sábado, 13 de dezembro de 2014

A democracia não pode ser só para o Estado

Grassa alguma agitação em Canelas (Gaia): os católicos locais não concordam com a escolha de sacerdote da hierarquia ICAResca. As circunstâncias têm zonas cinzentas e intrigas, mas a vontade da comunidade católica local (a «paróquia») parece ser unânime: querem o padre que estava e não o que veio. A hierarquia, essa, nem sequer se digna explicar a sua decisão: quer assim e os destinatários que embrulhem. O assunto já meteu até promessas de lugares no funcionalismo público para o padre «demitido», e a intervenção de uma potência estrangeira.

Eu sei que há muito quem ache que não tenho nada com isso: nem sequer sou cristão. Eu acho que sim, que tenho. Existir uma «sociedade paralela» em Portugal (refiro-me à ICAR) que é inteiramente anti-democrática, ao ponto, como se prova neste caso, de impor um sacerdote a uma comunidade que o rejeita, não é propriamente uma boa influência para o país como um todo. A democracia não é só a Assembleia da República, as autarquias e o PR. Uma sociedade só é realmente democrática quando as instituições, todas ou quase, funcionam de forma democrática. Mesmo aquelas a que só pertence quem quer. O exemplo mais discutido a esse respeito é o dos partidos, mas cabe recordar que uma associação não pode, legalmente, ser não democrática.
A ideia de igrejas (ou outras comunidades religiosas) a funcionarem de forma democrática parece com certeza exótica ao leitor português. E todavia, mesmo na Europa muitas igrejas de tradição luterana elegem quem gere a sua comunidade. É o que acontece, com especificidades, na Dinamarca e na Islândia, onde leigos elegem e são eleitos; enquanto na Suécia todos os membros da Igreja Luterana podem votar para representantes «parlamentares» ao nível da paróquia, da diocese e nacional; até o líder formal é eleito (em 2014, os suecos elegeram uma mulher). A autoridade destes representantes eleitos, geralmente, não se estende a decidir quem é padre ou bispo (embora na Suécia os bispos sejam eleitos por padres e leigos); mas a legitimidade democrática está lá e impediria uma Canelas nórdica. Ainda mais democráticas do que estas igrejas luteranas são algumas igrejas protestantes «liberais» dos EUA que elegem padres e bispos por voto directo dos leigos (após entrevistas e debates, como é normal). Tudo isto serve para lembrar que uma igreja não deixa de ser cristã (regra geral) se não mantiver a nomeação de bispos e sacerdotes autoritária e do topo para a base que é típica da ICAR.
Em resumo: acho que a agitação de Canelas se resolveria se fossem a votos. E sei que não acontecerá, porque isso seria democrático e portanto anti-católico.

16 comentários :

Luís Lavoura disse...

Não. Um grupo só pode funcionar de forma democrática se tiver alguma forma de controlo de acesso. Caso contrário, está sujeito a que se inscrevam nesse grupo um número grande de arrivistas que se juntem para conquistar o poder.
Em muitas associações (por exemplo o Benfica) os sócios mais antigos têm direitos de voto multiplicados. Isso não é democrático, porém serve para garantir que a associação não pode ser facilmente conquistada por arrivistas.
E o Estado não impede isso. O Estado não proíbe o Benfica de ter esses direitos de voto especiais. Toda a gente percebe que isso não é democrático, mas que é essencial.

Luís Lavoura disse...

No caso concreto da ICAR, os "donos" dessa instituição pretendem que ela continue a seguir uma certa doutrina. Por isso instituíram uma forma de governo, não democrática, na qual as pessoas que estão há mais tempo na instituição é que mandam nela.
É mais ou menos a mesma coisa que no Benfica, onde os sócios mais antigos têm mais direito de voto em assembleias gerais do que os sócios mais recentes. E isso também é antidemocrático, porém é feito em muitíssimas associações.
A alternativa seria ter-se como em certos partidos que, à força de serem muito democráticos, estão sujeitos a serem conquistados por quem nada tem a ver com eles. Por exemplo o PRD eanista, que se tornou num partido nacionalista por se ter deixado conquistar.

Anónimo disse...

