terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Pontas soltas: uma pergunta por responder e uma falsa analogia

O Ludwig Krippahl respondeu às minhas objecções.
  1. Reconhece que na «evolução houve uma enorme pressão selectiva favorecendo fortes instintos de protecção do recém nascido», mas que «a gestação esteve fora do alcance das nossas decisões voluntárias, pelo que não surgiu na nossa linhagem um instinto de protecção» da vida intra-uterina. Seguidamente, argumenta que por valorizarmos mais, instintivamente, a vida humana pós-nascimento, não devemos necessariamente legislar no sentido de desproteger totalmente a vida intra-uterina. Pois. O problema é que depois entra em contradição quando começa a discutir uma «ética normativa» que aplica ao aborto e ao infanticídio, e da qual parece deduzir que o infanticídio deve ser mais grave do que o aborto, e menos grave do que o homicídio. Chega a afirmar, respondendo a uma questão minha, que «deve ser muito mau» um sistema jurídico que penalize da mesma forma o aborto e o homicídio. Essa parte do texto é um bocado sumária, e eu fico sem perceber: deve ser muito mau porquê? Qual é o critério que leva o Ludwig a aceitar que o homicídio e o aborto tenham consequências penais tão distintas?
  2. Noutro aspecto, temos a falsa analogia que o Ludwig Krippahl insiste em fazer entre o aborto e o pai que abandona a criança na neve. Por favor. Um pai que abandona uma criança na neve, para além de criminoso é estúpido: poderia facilmente entregá-la para adopção sem cometer qualquer crime. É muito diferente obrigar uma mulher a levar uma gravidez até ao fim só porque achamos que o embrião tem direitos sobre a própria mulher. E insisto: é um facto biológico que o embrião está na dependência da mulher. O Ludwig diz que esta «é uma mera limitação técnica circunstancial». Seja. Mas as leis são feitas para as circunstâncias técnicas actuais, não para as hipóteses da ficção científica. E portanto, enquanto não existirem úteros artificiais, faremos uma lei que dê à mulher a possibilidade de escolher no primeiro trimestre. Por isso, votarei «sim» no dia 11 de Fevereiro.

4 comentários :

Ludwig Krippahl disse...

Ricardo,

Se por alguma razão não for possível à sociedade cuidar da criança a não ser daí a uns meses, o pai já tem o direito da a matar?

Por exemplo: o pai é investigador na Antárctida, e só podem vir buscar a criança quando o inverno passar. Entrentanto tem comida e àgua que chegue para ambos, mas a criança está biologicamente dependente dele para preparar o leite em pó, pôr no biberão, etc.

Não vejas isto como uma analogia, mas como um teste da tua regra que diz que se a criança está dependente dos pais e ninguém mais pode cuidar dela os pais têm o direito de a matar.

Já agora, quanto é que é o tempo limite para essa regra entrar em efeito? Horas? Dias? Meses?

Ricardo Alves disse...

Ludwig,
sinceramente estou mais preocupado com a mulher desempregada da Brandoa que tem oito filhos e descobre que está grávida de oito semanas. O investigador na Antárctida não me interessa muito, até porque se trata de um território sem jurisdição portuguesa.

Mais: não tenho dúvidas de que podes isolar cada um dos meus argumentos no abstracto, levá-lo ao extremo e torná-lo eticamente insustentável. Posso fazer o mesmo com qualquer um dos teus argumentos.

Neste caso, não se trata de nenhuma regra «dependência biológica=>direito absoluto da mulher». Trata-se de considerar várias circunstâncias em simultâneo. Cada uma delas, isolada, não implicaria que se despenalizasse o acto. Todas em conjunto, sim.

Considerarás que o argumento é circular. Talvez sim. Mas isso até será uma vantagem.

Ludwig Krippahl disse...

Não considero o argumento circular, e aceito que seja uma combinação de muitos factores. Só estou a criticar um factor específico que tu apontas como importante: o feto tem menos valor, ou menos direito à vida, por depender da mãe. Essa inferência considero-a inválida pois, ao que parece, só se aplica ao feto. Em mais nenhun caso estar dependente do pai ou da mãe reduz o direito à vida.

E se bem que a desempregada da Brandoa esteja numa situação desagradável, ao menos ninguém quer despenalizar a sua morte... A mim preocupa-me mais uma lei que diz que matar seres humanos está bem, desde que seja cedinho. Nota que a lei como está agora não diz que se tem que punir a desempregada da Brandoa; não há pena mínima para o crime de aborto.

Ricardo Alves disse...

Ludwig, essa inferência só se aplica ao feto porque só o feto está numa situação de dependência biológica intransferível. Por mais voltas que se dê, é efectivamente uma situação totalmente diferente da que acontece com qualquer criança.

Quanto à lei actual, contém a possibilidade da pena. E há punição, por vezes.