segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Liberdades positivas e negativas - VI

Mesmo os próprios que propuseram estas definições e conceitos tenderam a fazer uma interpretação restrita e enviesada deles.

Isso acontece porque há certos valores que estão tão embuidos na forma como vemos o mundo, que já nem nos apercebemos da sua natureza ou existência. Assim sendo, as liberdades negativas deixaram de ser interpretadas à luz da sua definição objectiva, mas sim à luz dos valores subjectivos do grupo de pessoas que mais escreveu sobre elas.

Por exemplo: (suponho que) estamos todos de acordo que numa sociedade de absoluto respeito pelas liberdades negativas, A pode andar nu no meio da rua. Também estamos todos de acordo que no estrito respeito pelas liberdades negativas, qualquer indivíduo que veja A assim no meio da rua será livre de escarnecer dele. Não o poder fazer limitaria a sua liberdade de expressão.

Mas agora imaginemos que C ameaça A, dizendo que ou ele se veste, ou C "parte-lhe a boca". Caso C não possa fazer esta ameaça, a sua liberdade de expressão é afectada. Mas podemos dizer que a própria ameaça constituiria uma violação à liberdade negativa de A. Mas isso já corresponde aos nossos valores e não à definição: para A o escárnio pode ser pior que as ameaças, mas em qualquer dos casos ele não é impedido de permanecer nu. Assim sendo, ou consideramos que o escárnio seria uma violação das liberdades negativas de A, ou temos de assumir que C não está a violar estas liberdades. E assim a ameaça não viola qualquer liberdade negativa.

Com o furto passa-se a mesma coisa. Um indivíduo arromba a porta de minha casa e furta-me um livro. Pela definição, isto não violará qualquer liberdade negativa a priori.
Claro que podemos criar uma liberdade positiva em relação à "propriedade" e aí todos teremos de pagar impostos para que a polícia impeça o furto ou, em colaboração com os tribunais, castigue o prevaricador.


Ou seja: para que as liberdades negativas tenham significado, têm de existir liberdades positivas. Se considerarmos a existência de liberdades positivas em relação à segurança e propriedade, e que são asseguradas todas as liberdades negativas menos as que entrem em conflito com estas liberdades positivas, conseguimos um sistema de valores coerente, que é igual ao dos liberais de direita. O que mostra que estes, sem o saber, defendem estas liberdades positivas.

Claro que a escolha é arbitrária. Porquê a segurança e a propriedade e não a segurança e a fome? Porque não a segurança, a fome e a saúde (como defenderá um partidário do regime cubano)? Há boas razões para rejeitar qualquer destas escolhas. Porque qualquer boa solução não é tão simples como isto.

5 comentários :

David Lourenço Mestre disse...

Que confusao que vai por aqui.

Ricardo Alves disse...

João Vasco,
os liberais vão dar a volta a isso dizendo que o «direito à propriedade» é um «direito natural», e que o «direito a comer» não é natural. Ou seja, ter um banco é natural, ter fome, não. ;)

Helena Henriques disse...

De facto também me parece que anda por aqui confusão. Em primeiro lugar as liberdades não são absolutas, ou seja, a minha termina quando interfiro com a do meu vizinho, neste caso dá-se uma violação da liberdade dele em consequência de acção minha. Cabe ao estado através das suas funções de segurança (prevenção) e jurisdicional (remédio) garantir os direitos do meu vizinho. Isto implica certamente acção do Estado, o que acontece é que realmente, a liberdade em si mesma pede inacção do estado ou de outros particulares (por assim dizer).

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Helena, não há confusão nenhuma. A posição dos «liberais», embora eticamente repugnante e intelectualmente insustentável, tem o mérito considerável de ser fácil de entender.

Suponhamos que eu quero andar nu na rua. É uma liberdade negativa, uma vez que não preciso da colaboração de ninguém para o poder fazer. Os «liberais» acham que só estas liberdades devem ser respeitadas, uma vez que as liberdades positivas pressupõem sempre a colaboração de outrem cuja liberdade se veria assim desrespeitada.

Suponhamos agora que estou a cair de fome, não tenho dinheiro e quero comer. Comer é uma liberdade positiva, uma vez que só comerei se alguém, com contrapartida ou sem ela, me der dinheiro ou comida - o que necessariamente interferirá com os seus direitos. Para os «liberais», a sociedade não tem nada que respeitar liberdades positivas, uma vez que só o poderá fazer limitando as liberdades negativas de terceiros.

É claro que, como aponta o João Vasco, todas as sociedades respeitam as liberdades negativas. Mesmo num regime esclavagista uma pessoa tem a opção entre servir ou morrer, isto é: todos somos, sempre, livres. Mesmo debaixo do chicote.

E também é claro que tudo isto só faz sentido se raciocinarmos sempre em termos absolutos sem nunca matizarmos as coisas. E João Vasco matiza-as, como tem que ser: no exemplo que dá da Laura opõe a liberdade negativa de ela não se despir à frente dos outros à liberdade negativa de os outros não colaborarem na sua sobrevivência.

O mundo abstracto, ideal, absoluto, fundamentalista dos «liberais» pode funcionar só com base nas liberdades negativas. No mundo real, matizado e cheio de compromissos em que vivemos é necessário que as liberdades positivas sejam respeitadas sob pena de não haver liberdades nenhumas para ninguém.

Na Austrália, se um motorista passar por outro que esteja em dificuldades, não parar para o ajudar e em consequência desta omissão de auxílio o outro morrer de fome ou de sede, pode ser condenado a uma pena de prisão. Eu acho esta lei muito bem. Os «liberais», provavelmente, acham-na muito mal. Problema deles.

Helena Henriques disse...

Não me expliquei bem. O que eu disse é que as liberdades negativas tem dois planos, o vertical (relativamente ao Estado) e o horizontal (em relação a outros particulares) e é aqui que mesmo as liberdades negativas dão origem a acção do Estado, porque a ele compete garantir segurança e justiça - isto não é tão referido, do meu ponto de vista, porque estraga um bocadinho o desenho perfeito do direito negativo. Quanto à questão dos direitos positivos, concordo e ainda me atrevo a acrescentar que os liberais insistem tanto em reduzir o ideal social à liberdade, esquecendo igualdade e fraternidade, o resultado previsível (por acaso já está a acontecer) é que acabem a limitar liberdades porque ao gerar tanta exclusão vão criar insegurança, e a própria paranóia securitária vai roer-lhes as liberdades - o problema é que não é só aos liberais... e pior, as pessoas não gostam de pagar impostos o que as transforma facilmente em uma espécie de liberais.