quinta-feira, 31 de março de 2005

«Atlântico», a revista neo-tola

Alertado pelo Blogue de Esquerda (II), procurei a revista Atlântico, cujo primeiro número é hoje distribuído com o Público. Trata-se, assumidamente, de uma tentativa de criar uma revista «neo-tola»(1) à portuguesa, ou seja, americanófila, ostensivamente atlantista, ocidental-culturalista, francofóbica, «liberalista» e engajada no «combate cultural» à esquerda sessenta-oitista.
Na capa (deliciosa!), há uma rosa socialista que pinga sangue, um Che Guevara sinistro, um francês descerebrado e uma Marianne ridicularizada, reunindo quase todos os fantasmas que fazem os autores da publicação acordar em pânico a meio da noite.
O interior faz jus à capa. Os momentos mais divertidos são, por ordem:
  • a declaração editorial que decreta, iliberalmente, que «a Aliança Atlântica (...) foi e é o garante da nossa liberdade e segurança» (presume-se que incluindo a estupenda «liberdade» salazarista!);
  • o artigo disléxico de Marques de Almeida sobre geometria política;
  • Helena Matos (menos prolixa do que habitualmente, mas imparável na defesa da «civilização ochidental»);
  • o artigo de Vasco Rato (incansável a diabolizar a esquerda pacifista que diaboliza a direita militarista).
Os momentos menos maus são, também por ordem:
  • a recensão do livro do Savater, que fala de assuntos sérios e cativantes;
  • a biografia da Fallaci, que não cai em maniqueísmos ao falar de uma personagem que vive disso mesmo;
  • o artigo de Paulo Tunhas, que embora desenterre da lixeira a pseudo-ciência psicanalítica, é claro na condenação do islamismo, mas ambíguo quanto às respostas, justamente porque o autor não pode (ou não quer?) levar a denúncia dos culturalismos irredutíveis às suas consequências últimas, e falar portanto de combater o terrorismo não apenas com a democracia mas também com a laicidade.
Tudo somado, quem fica a perder é a «Nova Cidadania» e o JC Espada.
(1) «Neo-tolo» é a tradução literalmente correcta do inglês «neocon».

Para ler ou consultar

As Concordatas também se abatem?

A decisão do Presidente argentino, Nestor Kirchner, de cortar o salário e despedir o bispo das forças armadas foi uma violação directa da Concordata argentina de 2002. O contexto do caso já foi relatado no Diário Ateísta, mas eu quero aqui frisar que o que se passou foi uma violação do tratado internacional entre a República argentina e o bairro do Vaticano. A Santa Sé ainda não cortou relações diplomáticas com a Argentina, nem parece que o planeie fazer. Portanto, pode-se fazer gato sapato de uma Concordata sem que daí venham consequências de maior? Uma boa notícia...

quarta-feira, 30 de março de 2005

Igrejas unidas pela Europa

Num comunicado comum, as igrejas cristãs francesas (conferência episcopal católica, federação protestante, assembleia episcopal ortodoxa) apelaram implicitamente ao «sim» no referendo de 29 de Maio ao Tratado Constitucional. Estas igrejas «[felicitam-se] com o reconhecimento pelo Tratado da identidade particular das igrejas e do seu contributo específico para o debate público», numa alusão clara ao artigo I-52. As igrejas regozijam-se também pela consolidação da democracia participativa e consideram que o Tratado traz «melhorias substanciais aos Tratados existentes».
Fica claro, mais uma vez, que os clericais estão satisfeitos com o Tratado Constitucional, mesmo sem a referência cristã no preâmbulo.
E no entanto, é o «não» que progride nas sondagens: 54% (25/3, Ipsos), 53% (24/3, Ifop) ou 55% (23/3, CSA). Evidentemente, ainda faltam 60 dias e está tudo, portanto, em aberto. Mas não deixa de ser reconfortante que o «não» seja cada vez mais maioritário entre o eleitorado de esquerda...

terça-feira, 29 de março de 2005

A Europa vale bem uma missa?

