Muitas pessoas, geralmente com um conhecimento político pouco aprofundado, dizem que não são de "Esquerda", de "Direita", nem de "Centro". Alegam que é uma divisão simplista e redutora, ou que "o que importa é X" em que X é um valor consensual como a integridade, transparência, desenvolvimento, bem-estar, etc. Acreditam também que os partidos deviam "trabalhar em conjunto" para atingir estes objectivos.
Não é uma posição absurda ou indefensável por parte de um indivíduo, mas quase sempre é uma posição inconsistente. Neste texto quero explicar porquê.
Quero também defender que quando um partido faz essa alegação, ela é quase sempre desonesta.
Primeiro, concordo que a divisão em "Esquerda" e "Direita" é uma divisão simplista e redutora. Mas a complexidade de um posicionamento político teria sempre de ser simplificada e "reduzida" para ser exposta em menos de várias horas (já para não dizer "em poucas palavras").
Se os termos e conceitos "Esquerda" e "Direita" desaparecessem, teriam necessariamente de surgir outros análogos ou piores, para conseguir transmitir - mesmo que imperfeitamente - muito conteúdo em poucas palavras.
Posto isto, importa perguntar o que é que alguém quer dizer quando diz que é "de Esquerda"? O conceito é difuso, e abarca visões muito diferentes, desde as mil e uma perspectivas marxistas, até às perspectivas anarquistas, passando por perspectivas que aceitam a economia de mercado e querem fazer alterações ligeiras e graduais à sociedade onde vivemos. O que é que têm em comum?
Aquilo que a Esquerda tem em comum é encarar o nível de desigualdade que existe como um problema a resolver politicamente, ou seja: em conjunto.
Isto pode querer dizer coisas diferentes: quem considere que toda e qualquer desigualdade será sempre excessiva é de esquerda; mas quem considere que existem níveis de desigualdade aceitáveis, mas que o actual é excessivo e problemático também é de esquerda.
E se existem diferenças quanto ao objectivo, ainda mais existem quanto às formas de o atingir. Revolução? Reformas graduais? Estado social? Abolição do estado? Tudo isto são perspectivas compatíveis com convicções de esquerda.
E mesmo o termo "desigualdade" pode ter vários significados. Desigualdade de rendimentos e património? Desigualdade de oportunidades? Desigualdade política?
Se calhar o leitor está a abanar a cabeça. É possível (até provável) que considere evidente que a desigualdade que existe é um problema a resolver, mas nem por isso se considere de "Esquerda".
É compreensível: a associação que faz à "Esquerda" é aos partidos que conhece e não tanto às ideias subjacentes que unem estes e outros partidos (melhores ou piores) em todo o mundo. Esquece que o termo "nasceu" durante a Revolução Francesa para designar aqueles que se opunham às desigualdades políticas e sociais do Antigo Regime, e desde então tem estado associado ao combate às desigualdades (mesmo que por vias radicalmente diferentes). É por isso que o movimento sufragista pelo acesso das mulheres ao voto esteve associado à "Esquerda", é por isso que a luta contra os regimes de "aparteid" esteve associada à "Esquerda", e por aí fora.
Note-se também que grande parte das pessoas "de Direita" não obstarão a esta definição de "Esquerda". Muitas apresentarão argumentos e razões que justificam porque é que a desigualdade não deve ser encarada como um problema, ou porque é que quando se tenta fazer algo em comum para o resolver, só se consegue piorar a sociedade. Na verdade, vários pensadores celebrados pela "Direita" encontraram razões diferentes para se opor ao esforço colectivo de diminuir as desigualdades. Nuns casos porque - na sua perspectiva - qualquer acção colectiva neste sentido envolve necessariamente uma invasão da liberdade individual (a perspectiva do liberalismo de direita), noutros casos porque consideram que mudar as estruturas sociais (dito em tom pejorativo "fazer engenharia social") é arriscado e contra-producente (a perspectiva conservadora). Em Portugal (não sei se noutros sítios também) existem inúmeros conservadores a auto-identificar-se como liberais de direita, vá-se lá saber porquê (exemplo canónico).
Assim, é possível um indivíduo não ser de "Direita", "Esquerda" nem "Centro"? Sim. Quando pergunto a alguém "achas que deveríamos fazer algo em conjunto para diminuir as desigualdades?" essa pessoa pode responder que sim, e nesse caso será de "Esquerda", mesmo que não o saiba. Se responder que não, é importante perceber se ele acredita que as coisas estão bem como estão ("Centro") ou se acredita devem existir mudanças sociais importantes com determinados objectivos, que acabassem por aumentar as desigualdades como efeito colateral, caso em que será de "Direita".
Para não ser de "Esquerda", "Centro" ou "Direita" deverá responder a essa pergunta com um "não sei". E eu não sei se essa é uma resposta sensata (sou da opinião que não), mas sei que é uma resposta muito rara. Quase todas as pessoas que me dizem que não são de "Esquerda" ou "Direita" têm uma resposta à pergunta sobre as desigualdades que as coloca algures no espectro.