O Benfica dá direito de voto aos membros. Nada impede uma organização de se organizar democraticamente e instituir tantas câmaras intermédias quanto ache necessário, como forma de protecção, e a que se acede por meio de regras transparentes e igualitárias. Não me parece que a idade de filiação contrarie isso, fundamentalmente. E de qualquer forma os estatutos podem sempre ser revistos. Note-se que o Benfica não é só para homens, nem só para brancos ou não-judeus. E se por acaso o seu regulamento fizer uso de uma regra de nacionalidade, então a prova de nacionalidade terá de ser a que outras instituições usam também. Esse acoplamento à prática democrática da sociedade como um todo é que é essencial.

No caso da ICAR não é isso que sucede. A Igreja veda à partida a entrada na hierarquia cerca de metade da população com base em princípios desigualitários, de raciocício circular e de apelo à tradição. A desculpa mágica é a de ser uma religião, e por isso intocável.

Se uma qualquer associação civil impedir a entrada a mulheres (ou não-brancos, judeus, homossexuais, etc.) isso estará em conflito directo com a Constituição. A democracia – que não se esgota em fórmulas de representação proporcional – não é só para as instituições ou porque dá mais jeito. É um princípio civilizacional que se quer plasmado na vida da sociedade inteira.

Há por exemplo em Portugal uns tantos bares que descriminam com base na cor da pele e na orientação sexual. E uma barbearia que não admite a entrada a mulheres. A maçonaria, historicamente masculina, já admite a filiação de mulheres mas por alguma razão tem um rito separado e, seja como for, há lojas que na prática são unicamente masculinas.

Se um tribunal manifesta a incompatibilidade da prática daquela barbeariazeca com a Constituição, que faz uso da famosa (e inexistente) "reserva do direito de admissão", porque é que o mesmo não se aplica à Igreja e à Maçonaria? Num Estado de Direito, num Estado laico, não há associações de primeira ou de segunda.

NG disse...

Enquanto o país conhece uma flagrante instrumentalização das instituições judiciais para o condicionamento do debate poítico, cerceamento da liberdade de expressão, enxovalhamento público e limitação dos seus direitos cívicos, de um cidadão que submeteu as suas propostas políticas a votos, subvertendo escandalosamente a integridade da nossa democracia, está o Ricardo Alves preocupado com o que se passa na Igreja Católica. Que Deus nos Livre de políticos assim.

Unknown disse...

O que caracteriza uma organização da sociedade civil não politica é precisamente a sua natureza não democrática.
E sim somente ao Estado se deve exigir Democracia porque somente o Estado detêm o monopólio do uso da força.
Porque nas associações cada um é livre de aderir ou se desvincular das mesmas caso não se reveja nos princípios da organização.

Ricardo Alves disse...

Está rotundamente enganado, José Lourenço. Aconselho-o a consultar a lei geral do associativismo: o carácter democrático das associações da sociedade civil é obrigatório.

Unknown disse...

É então capaz de apontar o artigo em questão? É que não o encontro.... Grato.

Ricardo Alves disse...


http://www.cases.pt/associacoes/legislacao/codigo-civil-art157a184-associacoes

Unknown disse...

É caso para dizer que a montanha pariu um rato Ricardo Alves....
Pois nada do que essas disposições gerais regulam determina a natureza dos estatutos que uma determinada associação entende ser a melhor para o prosseguimento das suas atividades e objetivos pois se o fizesse violaria o preceito constitucional de livre associação.
E quem define os estatutos são os associados e não o Estado logo as associações são por definição não democráticas.

Ricardo Alves disse...

ARTIGO 170.º
(Titulares dos órgãos da associação e revogação dos seus poderes)

1. É a assembleia-geral que elege os titulares dos órgãos da associação, sempre que os estatutos não estabeleçam outro processo de escolha.

(...)

ARTIGO 171.º
(Convocação e funcionamento do órgão da administração e do conselho fiscal)

1. O órgão da administração e o conselho fiscal são convocados pelos respectivos presidentes e só podem deliberar com a presença da maioria dos seus titulares.

2. Salvo disposição legal ou estatutária em contrário, as deliberações são tomadas por maioria de votos dos titulares presentes, tendo o presidente, além do seu voto, direito a voto de desempate.

ARTIGO 172.º
(Competência da assembleia geral)

1. Competem à assembleia-geral todas as deliberações não compreendidas nas atribuições legais ou estatutárias de outros órgãos da pessoa colectiva.

2. São, necessariamente, da competência da assembleia-geral a destituição dos titulares dos órgãos da associação, a aprovação do balanço, a alteração dos estatutos, a extinção da associação e a autorização para esta demandar os administradores por factos praticados no exercício do cargo.