Vital Moreira respondeu, no Causa Nossa, ao meu artigo sobre a sua convergência europeísta com José Policarpo. O tom da resposta, se bem que algo irónico, é indubitavelmente de irritação.
Devo assinalar que respeito e admiro o passado de Vital Moreira em defesa da laicidade do Estado, de que destaco particularmente as suas intervenções sobre a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa. Justamente por respeitar e admirar essas posições, estranho que Vital não se aperceba de que o Tratado Constitucional da União Europeia é, efectivamente, um «monumento antilaicista e católico apostólico romano». Aliás, quem o corrobora é a COMECE (Comissão dos Episcopados das Comunidades Europeias) que logo que a Convenção terminou os seus trabalhos declarou que «[os bispos europeus] foram unânimes em acolher favoravelmente este projecto [de Tratado]» e que «saudaram o lugar que foi reservado [às questões religiosas] neste projecto, nomeadamente o artigo I-51» (actualmente, o artigo I-52). Recorde-se que a adopção deste artigo fora pedida pela COMECE (documento de 21/5/2002) e pelo próprio Karol Wojtyla (exortação apostólica «Ecclesia in Europa», 28/6/2003, parágrafo 114). A «referência a Deus» no Preâmbulo, se explícita, teria sido a cereja no cimo do bolo, mas convenhamos que serviu como cortina de fumo...
Finalmente, garanto a Vital Moreira que não sou Papa para decidir quem é da esquerda republicana e laica ou não, mas acrescento que se não gosta da companhia clerical em que se encontra (e que naturalmente lhe desagrada), pode tirar as devidas conclusões. Será que a unidade europeia vale bem uma missa?

segunda-feira, 28 de março de 2005

Policarpo insiste

Assim resume a Agência Ecclesia a homilia do Cardeal Patriarca. É a própria agência noticiosa católica que resume uma homilia religiosa a um pronunciamento político...

Vital e Policarpo defendem o Tratado

No Causa Nossa, Vital Moreira parece não ter compreendido as razões pelas quais José Policarpo defende o Tratado Constitucional da União Europeia. Efectivamente, a posição de Policarpo coincide com a da Comissão dos Episcopados das Comunidades Europeias (COMECE), que ainda há poucos dias publicou um texto longo explicando as razões pelas quais o Tratado é positivo para a ICAR. Principalmente, a COMECE agradece que o Tratado reconheça constitucionalmente às igrejas um papel consultivo nas políticas da UE (o que em Portugal violaria directamente a separação do Estado e das igrejas) através do artigo I-52, o mesmo artigo que garante que as relações de nível nacional entre as igrejas e o Estado não serão afectadas pela legislação europeia (assim precavendo qualquer tentação laicizadora vinda do topo da UE).
Existem ainda outras razões para os sectores católicos se regozijarem com este Tratado, como o artigo II-70 (que reconhece um direito de objecção de consciência sem limitações) e a ausência de distinção na Carta dos Direitos Fundamentais entre «vida humana» e «pessoa humana». Não há, portanto, qualquer razão para que a ICAR não apoie o Tratado, salvo a questão, no fundo despicienda, da referência preambular. Mas um preâmbulo nunca tem consequências jurídicas...

quinta-feira, 24 de março de 2005

Mais um bispo no tabuleiro

Assim falou o bispo de Vila Real na sua mensagem pascal. Vê-se bem do que ele está a falar. Não é exclusivamente de religião. Nos próximos dias veremos muitas alusões deste género.

«Keep religion out of public life»

«I never thought of myself as a writer about religion until a religion came after me.
(...)
Nevertheless, when the attack came, I had to confront what was confronting me and to decide what I wanted to stand up for in the face of what so vociferously, repressively and violently stood against me.
Now, 16 years later, religion is coming after us all and, even though most of us probably feel, as I once did, that we have other, more important concerns, we are all going to have to confront the challenge.
(...)
The simple truth is that, wherever religions get into society's driving seat, tyranny results. The Inquisition results, or the Taliban.
And yet, religions continue to insist that they provide special access to ethical truths and consequently deserve special treatment and protection.
And they continue to emerge from the world of private life — where they belong, like so many other things that are acceptable when done in private between consenting adults but unacceptable in the town square — and to bid for power. The emergence of radical Islam needs no redescription here, but the resurgence of faith is a larger subject than that.
In today's United States, it's possible for almost anyone — women, gays, African-Americans, Jews — to run for, and be elected to, high office. But a professed atheist wouldn't stand a popcorn's chance in Hell.
(...)
In Europe, the bombing of a railway station in Madrid and the murder of the Dutch filmmaker Theo van Gogh are being seen as warnings that the secular principles that underlie any humanist democracy need to be defended and reinforced.
Even before these atrocities occurred, the French decision to ban religious attire such as Islamic headscarves had the support of the entire political spectrum.
(...)
if America and Britain allow religious faith to control and dominate public discourse, then the Western alliance will be placed under ever-increasing strain, and those other religionists, the ones against whom we're supposed to be fighting, will have great cause to celebrate
(Salman Rushdie)