E se é difícil que uma pessoa, pelos seus valores e princípios, não esteja algures no espectro, mais difícil ainda será a um partido. Aí é uma questão de avaliar as suas propostas: têm propostas que visam diminuir desigualdades? Têm propostas que visam outros objectivos, mas que acabariam efectivamente por aumentá-las? Qual é o balanço entre elas?
Mesmo um partido que não se auto-identifique como sendo de "Esquerda" ou "Direita" é imediatamente identificado pelos outros partidos - à "Esquerda" e "Direita", e também pelos cientistas políticos, como estando num determinado ponto desse contínuo.
Dois exemplos: o PAN e o Podemos. Ambos dizem que não são de "Direita" nem de "Esquerda", mas os partidos de "Direita" consideram-nos de "Esquerda" e os partidos de "Esquerda" também.
[Afinal o Podemos assume-se como sendo um partido de esquerda, ver mais detalhes nos comentários.]
Porque é que um partido de "Esquerda" não se identificaria como tal? Precisamente porque a diminuição das desigualdades é um objectivo muito mais popular que o termo "Esquerda". Para as inúmeras pessoas que se identificam com o objectivo mas ignoram o significado de "Esquerda", e que até sentem alguma "distância afectiva" em relação ao termo (associando-o a partidos e instituições que aprenderam a desgostar, por exemplo), esta é a solução perfeita.
Infelizmente não me parece a mais honesta.
Não é uma posição absurda ou indefensável por parte de um indivíduo, mas quase sempre é uma posição inconsistente. Neste texto quero explicar porquê.
Quero também defender que quando um partido faz essa alegação, ela é quase sempre desonesta.
Primeiro, concordo que a divisão em "Esquerda" e "Direita" é uma divisão simplista e redutora. Mas a complexidade de um posicionamento político teria sempre de ser simplificada e "reduzida" para ser exposta em menos de várias horas (já para não dizer "em poucas palavras").
Se os termos e conceitos "Esquerda" e "Direita" desaparecessem, teriam necessariamente de surgir outros análogos ou piores, para conseguir transmitir - mesmo que imperfeitamente - muito conteúdo em poucas palavras.
Posto isto, importa perguntar o que é que alguém quer dizer quando diz que é "de Esquerda"? O conceito é difuso, e abarca visões muito diferentes, desde as mil e uma perspectivas marxistas, até às perspectivas anarquistas, passando por perspectivas que aceitam a economia de mercado e querem fazer alterações ligeiras e graduais à sociedade onde vivemos. O que é que têm em comum?
Aquilo que a Esquerda tem em comum é encarar o nível de desigualdade que existe como um problema a resolver politicamente, ou seja: em conjunto.
Isto pode querer dizer coisas diferentes: quem considere que toda e qualquer desigualdade será sempre excessiva é de esquerda; mas quem considere que existem níveis de desigualdade aceitáveis, mas que o actual é excessivo e problemático também é de esquerda.
E se existem diferenças quanto ao objectivo, ainda mais existem quanto às formas de o atingir. Revolução? Reformas graduais? Estado social? Abolição do estado? Tudo isto são perspectivas compatíveis com convicções de esquerda.
E mesmo o termo "desigualdade" pode ter vários significados. Desigualdade de rendimentos e património? Desigualdade de oportunidades? Desigualdade política?
Se calhar o leitor está a abanar a cabeça. É possível (até provável) que considere evidente que a desigualdade que existe é um problema a resolver, mas nem por isso se considere de "Esquerda".
É compreensível: a associação que faz à "Esquerda" é aos partidos que conhece e não tanto às ideias subjacentes que unem estes e outros partidos (melhores ou piores) em todo o mundo. Esquece que o termo "nasceu" durante a Revolução Francesa para designar aqueles que se opunham às desigualdades políticas e sociais do Antigo Regime, e desde então tem estado associado ao combate às desigualdades (mesmo que por vias radicalmente diferentes). É por isso que o movimento sufragista pelo acesso das mulheres ao voto esteve associado à "Esquerda", é por isso que a luta contra os regimes de "aparteid" esteve associada à "Esquerda", e por aí fora.
Note-se também que grande parte das pessoas "de Direita" não obstarão a esta definição de "Esquerda". Muitas apresentarão argumentos e razões que justificam porque é que a desigualdade não deve ser encarada como um problema, ou porque é que quando se tenta fazer algo em comum para o resolver, só se consegue piorar a sociedade. Na verdade, vários pensadores celebrados pela "Direita" encontraram razões diferentes para se opor ao esforço colectivo de diminuir as desigualdades. Nuns casos porque - na sua perspectiva - qualquer acção colectiva neste sentido envolve necessariamente uma invasão da liberdade individual (a perspectiva do liberalismo de direita), noutros casos porque consideram que mudar as estruturas sociais (dito em tom pejorativo "fazer engenharia social") é arriscado e contra-producente (a perspectiva conservadora). Em Portugal (não sei se noutros sítios também) existem inúmeros conservadores a auto-identificar-se como liberais de direita, vá-se lá saber porquê (exemplo canónico).
