individuais: primeiro querem sentir-se protegidas e todos
os políticos sabem que nada reforça a cola social como uma boa ameaça. Umberto Eco escreveu um ensaio excelente sobre
este assunto (Costruire il nemico).
Mas não é fácil
explicar o que faz a América odiar Carter e Clinton, e adorar Reagan e os
gangsters da família Bush. Uma explicação óbvia é que a maioria não sabe
nem percebe nada, não quer responsabilidades e não tem qualquer interesse em decidir sobre coisa nenhuma: limita-se a repetir
o que ouve na televisão. E na América a
televisão dos pobres e dos simples é a FOX News. Como Goering explicou aos americanos,
as pessoas nunca percebem nada: "Why,
of course, the people don't want war. Why would some poor slob on a farm want
to risk his life in a war when the best that he can get out of it is to come
back to his farm in one piece? Naturally, the common people don't want war;
neither in Russia nor in England nor in America, nor for that matter in
Germany. That is understood. (…)
but (…) the people can always be brought to the bidding of the leaders. That
is easy. All you have to do is tell them they are being attacked and denounce
the pacifists for lack of patriotism and exposing the country to danger. It
works the same way in any country."
Outra explicação
possível é que os puritanos odeiam humanistas.
A América profunda não quer viver bem, não quer ter segurança social,
não quer partilhar nada com ninguém, e por isso não quer aceitar nada de
ninguém. Culturalmente são descendentes
dos colonos que povoaram o oeste bravio e exterminaram os nativos. Adoram o campo e o isolamento, não percebem
para que serve o governo ou o que é a sociedade, são extremamente orgulhosos da
sua independência e só se sentem seguros com a casa cheia de armas. E como calvinistas acham que o bem estar é um
caminho certo para o pecado e a perdição da alma. Por isso gastam tudo o que têm e preferem
viver crivados de dívidas. São as dificuldades
que os acalmam, porque estão habituados a elas.
O psicólogo Lloyd
Demauze acredita nesta explicação. Para
ele certas sociedades associam o bem estar a sentimentos de culpa e
insegurança insuportáveis. Sobre a
América de Reagan escreveu estas palavras sábias e proféticas: "Therapists
hear similar complaints daily. 'All
my boyfriends treat me like dirt.' 'I keep running into bosses who do nothing
but fight with me.' 'Every career I've tried is boring.' 'None of the women I
meet want to get close.' Faced with such repetitive life patterns, one of the
hardest tasks of the therapist is to point out to the patient that their major
complaint is also their major complaint is also their major wish-that they unconsciously
choose unfaithful wives and caring boyfriends or hostile bosses in order to
avoid the anxiety around in themselves if they were to enjoy their families,
love lives or work too much.
Imagine, then, how difficult it
becomes to analyze a nation's psyche. imagine uncle Sam on the couch,
describing what he believes to be his main problem: 'I seem unable to enjoy a
really sustained success at anything. I keep getting into periods of depression
during which I lose much of what I've worked so hard to gain. Why, in this
century alone, I've gone through twelve major cycles of boom and bust, and I
seem condemned to repeat the pattern endlessly. And to top it all off, just as
things seem to be looking up, I get involved in a war that puts me even more
behind, so that I'm now over a trillion dollars in debt. How can I stop my bad
luck?'" (Reagan's America. NY:
Creative Roots, 1984, p. 51).
Estas são as
pessoas que querem dar a Thatcher nomes de ruas e que dizem que Reagan "derrotou o império soviético"... e se estas pessoas
são a maioria, em democracia têm o direito de serem representadas e fazer valer a sua vontade.