quarta-feira, 23 de março de 2005

Position du MEL sur le projet de Traité Constitutionnel (1)

«- A propos de la laïcité:
Ce projet de constitution ne prend pas en compte les principes et les modalités de mise en pratique de la laïcité et même il en institue la négation.
Si la religion est mentionnée à trois reprises dans la Constitution (voir le préambule et les articles I-52 et II-70 ci-dessous), la laïcité ne l’est jamais.
Défendre la laïcité, c’est défendre avant tout le principe de la séparation des Eglises et de l’état. Ce principe repose sur la distinction claire: entre une sphère de droit public et une sphère de droit privé.
Or, l’art. I-52 dénie cette séparation et institutionnalise un «dialogue régulier» entre l’Union et les Eglises, qui se voient placées au cœur de la vie démocratique de l’Union, au même titre que les partenaires sociaux:
Article I-52: (…) reconnaissant leur identité et leur contribution spécifique, l’Union maintient un dialogue ouvert, transparent et régulier avec ces Eglises et organisations. Par cet article, le projet de Constitution crée: -d’une part une reconnaissance juridique aux Eglises, en contradiction totale avec la loi française de 1905,- d’autre part, l’organisation de l’intervention des Eglises, c’est-à-dire d’intérêts privés particuliers, dans la sphère de droit public, alors que celle-ci devrait garantir l’intérêt général.
Une éventuelle reconnaissance par l’Union du droit à l’avortement (que la Constitution ignore), par exemple, ou des droits civils des homosexuels, se heurterait ainsi aux Eglises, désormais partenaires officiels. Risques fondés, les interventions actuelles de l’Eglise catholique au Portugal (IVG) et en Espagne (suppression du catéchisme obligatoire à l’école), sans parler de la Pologne, sont révélatrices.»
(Excerto de um documento.)

terça-feira, 22 de março de 2005

Tory Blair strikes again

«Tony Blair today called on Britain's churches to play a "bigger role" in national life, but rejected the US style of politics in which people "beat their chests" about their faith.
In a speech to Faithworks, an organisation of largely evangelical Christians in London, the prime minister said churches made a "visible, tangible difference" for the better in society.
And, despite a recent cross-party understanding that religious beliefs on issues such as abortion should not become part of party politics, Mr Blair said he would like to see church leaders "play a bigger, not a lesser role in the future."
(...)»

segunda-feira, 21 de março de 2005

«Não é a sua cultura!»

O separatismo étnico continua a ser a ideologia dominante no Reino Unido, como uma notícia do «The Guardian» nos recorda.
A estória conta-se rapidamente: uma rapariga inglesa que voltou de férias com o cabelo produzido à africana foi proibida de frequentar a escola por o seu estilo de penteado quebrar o código de vestuário da escola. No entanto, duas alunas de origem africana que têm o mesmo estilo de penteado frequentam a mesma escola sem qualquer problema.
A justificação das autoridades da escola mostra tudo sobre a mentalidade britânica: «Não é a sua cultura! (...) Não permitimos cultura de rua na nossa escola. Se não permitíssemos alguma latitude em função da etnia e da cultura, isso seria discriminação». Por outras palavras: «Não se penteie como uma pretinha, minha menina! Esses penteados folclóricos são para as negras. Comporte-se como deve ser e aprenda qual é o seu lugar. Cada etnia no seu lugar e com os seus símbolos distintivos, assim é que deve ser».
Os pais da rapariga que rompeu com os estereótipos culturais queixam-se de discriminação racial. Talvez tenham razão. Não sei é quem será a vítima.

