Semanas após os atentados de Paris e Copenhaga, há três coisas que continua a ser urgente sublinhar: que os ataques não foram actos isolados, mas sim os mais recentes episódios de uma já longa (embora intermitente) guerra; que o islamismo radical, na Europa e fora dela, é o grande movimento totalitário do século 21 e a «narrativa» mais importante a seguir à crise financeira; e que a esquerda tem que saber responder ao que se está a passar.
Os grupos islamistas radicais que foram os principais responsáveis pela maior parte da violência política dos últimos quinze anos (Al-Qaeda, Estado Islâmico...) podem parecer pequenos grupos isolados. Na realidade, só na preferência estratégica pela violência são separáveis de um movimento mais amplo, o dos partidos islamistas ligados pela Irmandade Muçulmana que subiram democraticamente ao poder no Egipto e na Tunísia (temporariamente) e na faixa de Gaza. A ideologia de raiz dos islamistas que concorrem a eleições e que fazem atentados é a mesma, salafista. Em quase todos os países do Magrebe e do Médio Oriente, a iniciativa política pertence-lhes e raramente (Tunísia) uma alternativa de esquerda e laica os consegue derrotar em eleições livres. Na Europa, estão presentes de forma marginal entre os imigrantes muçulmanos. Só por distracção se pode portanto pretender que cada atentado é um caso isolado e esperar que não volte a acontecer.
A esquerda, e felizmente menos em Portugal do que noutros países, perde-se nesta questão numa colecção de equívocos sobre o islamismo radical (um catálogo em
BSS): que a sua origem se deve ao imperialismo europeu e americano ou ao conflito israelo-palestiniano; ou então ao capitalismo; ou ao colonialismo e racismo europeus; e que defender a laicidade é islamofobia.
Começando pelo imperialismo europeu: sim, a Al-Qaeda, embora já ninguém o recorde, começou contra um imperialismo europeu - a ocupação soviética do Afeganistão. E a errónea invasão do Iraque em 2003 alimentou a Al-Qaeda e a sua ressaca o Estado Islâmico. Mas, face às contradições e às vistas curtas dos Estados «ocidentais», a Arábia Saudita e o Irão tiveram uma política constante e coerente de apoio ao extremismo. Aliás, até ao Verão passado o «Estado Islâmico» era financiado pelos sauditas e pelas petromonarquias do Golfo, principalmente para combater a influência iraniana/xiíta no Iraque. Somente por eurocentrismo se pode portanto argumentar que os islamistas radicais são motivados pelo «imperialismo europeu»: a luta pelo califado é uma luta interna dos países árabes entre neo-conservadores e moderados laicos, que surgiu décadas depois do fim do colonialismo. (Muito menos, e ao contrário do que querem os anti-sionistas e os pró-israelitas, se pode considerar que estes movimentos existam por causa do Estado judaico. O conflito israelo-palestino, acrescente-se, causou muito menos mortos em cinquenta anos do que as guerras da Síria ou do Iraque em dois ou três anos.)
Quanto à questão económica, a política económica dos islamistas, para além de se basear em «caridades» muitas vezes financiadas por wahabitas, é o capitalismo existente. E o seu financiamento daí vem. Pretender que seriam uma alternativa ao capitalismo ou que resultem da frustração com ele é ingenuidade.
Finalmente, muitos insistem em que a menor crítica ao Islão é um ataque aos muçulmanos, como se não houvesse diferença entre criticar ideias ou pessoas. Os mesmos, frequentemente, são capazes de dizer que «o Estado Islâmico não é islâmico» e que «não há violência motivada pela religião». É o mesmo que dizer que as Cruzadas ou a Inquisição nada tiveram que ver com o cristianismo. Mais do que nunca, é necessário repetir todas as vezes que forem necessárias que laicidade não é racismo, é o seu contrário: é tratar os muçulmanos como pessoas crescidas que devem conseguir lidar com as críticas às suas ideias, e que não devem ficar fechados numa redoma. A luta nas ruas de Paris é a mesma de Kobane e da Arábia Saudita: ser Charlie ou ser Raif Badawi significa o mesmo, porque a humanidade é só uma. Anticlericalismo não é islamofobia.