sábado, 27 de setembro de 2025

Uma bolha imobiliária em Lisboa

De acordo com um artigo da Vanity Fair, em 1989 um metro quadrado em Tóquio valia mais de 350 vezes um metro quadrado em Manhattan. A comparação não estava bem feita, pois recorria aos preços mais extremos em Tóquio, que eram contrastados com os preços médios de Manhattan; mas uma estimativa adequada centrada dos valores médios apenas desceria o rácio para valores próximos da centena. Hoje, um metro quadrado em Manhattan vale entre 3 a 6 vezes mais que um metro quadrado em Tóquio. Ou seja, é razoável estimar que quem vendesse uma área de 50 metros quadrados em Tóquio em 1989 pudesse hoje comprar cerca de 1000 metros quadrados na mesma cidade, pelo menos usando Manhattan como intermédio, quem sabe quanto mais se procurássemos melhor. 
No entanto, aqueles preços significam que, pelo contrário, muita gente estava a comprar terrenos em Tóquio na altura. Apesar de todos os indicadores de que se tratava de uma bolha imobiliária, apesar das projecções demográficas, apesar dos preços sem precedente histórico, havia compradores, que viram a sua riqueza diminuir dezenas de vezes nas décadas seguintes. Mas na altura, a percepção generalizada era a de que os preços iriam subir para sempre.

Nós vimos rebentar uma bolha imobiliária que deu origem à crise do subprime e à grande recessão de 2008. Mas não parecemos ter aprendido nada. Hoje vemos uma bolha imobiliária ainda maior em todo o mundo ocidental, que está muito perto de rebentar. Neste texto argumento que a situação é ainda pior em Portugal, e ainda pior em Lisboa, embora em ambos os casos possa demorar mais tempo até ao colapso da bolha.

A este respeito, vale a pena ver o rácio entre os preços das casas e os rendimentos salariais anuais nos EUA:


É curiosa a forma como se destaca a bolha imobiliária que deu origem à grande recessão. A anomalia histórica era de tal forma desviante dos valores que se verificavam desde a revolução industrial, que no rescaldo da crise a generalidade dos economistas e outros agentes atentos ao mercado só se perguntavam: "como é que nós não vimos os sinais, mais do que óbvios, de que tratava de uma bolha imobiliária?"
Na sequência da crise de 2008, teve lugar uma reforma legislativa no sentido de reforçar a regulação financeira, mas essa foi paulatinamente desmantelada por Trump, logo no seu primeiro mandato. O resultado não é diferente daquele que seria de esperar. Mas nem só nos EUA vemos esta situação do mercado evoluir no sentido de acumular mais desequilíbrios do que aqueles que já deveriam ser evidentes em 2006. Veja-se o rácio entre os preços das casas e os rendimentos (totais) no Reino Unido:



O mundo anglo-saxónico não parece ser excepcional no panorama da OCDE. Desde 2015, o rácio entre o preço e o rendimento subiu consideravelmente em praticamente todos os países da OCDE. E talvez o leitor fique surpreendido com o campeão da OCDE nesta subida:



Portugal já partia em 2015 com um valor bastante elevado (8,0), pelo que hoje tem mesmo um dos valores mais elevados da OCDE (note-se que os valores acima apresentados para os EUA são relativos ao salário e não ao rendimento total, pelo que em termos comparativos Portugal terá um rácio superior ao americano). Isto não seria de esperar por uma razão: Portugal também dos países da OCDE com mais casas per capita. Ao ter mais casas per capita, seria de esperar que Portugal fosse dos países com casas mais acessíveis, não o oposto.



Tudo isto sugere que, a existir uma bolha imobiliária nos países ocidentais, ela terá sido particularmente exacerbada em Portugal. 

Mas como identificar uma bolha imobiliária?

Em última análise, muitas pessoas têm defendido que a subida acentuada de preços que se tem verificado resulta apenas da relação entre a oferta e a procura. Diz-se que enquanto a oferta tem sofrido com uma quantidade de casas construídas muito mais baixa do que aquilo que ocorria nas décadas anteriores; a procura pelo contrário tem aumentado devido à internacionalização do mercado imobiliário, que tornou os imóveis portugueses apelativos aos olhos de investidores internacionais com maiores rendimentos; bem como ao turismo e ao aumento da população por via da emigração. Poderia acontecer que esta subida acentuada de preços não resultasse de uma bolha imobiliária, mas sim do aumento dos "determinantes fundamentais" do preço. 