Debate amanhã, em Lisboa

22 de Março (amanhã), 21:00 horas, no
CENTRO ESCOLAR REPUBLICANO ALMIRANTE REIS
(Travessa do Terreirinho, nº 77, na Mouraria, em Lisboa; metro Martim Moniz)

SITUAÇÃO da LAICIDADE
em ESPANHA e PORTUGAL


JUAN BARON
Associação Europa Laica
(uma das associações espanholas mais activas na luta pelo reconhecimento e estabelecimento da Laicidade naquele país)

LUIS MATEUS e RICARDO ALVES
Associação República e Laicidade

A Espanha é, porventura, o país da Europa onde, nestes últimos tempos, a questão da Laicidade - em termos estritos de separação entre o Estado e a Igreja - tem vindo a ser mais trabalhada e onde, por esse motivo, têm vindo recentemente a ocorrer algumas transformações interessantes.

A Espanha (talvez a par com Portugal) é também um dos países europeus onde uma reacção organizada da Igreja Católica Romana aos processos de modernização da sociedade se tem vindo mais fortemente a sentir.

Até que ponto pode o processo espanhol ser, para nós, portugueses, militantes da causa da Laicidade, um bom exemplo?

sexta-feira, 18 de março de 2005

França: o «não» de esquerda desarmado

O Estado francês decidiu, através de critérios curiosos, financiar quatro dos partidos franceses favoráveis ao «sim» à Constituição Europeia e quatro dos favoráveis ao «não», mas incluindo apenas um partido engajado no «não» de esquerda (o PCF) e excluindo o MRC (Chevenement já protestou). Todos os eleitores receberão o Tratado pelo correio (não vejo isto a acontecer em Portugal!).
Entretanto, há pela primeira vez uma sondagem que indica que o «non» poderá derrotar o «oui» no dia 29 de Maio. O «non de gauche» inclui dirigentes socialistas importantes (como Laurent Fabius; cerca de 40% dos militantes socialistas manifestaram-se em referendo interno contra o Tratado), o Mouvement Républicain et Citoyen, o PCF, os trotsquistas (LCR, LO) e a maioria dos ecologistas. A campanha será dura.

Revista de imprensa (18/3/2005)

(1) Aborto, ciência e laicismo no Brasil
Hélio Schwartsman é um jornalista da Folha de São Paulo que escreve frequentemente em defesa da laicidade, do racionalismo e da ciência. Esta semana, polemiza com aqueles que atacaram um artigo seu que defendia a descriminalização do aborto, e fá-lo explicando didacticamente o que é a ciência, porque é superior à religião na abordagem de questões como a IVG ou a utilização de células-tronco embrionárias, e o porquê de defender a laicização do Estado.
É pena que nenhum dos nossos grandes jornais tenha alguém tão empenhado no bom combate.
(2) Muçulmana conduz oração perante crentes dos dois sexos
Segundo o Público, uma muçulmana residente nos EUA prepara-se para liderar uma oração perante crentes dos dois sexos, inventando assim uma nova tradição. Os integristas do Islão estão a arrancar os cabelos (e as barbas?) em fúria. Pode ser um sinal de renovação «por dentro» do Islão, mas infelizmente duvido que alguma muçulmana europeia siga este exemplo.
(3) Parque de estacionamento do Chiado pertence à ICAR
Ainda segundo o Público, o parque de estacionamento do Chiado (Lisboa) pertence à Fábrica da Igreja de Nossa Senhora do Loreto, que aliás contratou as obras com a Ordem Soberana Militar de Malta. Como se não bastasse, a Câmara Municipal de Lisboa não queria facultar o acesso aos documentos comprovativos...

quinta-feira, 17 de março de 2005

«Reason Embattled: Secularism in Peril»

