sexta-feira, 11 de agosto de 2006

Falácias da Ética Neo-Liberal II - direito de propriedade e saúde

Imaginemos uma cena passada na pré-história.

Um caçador foi capaz de apanhar um javali, sozinho. A caminho da sua caverna adormece.
Um outro homem passa por lá, e decide levar o javali morto.

O que este homem fez é condenável?

Eu creio que sim.
Mas a questão que me parece mesmo importante é: porquê?


A resposta mais simples, influenciada pela intuição irreflectida, ou por ensinamentos religiosos rígidos e interiorizados, é que a acção constitui roubo. O qual é condenável.

Se for dada esta resposta, sem mais, o direito de propriedade torna-se totalmente sagrado e inviolável. O que pode resultar em situações bem bizarras.


Imaginemos agora que o homem que passou por lá, por alguma razão que agora não vou explicar, precisaria desse javali para poder salvar a vida de 7 elementos da sua tribo. Imaginemos que ele sabe que o caçadaor nunca acederá caso ele peça o javali, mesmo que faça inúmeras promessas de pagamento futuro.
Parece óbvio que "roubar" se torna a decisão eticamente correcta.


Assim sendo, se roubar pode ser a decisão eticamente correcta ou eticamente errada, porque é que às vezes é a decisão correcta e outras vezes é a decisão errada?


A resposta está nas consequências. O roubo, em geral, é errado porque as suas consequências são nefastas do ponto de vista do bem comum: as pessoas são menos incentivadas a produzir bens, e existirá um gasto desnecessário de esforço e recursos a proteger os nossos bens de terceiros. Isto para não falar nas questões da violência, das mortes, etc...

Mas é exactamente este o critério de acordo com o qual a propriedade privada deve ser defendida: o bem comum. E não nenhuma sacralização injustificada.
E assim sendo, torna-se natural que em muitas situações a defesa do bem comum não passe pela defesa da propriedade privada.

O exemplo do roubo do javali para salvar vidas pode parecer disparatado à primeira vista. Mas é uma forte razão para defender o serviço nacional de saúde. Imaginemos que se estima que a esperança média de vida, mantendo o SNS, é superior em um ano àquela que se verificaria se o sistema de saúde fosse inteiramente privado. Em média isso seria o equivalente a dizer que em cada 100 pessoas a vida de 3 tinha sido salva pelo facto do SNS ser público.
Portanto, não se coloca apenas a questão de saber se os impostos são "um roubo", mas também a de saber se não são "um roubo que salva vidas".

14 comentários :

Pedro Fontela disse...

Bem estou a comentar estes post pela ordem contrária mas pronto :)

Essa definiçao do bem comum está demasiada proxima de um conceito puro de democracia enquanto uma ditadura de maiorias. É demasiado vago e pode justificar tudo e mais alguma coisa - socialismo puro e simples.

João Vasco disse...

Se o bem comum resultasse no socialismo, o socialismo seria desejável para todos (pelo próprio conceito de bem comum).

Quem defende que o socialismo não é desejável fá-lo demonstrando que um sistema socialista, por esta ou por aquela razão, não é do interesse da comunidade: não é o que maximiza o bem comum.


O bem comum não resulta numa ditadura das maiorias precisamente porque a Liberdade é um Bem, e a maximização do bem comum tenderá à maximização de uma série de factores (bem estar material, justiça social, segurança, etc..) entre os quais se encontra a Liberdade Individual.

Pedro Fontela disse...

O bem comum é o que convem a uma maioria (porque senao seria o bem de todos), ou seja, legislar só e apenas por esse critério é uma dizer que o único guia legal e ético sao os caprichos da maioria sendo que o individuo nao esta legalmente protegido contra nada.

E sim um sistema socialista nao é conveniente por muitos factores (organizaçao social, economica, de liberdade pessoal, etc).

João Vasco disse...

«O bem comum é o que convem a uma maioria (porque senao seria o bem de todos),»

Err... que conceito estranho que tens de bem comum.

Obviamente tanto poderia ter falado em bem comum como em "bem de todos". Era ao "bem de todos" que me referia, mas a expressão habitualmente usada para designar isso é "bem comum".


Parece-me que todas as críticas que fizeste decorrem desse equívoco.

E quanto ao socialismo, tendo a concordar contigo (apesar de escrever neste espaço :))

Pedro Fontela disse...

Nao Joao :) o Bem de todos nao é um objectivo realista. Um estado todo poderoso centralista o que consegue é previligiar certos grupos, ou seja retira o elemento mérito da equaçao - além de abolir a esfera privada.

Numa democracia isso deriva para a satisfaçao imediata das massas a todo o custo, por necessidades eleitorais.

Pedro Fontela disse...

ps: Olha que se o que defendes nao é socialismo entao anda lá muito perto :) (ainda nao lhe vi grandes diferenças, as mesmas ideias base neo-marxistas com as mesmas ramificaçoes lógicas).

João Vasco disse...

Pedro Fontela:

A tua leitura dos meus artigos foi muito preconceituosa. Explico porque é que eu penso isso: é que tu falas inúmeras vezes naquilo que "eu defendo".

Mas eu não escrevi NADA sobre aquilo que eu defendo.
Eu não apresentei NENHUMA alternativa a estes problemas que apresento.

Tu partiste do princípio que a única alternativa possível era um estado muito poderoso, ou algo muito parecido com o socialismo, e depois acusas-me disso. Mas sem bases, visto que se releres os meus artigos, verás que eu nunca apresento nada que se assemelhe com uma alternativa.