No entanto, além de tudo o que a informação anterior sugere, é possível dizer com confiança que, pelo menos no concelho de Lisboa, estamos perante uma bolha imobiliária. A forma de distinguir uma subida acentuada de preços causada por uma bolha imobiliária de uma causada por uma variação dos "determinantes fundamentais" do preço é olhar para o número de casas vazias. Se os "determinantes fundamentais" causarem uma subida de preço por via, quer de um aumento da procura, quer de uma diminuição da oferta, será de esperar uma redução do número de casas desocupadas nesse mercado. É fácil de entender o porquê: tudo o resto igual, os incentivos para manter uma casa desocupada diminuem quando os determinantes fundamentais conduzem a um aumento do preço. Nas bolhas imobiliárias, pelo contrário, verificamos um aumento do número de casas vazias. 

E o que é que vemos em Lisboa? O concelho conta com aproximadamente 320 mil fogos, dos quais cerca de 242 mil estão habitados a título permanente. Das restantes, 48 mil estão vagas. São 48 mil casas habitáveis, mas que não estão a ser habitadas nem de forma temporária, nem de forma permanente. Isto corresponde a 15% do total das casas no concelho. 
Qual é o número de casas vagas que é normal numa grande cidade europeia? Está muito distante deste valor: em Munique, Frankfurt, Freiburg, Münster, Darmstadt o valor ronda os 0,2%, mas este valor sobe para 3% em Amesterdão ou Dublin, 4% em Londres, 6% em Milão, 8% em Roma ou Viena e até 10% em Atenas, sendo que Paris é a única cidade europeia importante com um valor semelhante a Lisboa, os mesmos 15%. 
No entanto, poder-se-á argumentar que a referência não deveriam ser outras cidades, mas sim a própria cidade de Lisboa em períodos anteriores. Afinal de contas, poderiam existir razões estruturais para Lisboa ter mais casas vazias que cidades europeias comparáveis (por exemplo, uma justiça mais morosa e disfuncional no que diz respeito à partilha de heranças). Acontece que mesmo em comparação com a média histórica (que em si já está distorcida em alta porque um dos quatro censos realizados teve lugar em 2011, mesmo antes do rebentar de uma bolha imobiliária), Lisboa tem um excesso de casas desocupadas (acima de uma estimativa inflacionada da média histórica), na casa dos cinco mil fogos. 

Será por estas e outras razões que um estudo do Banco de Portugal afirma que os sinais de sobrevalorização do mercado imobiliário residencial em Portugal já duram desde o início de 2017. Os preços subiram quase 50% desde então. 

Há, no entanto, mais questões a considerar. Em primeiro lugar, é verdade que nos últimos anos se verificou uma diminuição considerável do volume de construção imobiliária, e é verdade que isso terá contribuído para o inflar desta bolha imobiliária. Mas importa desfazer um equívoco: a diminuição da construção não corresponde a uma diminuição da oferta: desde de que a construção seja superior ao número (quase irrisório) de casas que deixam de existir devido à sua degradação física, o número total de casas continua a aumentar. O que a redução do volume de construção chegou a provocar foi um abrandamento desse aumento da oferta, não uma diminuição. Seja como for, o volume de construção recuperou significativamente nos últimos dois, três anos.  

Já em relação à procura, é verdade que se verificou um aumento muito substancial nos últimos anos, mas tratou-se de um aumento fugaz, entretanto revertido. Embora os dados da Pordata quanto às comunidades imigrantes em Portugal sejam substancialmente diferentes dos relativos às contribuições para a segurança social (o segundo quase cinco vezes maior que o primeiro), ambos mostram qualitativamente a mesma evolução:


O número de imigrantes deixou de aumentar, e está a diminuir. Note-se que isto não corresponde a uma diminuição da entrada de imigrantes, e sim a uma redução do total de imigrantes. Por outro lado, e creio que isto não surpreenderá nenhum leitor, a população natural está a diminuir e continuará a diminuir de ano para ano. Essa redução é muito substancial. 
Pela minha parte, usei as pirâmides etárias do INE e as taxas de sobrevivência do INE por faixa etária, bem como as taxas de fecundidade do INE por taxa etária para simular a evolução demográfica do país. Estes foram os meus resultados para a população nos próximos anos:



A população nacional diminui 11% nos próximos 15 anos, mas essa diminuição não abranda. Se a redução da população imigrante se mantiver, esta diminuição será ainda mais acentuada. Que impacto é que isto terá na procura de habitação? Não é certo. Depende da "miopia" dos agentes de mercado. Se os agentes de mercado fossem perfeitamente racionais, o preço actual já entraria em linha de conta com esta previsível diminuição da procura. Pelo contrário, se a procura por habitação for proporcional às necessidades de habitação imediatas, as quais são grosso modo proporcionais à população, seria de esperar uma redução bastante substancial da procura. O impacto nos preços desta redução substancial da procura dependerá da elasticidade do preço da procura, um parâmetro que tem sido estimado empiricamente. O Banco de Portugal estima que o valor se encontre entre os 0 e os 0,1 para o curto prazo, e entre os 0,2 e os 0,3 para o longo prazo. Isto significa que, neste prazo de 15 anos (ou seja, usando 0,25 para a elasticidade), seria de esperar uma redução nos preços de 37%, sem sequer ter em conta a nova construção ou os 50% em excesso já acima mencionados. 
E importa reforçar que a redução da procura não terá cessado nesse prazo de 15 anos.