Assim, é possível um indivíduo não ser de "Direita", "Esquerda" nem "Centro"? Sim. Quando pergunto a alguém "achas que deveríamos fazer algo em conjunto para diminuir as desigualdades?" essa pessoa pode responder que sim, e nesse caso será de "Esquerda", mesmo que não o saiba. Se responder que não, é importante perceber se ele acredita que as coisas estão bem como estão ("Centro") ou se acredita devem existir mudanças sociais importantes com determinados objectivos, que acabassem por aumentar as desigualdades como efeito colateral, caso em que será de "Direita".
Para não ser de "Esquerda", "Centro" ou "Direita" deverá responder a essa pergunta com um "não sei". E eu não sei se essa é uma resposta sensata (sou da opinião que não), mas sei que é uma resposta muito rara. Quase todas as pessoas que me dizem que não são de "Esquerda" ou "Direita" têm uma resposta à pergunta sobre as desigualdades que as coloca algures no espectro.
E se é difícil que uma pessoa, pelos seus valores e princípios, não esteja algures no espectro, mais difícil ainda será a um partido. Aí é uma questão de avaliar as suas propostas: têm propostas que visam diminuir desigualdades? Têm propostas que visam outros objectivos, mas que acabariam efectivamente por aumentá-las? Qual é o balanço entre elas?
Mesmo um partido que não se auto-identifique como sendo de "Esquerda" ou "Direita" é imediatamente identificado pelos outros partidos - à "Esquerda" e "Direita", e também pelos cientistas políticos, como estando num determinado ponto desse contínuo.
Dois exemplos: o PAN e o Podemos. Ambos dizem que não são de "Direita" nem de "Esquerda", mas os partidos de "Direita" consideram-nos de "Esquerda" e os partidos de "Esquerda" também.
[Afinal o Podemos assume-se como sendo um partido de esquerda, ver mais detalhes nos comentários.]
Porque é que um partido de "Esquerda" não se identificaria como tal? Precisamente porque a diminuição das desigualdades é um objectivo muito mais popular que o termo "Esquerda". Para as inúmeras pessoas que se identificam com o objectivo mas ignoram o significado de "Esquerda", e que até sentem alguma "distância afectiva" em relação ao termo (associando-o a partidos e instituições que aprenderam a desgostar, por exemplo), esta é a solução perfeita.
Infelizmente não me parece a mais honesta.
5 comentários :
O problema é que, parafraseando Jorge Lago do Podemos, ganhar "honestamente" tem um outro nome: perder.
especialmente a partir dos 11:00:
http://www.dailymotion.com/video/x29h8nv_les-alternatives-sur-mediapart-jorge-lago-et-l-experience-podemos_news
De qualquer modo, convém fazer uma precisão: os membros mais conhecidos do Podemos não negam ser de esquerda (e vir de uma tradição de esquerda, como se pode constatar nesta entrevista do Jorge Lago que linkei ou no canal You Tube "Forte Apache" animado pelo Pablo Iglesias onde se pode assistir a inúmeros debates detalhados que não deixam lugar à ambiguidade no que a este ponto diz respeito). O que me parece que eles pretendem é outra coisa (e é muito inteligente): federar a vontade política de um eleitorado muito mais vasto do que o formado por aqueles que se reconhecem na esquerda em torno de um projecto político que é essencialmente próximo daquele da esquerda reformista (social-democracia) mas num novo contexto em que as condições e as decisões políticas necessárias à sua implementação se terão tornado, em certos aspectos, revolucionárias no sentido em que implicam um corte radical com certos pressupostos que foram, sem deliberação democrática, institucionalizados em tratados internacionais.
Muito bom.
Susskind:
Confesso que desconheço um pouco a situação e detalhes em relação ao Podemos. Na verdade o artigo foi suscitado por uma conversa muito recente que tive com um familiar que esteve envolvido com um partido de direita e tinha o tal discurso de "não sou de direita nem de esquerda". Em conversa percebi que ele era mais de esquerda do que eu, abominando este "sistema baseando na ganância" e dizendo que qualquer desigualdade que exista será sempre excessiva (aqui ultrapassou-me, pois considero que algum grau de desigualdade pode ser defensável, mesmo que o actual nível seja excessivo).
Se as pessoas do Podemos não negam ser de esquerda, e se não negam que as propostas do partido sejam propostas de esquerda, então aquilo que eu disse não tem razão de ser.
Faz sentido que não embandeirem em arco com o termo, precisamente porque afasta pessoas menos politizadas e informadas que até se podem identificar com os valores fundamentais.
Mas se chegam ao ponto de negar que são de esquerda, ou são ignorantes ou estão a mentir. E aí, acho preferível perder honestamente no curto prazo (e no longo prazo tentar cada vez mais informar as pessoas, etc..), do que ganhar com base na mentira.
João Vasco:
eles assumem-se claramente como sendo de esquerda, sem dúvida nenhuma. Aqui está um pequenino vídeo (7 mins) no qual o Pablo Iglesias aborda esta questão:
https://www.youtube.com/watch?v=6-T5ye_z5i0&feature=youtu.be
Ok. Ignorância minha. Obrigado pelo aviso.
Vou editar o post nesse sentido.
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