E, na minha cabeça, existem uma infinidade delas, umas melhores, outras piores.
Para muita gente a única alternativa ao NEO-LIBERALISMO TOTAL é o SOCIALISMO TOTAL, e as pessoas só aceitam compromissos contrariadas. Eu não sou uma dessas pessoas.

Pedro Fontela disse...

Joao, eu sei seguir preposiçoes lógicas até à sua conclusao. E também sei ver o quando é que se estao a lançar bases para outras coisas.

A nao ser claro que, mais uma vez, deva assumnir que a critica brutal e injutificada que fazes do modelo capitalista (ou mais propriamente à imoralidade da iniciativa privada) nao passe de outro julgamento moral sem sentido.

ps: existe uma diferença entre polarizaçao e coerencia.

João Vasco disse...

«Joao, eu sei seguir preposiçoes lógicas até à sua conclusao. E também sei ver o quando é que se estao a lançar bases para outras coisas.»

Esse tipo de forma de raciocinar parece-me errado.

Eu digo A=>B=>C, e parece-me que se deveria falar sobre a validade desse raciocínio.
Se o raciocínio for válido, mas tu pensares que eu estou a querer fazer o salto para algo que achas inválido, então é esse salto que deves atacar, e não o raciocínio.

Por essa razão, acho intelectualmente errado estar à procura de "agendas e intenções" naquilo que os outros dizem. Deve avaliar-se se é correcto ou não.

Até porque essa procura tende a falhar redondamente quando se lida com pessoas que não encaixam nas "escolas de pensamento" comuns.

Deve ser o meu caso, porque falhaste redondamente a avalaiar as minhas intenções, ou a minha agenda.

«A nao ser claro que, mais uma vez, deva assumnir que a critica brutal e injutificada que fazes do modelo capitalista»

Quase todas as linhas da crítica que faço são a respectiva justificação.
Terás de encontrar um erro na mesma para poder dizerque a crítica é injustificada.
Não me parece que o tenhas feito.

«(ou mais propriamente à imoralidade da iniciativa privada)»
Hã????
Eu descubro cada coisa... Que raio de razão teria eu para achar a iniciativa privada imoral por si??

«ps: existe uma diferença entre polarizaçao e coerencia.»
Não percebi a relação com o resto.

Pedro Fontela disse...

Seguir as coisas até à sua conclusao parece-me ser uma atitude saudavel e coerente. Daí que nao pense que o que disse seja inválido.

Já dei n razoes pelas quais o teu raciocionio nao é valido em nenhum dos casos que mencionas, se nao aceitas as minhas razoes isso é outra conversa.

Quanto à iniciativa privada: o que é que a motiva?

Falei em polarizaçao e em coerencia porque assim que te falei em socialismo falaste logo em eu ter uma visao que só capta extremos (quando na minha opiniao simplesmente tenho a honestidade de admitir para onde é que certos raciocinios nos levam).

João Vasco disse...

«Seguir as coisas até à sua conclusao parece-me ser uma atitude saudavel e coerente»

De nada daquilo que escrevi decorre o socialismo.

Isso é preconceito teu.


«Já dei n razoes pelas quais o teu raciocionio nao é valido em nenhum dos casos que mencionas»

Não vi. Vi foi acusações de ter uma "carga ideológica" e de "isso levaria ao socialismo", que é falso. Além disso vi alguns males entendidos.


«Falei em polarizaçao e em coerencia porque assim que te falei em socialismo falaste logo em eu ter uma visao que só capta extremos (quando na minha opiniao simplesmente tenho a honestidade de admitir para onde é que certos raciocinios nos levam).»

Isso não é honestidade, é não ver outras possibilidades.

Eu vejo.

Pedro Fontela disse...

Joao,

"Não vi. Vi foi acusações de ter uma "carga ideológica" e de "isso levaria ao socialismo", que é falso. Além disso vi alguns males entendidos."

Vamos distinguir duas coisas:
1) Eu usei arguementos. Foram de ordem empirica e lógicos, penso que nao preciso de demonstrar aqui estatisticamente que o ser humano tenta fazer a melhor escolha ou que quando se sente enganado tem tendencia a reagir - é senso comum a toda a espécie.

2) Sim fiz acusaçoes (separadas dos argumentos principais) sobre as tuas posiçoes. Nao sei se és socialista ou nao mas continuo a achar que seguido até ao fim e definindo o que falta através do que vais dizendo pareceu-me que sim.

João Vasco disse...

1) Isso disseste, mas foi noutra caixa de comentários e eu estava a falar dessa. A esse argumento respondi-te no local próprio.

2) Mas isso é que está errado: assumes que tenho uma posição que não tenho e critica-la como se eu a tivesse.

Isso é como se eu agora, por te ver a discordar dos meus argumentos, me pusesse a falar dos males do fascismo. Aposto que acharias patético.

Nada daquilo que eu escrevi leva aqui ou ali. Volto a respetir que todo o meu texto nunca foi afirmativo.
Se tomares atenção, eu nem sequer defendi o SNS neste texto (apesar de o defender). Nestes textos não disse nada sobre o que acredito.

E é falso que as falhas que eu apontei apontem necessariamente numa direcção. E até fiquei surpreendido com a reacção dos leitores que se pronunciaram.
As pessoas que me conhecem também devem ter achado alguma piada.

Mas há milhentas direcções possíveis para quem aponta as falhas que apontei. Parece-me falta de imaginação não ver outras além do socialismo.

Lucas Santos disse...

Interessante sua ótica da propriedade.

Os liberais, quando falam de propriedade, só se referem ao bem-estar individual.