Uma questão à qual importa responder é "porquê"? Se é tão evidente que, já em 2017 a habitação em Lisboa era um activo sobrevalorizado; se já existia um excesso de casas em Portugal e de casas desabitadas em Lisboa, o qual só foi aumentando desde então; se a evolução demográfica no nosso país e no ocidente em geral não é nenhum segredo; se o número de habitações não parou de aumentar e a construção até acelerou nos últimos dois anos, como é que o preço das casas continuou a aumentar desta forma exorbitante, tornando Portugal o campeão da OCDE no aumento da inacessibilidade da habitação?

A bolha imobiliária que deu origem à crise do subprime pode ajudar a dar a resposta. Esta crise teve lugar devido a um problema de agência: os incentivos de quem gere os activos não estão perfeitamente alinhados com os incentivos dos donos desses activos. Nesse caso, esse desalinhamento de incentivos traduziu-se numa exposição excessiva ao risco. 
Neste caso, quando olhamos para um fundo imobiliário, podemos pensar em qual o papel que teria caso servisse os interesses dos donos dos activos: o de comprar activos imobiliários quando estivessem subvalorizados (face aos determinantes fundamentais do preço), e o de os vender quando estivessem sobrevalorizados (face aos determinantes fundamentais do preço). Se os fundos imobiliários funcionassem desta forma, além de maximizarem os lucros dos donos dos fundos, teriam um papel social desejável (principalmente se os imóveis estivessem a ser rendibilizados entre transacções), actuando como força estabilizadora dos preços: as compras evitariam quedas excessivas, as vendas evitariam subidas muito acentuadas. Numa situação deste tipo, com as casas em Lisboa com preços históricos, seria de esperar que os fundos imobiliários já se tivessem desfeito dos seus portfólios quase por completo.   
No entanto, é importante olhar agora para os incentivos de quem gere o fundo imobiliário, não no de quem detém os activos. Se, no que concerne aos determinantes fundamentais do preço o activo está sobrevalorizado, o valor esperado da diminuição do preço até pode ser negativo, mas isso não é incompatível com uma probabilidade de 99% de subir 0,5% e uma probabilidade de 1% de descer 90%. Ou seja, é possível estar num contexto onde o activo está sobrevalorizado e mesmo assim a evolução mais provável do preço continue a ser uma subida. Aqui interessaria ao dono do activo vendê-lo, mas nesse mesmo contexto o gestor beneficia mais a sua carreira ao comprar activos que, com toda a probabilidade irão valorizar. Caso, azar dos azares, se verifique que a compra foi má ideia, os prejuízos pessoais não são proporcionais os prejuízos sofridos pelo dono do activo. A este desalinhamento de incentivos (que se torna mais relevante tendo em conta a inércia que existe nas variações dos preços) devem somar-se uma série de questões de cariz social e comportamental: como diz o ditado "ninguém é despedido por comprar IBM": o gestor de activos que abdicou de comprar uma casa sobrevalorizada quando todos os seus colegas estão a comprar passa por especialmente incompetente nos tais 99% de hipóteses da casa valorizar; mas o gestor de activos que comprou essa mesma casa não passa por especialmente incompetente nos tais 1% de hipóteses da casa perder 90% do seu valor, já que todos os seus colegas fizeram precisamente a mesma coisa. 
Assim, os fundos imobiliários, em vez de comprarem activos imobiliários subvalorizados e venderem activos imobiliários sobrevalorizados, tendo um papel estabilizador no mercado; compram activos quando existe uma tendência de aumento, e vendem activos quando existe uma tendência de descida. Isto tem, pelo contrário, um papel desestabilizador no mercado imobiliário, que além de ser socialmente perverso, ajuda a explicar a ocorrência e amplitude das bolhas imobiliárias. 

Infelizmente, a moldura legal, em vez de servir o interesse público - por exemplo, evitando isenções relativas a estes fundos imobiliários que aumentam a complexidade do sistema, distorcem os mercados, diminuem a disponibilidade de capital produtivo, reduzem as receitas públicas e inflacionam os preços das casas -, é criada com o propósito de servir actores políticos que fazem uso destes instrumentos para enriquecimento pessoal. 
A este respeito, vale a pena citar a notícia: «o ex-ministro da Economia Pedro Siza Vieira fundou uma sociedade imobiliária na véspera de tomar posse do cargo governativo. No seu curto mandato assinou a lei de 2019 que “aprova o regime das sociedades de investimento e gestão imobiliária”, benefícios fiscais incluídos.» É apenas um exemplo entre vários. 

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