«(...)
In January 2002, Supreme Court Associate Justice Antonin Scalia made a major speech so sweeping and extreme in its contempt for democracy, and so willfully oblivious to the Constitution’s grounding in human rather than divine authority, that it might well, in an era when American secularists were less intimidated by the forces of religion, have elicited calls for impeachment.
(...)
As evidence of the religious faith upon which the nation was supposedly founded, Scalia cited the inscription “In God We Trust” on coins; the phrase “one nation, under God” in the Pledge of Allegiance; and the “constant invocations of divine support in the speeches of our political leaders that often conclude, ‘God Bless America.’” Scalia failed, however, to mention the relatively recent and opportunistic origins of these supposedly sacred symbols and practices. It is fair to say that the first six presidents of the United States did not invoke the blessings of the deity as frequently in their entire public careers as President George W. Bush does each month. And somehow, the republic survived.
(...)
Religion is so much a part of the public square that a majority of Americans say they would refuse to vote for an atheist for president, even though they would consider voting for an African-American, a woman, a Jew, or a homosexual. Americans are probably not telling the truth on this issue to pollsters; it is difficult to credit the assertion that a majority of citizens, in the privacy of the voting booth, would cast their ballots for a gay or a black presidential candidate, and I also have my doubts that a Jew or a woman could be elected.
(...)
For secularists to mount an effective challenge to the basic premises of religious correctness, they must first stop pussyfooting around the issue of the harm that religion is capable of doing.
(...)
Nor is it enough for secularists to speak up in defense of the godless constitution; they must also defend the Enlightenment values that produced the legal structure crafted by the framers. Important as separation of church and state is to American secularists, their case must be made on a broader plane that includes the defense of rational thought itself.
(...)»
(Susan Jacoby)

quarta-feira, 16 de março de 2005

Cabo Verde na UE?

E porque não? A sugestão partira de Mário Soares, foi agora secundada por Adriano Moreira, e aparentemente tem a simpatia do governo cabo-verdiano. Aos que invoquem argumentos geográficos, recordo que Malta está tão próxima de África como do continente europeu, e que o Chipre fica mais próximo do continente asiático (Turquia, Síria, Líbano e mesmo Israel) do que das ilhas gregas...
Pessoalmente, sou a favor.

O referendo ainda duvidoso

Fernando Rosas escreve hoje no Público sobre a intenção, anunciada por Sócrates, de efectuar um referendo sobre o projecto de Tratado Constitucional para a Europa em simultâneo com as eleições autárquicas.
À semelhança de Rosas, preocupa-me a possível simultaneidade de referendos e eleições. E concordo com duas das três razões avançadas. Por um lado, um referendo em simultâneo com eleições poderá secundarizar a discussão sobre a «Constituição Europeia», impossibilitando o debate esclarecido que é imprescindível. Por outro lado, a alteração da Constituição da República no sentido de permitir a simultaneidade de eleições e referendos abre a porta a todo o tipo de manipulações futuras. (É impossível não recordar a estratégia de muitos grupos da «direita cristã» estado-unidense, que contribuíram para a reeleição de Bush tirando o eleitorado conservador de casa com referendos que sugeriam emendas constitucionais sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo...) A terceira razão avançada por Rosas é a prioridade que ele e o BE entendem que deve ser conferida a um referendo sobre a despenalização da IVG. Nessa questão, penso que nem é indispensável que haja referendo .
A terminar, e já que se fala em alterar a Constituição da nossa República pela enésima vez, lamento que se tenha esquecido a possibilidade de a alterar de forma a permitir referendos explicitamente sobre tratados internacionais. Sem essa alteração, temo que nos retirem, mais uma vez, a prerrogativa de nos pronunciarmos sobre o nosso destino colectivo na Europa.

terça-feira, 15 de março de 2005

«O Código Da Vinci» incomoda...

... e incomoda tanto que a ICAR se prepara para dar uma resposta oficial através do arcebispo de Génova (The Guardian). Preocupa o arcebispo que alguém possa tomar por verdadeiro parte do que é dito nesta obra de ficção, e no entanto o arcebispo deve crer na verdade literal da maior parte dos mitos católicos, e tem por profissão espalhar crenças falsas sobre a existência de JC, a virgindade de Maria, etc.