ARTIGO 175.º
(Funcionamento)

1. A assembleia não pode deliberar, em primeira convocação, sem a presença de metade, pelo menos, dos seus associados.

2. Salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações são tomadas por maioria absoluta dos associados presentes.

3. As deliberações sobre alterações dos estatutos exigem o voto favorável de três quartos do número dos associados presentes.

4. As deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.

5. Os estatutos podem exigir um número de votos superior ao fixado nas regras anteriores.

Unknown disse...

Nada do que ai está aponta para uma obrigatoriedade de uma associação ter de se organizar de forma democrática.
Para além de que todas essas regras estão subordinadas aos estatutos que uma dada associação entenda serem os melhores para alcançar os seus objetivos.
Não devia ser muito difícil perceber que quando as associações determinam as condições de adesão esse é logo um elemento não democrático que distingue de forma fundamental as associações do Estado.
A razão é simples só o Estado pode impor a coerção então a democracia é fundamental para nos proteger do Estado usar desse poder de forma arbitrária tal como já o fez no passado. Mas as associações são de livre adesão ninguém pode ser forçado a fazer parte de uma ou a permanecer nesta caso já não se reveja na mesma.
A outra grande diferença são os interesses. Eu percebo que quando se escreve com a mão esquerda se tenha alguma dificuldade em distinguir o publico do privado. A questão é que mesmo que uma associação acabe por intervir no espaço publico os seus interesses serão sempre particulares e na proteção desses interesses uma associação nunca será democrática.

Ricardo Alves disse...

Confunde duas coisas. Uma associação ser de adesão voluntária e isso significar que não é democrática. Não é assim. As associações são democráticas, e só pode aderir a elas quem quiser. Não há contradição.
Quanto ao seu segundo argumento, significa que os partidos não são democráticos (na sua opinião).

Unknown disse...

Não há confusão nenhuma.

Não é a adesão voluntária que estabelece o caracter não democrático das associações.

Uma coisa é o direito de um membro se dissociar de uma organização da qual faz parte outra bem diferente é dizer que esse direito existe igualmente na adesão a uma determinada associação.

Obviamente isso é falso as associações podem definir as condições de adesão para os seus membros logo são não democráticas porque o seu acesso é condicionado.

Quanto ao seu segundo ponto correto os partidos políticos não são democráticos o acesso é igualmente condicionado e se um militante violar as normas que esse partido estabelece pode ser sancionado e nos casos mais graves inclusivamente ser expulso do partido.

Os partidos só são democráticos quando conquistam o Poder não por sua iniciativa mas sim porque existe uma Constituição essa sim democrática que limita a forma como os partidos que ganhando a confiança dos cidadãos e sendo eleitos podem fazer uso do Poder que lhes foi confiado.

Ricardo Alves disse...

José, não são as regras de admissão que definem se um dado grupo é uma democracia ou não. São as regras de funcionamento. Nenhum de nós pode, por exemplo, chegar a uma democracia qualquer e pedir a nacionalidade imediatamente (França, Suíça, EUA, Portugal, etc). Não deixamos de considerar esses países democracias por essa razão. Como não deixamos de considerar partidos que têm regras de funcionamento democráticas como sendo democráticos só porque restringem o acesso.

Unknown disse...

Os partidos não são muitos diferentes de uma igreja. Os seus dogmas são chamados de ideologias onde existem igualmente pontos indiscutíveis na sua doutrina. que não podem ser questionados. O militante que os questione arrisca a expulsão. As regras de funcionamento até podem ser "democráticas" mas nem o acesso nem a discussão de ideias o é sob pena do partido poder ser tomado por ideias correntes e desvirtuar o ideário que levou à sua formação. Os partidos vendem ideias a maior parte das vezes sonhos e ilusões tal como a igrejas ....A diferença é que no nosso modelo as igrejas não tem poder politico por isso só segue essas ideias quem quer. Portanto não são os partidos o garante da democracia da liberdade e do Estado de Direito o sonho de qualquer partido seria a ausência de oposição tal como o sonho de uma igreja seria ser a fé única. São sim limites constitucionais e éticos que impedem que os partidos que são bem sucedidos em vender essas ideias possam depois fazer o uso desse Poder como muito bem entenderem.
Como pode ver a organização dos partidos é muito semelhante a uma igreja e portanto não democráticos independentemente das regras do seu funcionamento...

Ricardo Alves disse...

A esmagadora maioria das pessoas usa o adjectivo «democrático» para regras de funcionamento (tipicamente, eleição).