A Espanha que faz falta

Mitos comuns sobre a religião nos EUA

(1) Sempre houve tolerância religiosa nos EUA
No século 17, os Puritanos do Massachusetts enforcaram dois quakers que se recusavam a deixar a província. No mesmo século, os católicos estavam proibidos de praticar a sua fé em todas as colónias com a excepção de Rhode Island e da Pensilvânia, e o Massachusetts ameaçava executar todos os padres (católicos) que passassem na colónia mais de uma vez. Apesar disto, não falta quem acredite que os EUA, mesmo antes da independência, eram um paraíso de tolerância religiosa.
(2) A separação destinava-se a proteger as igrejas do Estado
A separação entre igreja e Estado conferida pela célebre «primeira emenda» não se destinava a proteger as igrejas do Estado (conforme afirmam alguns americanófilos menos informados), mas sim a proteger as igrejas umas das outras. O risco, à data da independência, era a predominância que uma igreja pudesse vir a ter sobre as outras.
(3) Os estado-unidenses sempre foram muito religiosos
A religiosidade da população dos EUA é um fenómeno posterior à independência, e acentuou-se no século 20. Na época da independência, 17% dos habitantes dos EUA pertenciam a uma igreja. Por volta de 1950, esse número tinha subido para 60%.

segunda-feira, 14 de março de 2005

Gajas e gajos

Reconheço sem dificuldade que é uma injustiça as mulheres terem maiores dificuldades no mercado de trabalho. Aceito também que o facto de as mulheres terem filhos é penalizado profissionalmente, às claras ou às escondidas, ao contrário de ser valorizado como deveria ser, nem que fosse por uma mera questão de fomento da natalidade.
No entanto, confesso que não compreendo quem faz da paridade um critério de avaliação do elenco governamental, ou da representatividade dos cargos políticos em geral. É evidente que duas mulheres em dezassete ministros (11,7%), e três em trinta e cinco secretários de estado (8,6%) é uma (sub-)representação feminina algo abaixo da média de mulheres portuguesas nos quadros superiores dos institutos públicos, das universidades e das empresas. Mas, que diferença faz? Sobretudo, que diferença faz para os problemas específicos das mulheres, como a violência doméstica?

sexta-feira, 11 de março de 2005

O referendo duvidoso

José Socrates garante que, na legislatura que agora se inicia, haverá dois referendos: um sobre a despenalização da IVG e outro sobre o projecto de Tratado Constitucional para a Europa. Não acredito que o segundo se realize. A União Europeia constitui, para o regime democrático, um tabu comparável ao da «questão das colónias» para o Estado Novo.
O Tratado de Amesterdão foi aprovado por um Parlamento em que todos os deputados representavam partidos que se tinham comprometido com um referendo sobre «matéria europeia». À época, Sampaio tinha sido eleito também com esse compromisso. Bastou a rejeição, pelo Tribunal Constitucional, da pergunta proposta pelo Parlamento para o (aparente) consenso referendário ser esquecido.
A União Europeia condiciona a vida pública portuguesa mais do que qualquer maioria parlamentar. Mas os complexos na relação com uma Europa a que se atribui algum «crescimento económico» e uma «maioridade democrática» ilusória levam a que não se discuta essa relação. E assim, a República portuguesa é hoje de soberania limitada, sem discussão, e quem discorda é «mau patriota» por não ser «europeísta».

Hobsbawm e o vigésimo aniversário da Perestroika

«(...)
Even more questionable is the wider - almost quasi-Hegelian - sense of Fukuyama's phrase. It implies that history has an end, namely a world capitalist economy developing without limits, married to societies ruled by liberal-democratic institutions. There is no historic justification for teleology, whether non-Marxist or Marxist, and certainly none for believing in unilinear and uniform worldwide development.
Both evolutionary science and the experiences of the 20th century have taught us that evolution has no direction that allows us concrete predictions about its future social, cultural and political consequences.
The belief that the US or the European Union, in their various forms, have achieved a mode of government which, however desirable, is destined to conquer the world, and is not subject to historic transformation and impermanence, is the last of the utopian projects so characteristic of the last century. What the 21st needs is both social hope and historical realism.»

quinta-feira, 10 de março de 2005

Portugal, paraíso neoliberal

Segundo o Diário Económico, Portugal é o país da OCDE onde os contribuintes suportam uma carga fiscal proporcionalmente menor. A título de exemplo: a soma da taxa de IRS com os descontos para a Segurança Social, no caso de um solteiro com um salário equivalente ao rendimento médio de um trabalhador do sector transformador, resulta em 16,6% do rendimento, enquanto a média da OCDE é de 25%.

Esquizofrenia?

Em Portugal, no ano de 2005, quando a secção local da ICAR tem os seus direitos garantidos por uma Concordata, existe «religião e moral» na escola pública paga pelo contribuinte ateu e persistem crucifixos em escolas demais, quando abundam os meios de comunicação social católicos e as missas são transmitidas na televisão pública, quando o Governo da República menciona «aparições» religiosas num Decreto-Lei que fez um feriado nacional pela morte de uma freira, quando, enfim, a ICAR celebrou uma vitória no projecto de Tratado Constitucional para a Europa, um bispo chamado António Marcelino não hesita em lamentar-se de que «sopra um vento destruidor por essa Europa fora», o «laicismo ateu». Trata-se, no mínimo, de uma percepção algo distorcida da realidade...

quarta-feira, 9 de março de 2005

«Jihad in the Netherlands»

«In 2003, at a conference held in Sweden, I was introduced to a member of the Netherlands parliament. She was a woman of hypnotizing beauty named Ayaan Hirsi Ali, who had become a star of the Dutch Liberal Party. Originally from Somalia, she had fled her country of origin in order to escape from genital mutilation and the real possibility that her family might sell her to a strange man twice her age. Becoming fluent in English and Dutch and radiating charisma, she had soon attracted attention by criticizing the refusal of the Muslim establishment in her adopted country to adapt itself to secular democracy.
(...)
Today, she is living under police protection. In early November 2004, her friend and colleague Theo van Gogh was stabbed to death and then mutilated on a public street, evidently by a Muslim fanatic. Mr. Van Gogh, a descendant of the celebrated painter, was a filmmaker who had made a documentary about the maltreatment by Muslim authorities of Muslim women in Holland. The film had featured Ayaan Hirsi Ali, and a letter “addressed” to her was pinned, by a heavy knife, to the chest of the ritually slaughtered Van Gogh.
(...)
Both the open letter and the note are of extreme interest. The note speaks of Tawheed, which is the current Islamic extremist abuse of the Qur’anic word for “unity” or oneness against all heretics from Shi’a to Christian. This Salafist/bin Ladenist tendency also employs the term takfir, an approximate synonym for excommunication (and therefore slaughter) of infidels and heretics. The faction grouped behind this Qur’anic concept is the most noxious and cynical of the lot: its members allow themselves to consume pork and alcohol and consort with prostitutes if they are on a mission to deceive and destroy the infidel.
(...)
The open letter is full of lurid and gloating accounts, lifted from the Qur’an, of the tortures that await apostates like Ayaan Hirsi Ali in hell. It refers to her throughout as “Miss Hirshi Ali,” a mistake that has baffled some observers but which I think is obviously intended to make her sound more Jewish. The letter is obsessed with the Dutch Jews who are among the leadership of the Liberal Party and makes repeated references to anti-Gentile and racist remarks in Jewish scripture.
(...)
One cannot emphasize enough that the victims here are not just secular artists like Theo van Gogh but people of Muslim origin who do not accept homicidal fundamentalism. This is the warning that many liberals have been overlooking or denying ever since the fatwah against Salman Rushdie in 1989.
(...)
You cannot fight Islamic terror with Christianity, whether of the insipid or the crusader kind. The original commandment actually says “Thou shalt do no murder,” thus making it almost the only one of the ten that makes any sense. But we do not prepare for murder when we resolve to defend ourselves and when we take the side of people like Ms. Hirsi Ali and Ms. Bousakla in the Islamic civil war that seeks to poison our society and enslave theirs
(Christopher Hitchens)

Laicidade

«O Estado nada tem com o que cada um pensa acerca da religião. O Estado não pode ofender a liberdade de cada qual, violentando-o a pensar desta ou daquela maneira em matéria religiosa
(Afonso Costa, in «A Igreja e a Questão Social», 1895)
Nada melhor do que começar com uma citação de Afonso Costa.