sábado, 27 de setembro de 2025

Uma bolha imobiliária em Lisboa

De acordo com um artigo da Vanity Fair, em 1989 um metro quadrado em Tóquio valia mais de 350 vezes um metro quadrado em Manhattan. A comparação não estava bem feita, pois recorria aos preços mais extremos em Tóquio, que eram contrastados com os preços médios de Manhattan; mas uma estimativa adequada centrada dos valores médios apenas desceria o rácio para valores próximos da centena. Hoje, um metro quadrado em Manhattan vale entre 3 a 6 vezes mais que um metro quadrado em Tóquio. Ou seja, é razoável estimar que quem vendesse uma área de 50 metros quadrados em Tóquio em 1989 pudesse hoje comprar cerca de 1000 metros quadrados na mesma cidade, pelo menos usando Manhattan como intermédio, quem sabe quanto mais se procurássemos melhor. 
No entanto, aqueles preços significam que, pelo contrário, muita gente estava a comprar terrenos em Tóquio na altura. Apesar de todos os indicadores de que se tratava de uma bolha imobiliária, apesar das projecções demográficas, apesar dos preços sem precedente histórico, havia compradores, que viram a sua riqueza diminuir dezenas de vezes nas décadas seguintes. Mas na altura, a percepção generalizada era a de que os preços iriam subir para sempre.

Nós vimos rebentar uma bolha imobiliária que deu origem à crise do subprime e à grande recessão de 2008. Mas não parecemos ter aprendido nada. Hoje vemos uma bolha imobiliária ainda maior em todo o mundo ocidental, que está muito perto de rebentar. Neste texto argumento que a situação é ainda pior em Portugal, e ainda pior em Lisboa, embora em ambos os casos possa demorar mais tempo até ao colapso da bolha.

A este respeito, vale a pena ver o rácio entre os preços das casas e os rendimentos salariais anuais nos EUA:


É curiosa a forma como se destaca a bolha imobiliária que deu origem à grande recessão. A anomalia histórica era de tal forma desviante dos valores que se verificavam desde a revolução industrial, que no rescaldo da crise a generalidade dos economistas e outros agentes atentos ao mercado só se perguntavam: "como é que nós não vimos os sinais, mais do que óbvios, de que tratava de uma bolha imobiliária?"
Na sequência da crise de 2008, teve lugar uma reforma legislativa no sentido de reforçar a regulação financeira, mas essa foi paulatinamente desmantelada por Trump, logo no seu primeiro mandato. O resultado não é diferente daquele que seria de esperar. Mas nem só nos EUA vemos esta situação do mercado evoluir no sentido de acumular mais desequilíbrios do que aqueles que já deveriam ser evidentes em 2006. Veja-se o rácio entre os preços das casas e os rendimentos (totais) no Reino Unido:



O mundo anglo-saxónico não parece ser excepcional no panorama da OCDE. Desde 2015, o rácio entre o preço e o rendimento subiu consideravelmente em praticamente todos os países da OCDE. E talvez o leitor fique surpreendido com o campeão da OCDE nesta subida:



Portugal já partia em 2015 com um valor bastante elevado (8,0), pelo que hoje tem mesmo um dos valores mais elevados da OCDE (note-se que os valores acima apresentados para os EUA são relativos ao salário e não ao rendimento total, pelo que em termos comparativos Portugal terá um rácio superior ao americano). Isto não seria de esperar por uma razão: Portugal também é dos países da OCDE com mais casas per capita. Ao ter mais casas per capita, seria de esperar que Portugal fosse dos países com casas mais acessíveis, não o oposto.



Tudo isto sugere que, a existir uma bolha imobiliária nos países ocidentais, ela terá sido particularmente exacerbada em Portugal. 

Mas como identificar uma bolha imobiliária?

Em última análise, muitas pessoas têm defendido que a subida acentuada de preços que se tem verificado resulta apenas da relação entre a oferta e a procura. Diz-se que enquanto a oferta tem sofrido com uma quantidade de casas construídas muito mais baixa do que aquilo que ocorria nas décadas anteriores; a procura pelo contrário tem aumentado devido à internacionalização do mercado imobiliário, que tornou os imóveis portugueses apelativos aos olhos de investidores internacionais com maiores rendimentos; bem como ao turismo e ao aumento da população por via da emigração. Poderia acontecer que esta subida acentuada de preços não resultasse de uma bolha imobiliária, mas sim do aumento dos "determinantes fundamentais" do preço. 

No entanto, além de tudo o que a informação anterior sugere, é possível dizer com confiança que, pelo menos no concelho de Lisboa, estamos perante uma bolha imobiliária. A forma de distinguir uma subida acentuada de preços causada por uma bolha imobiliária de uma causada por uma variação dos "determinantes fundamentais" do preço é olhar para o número de casas vazias. Se os "determinantes fundamentais" causarem uma subida de preço por via, quer de um aumento da procura, quer de uma diminuição da oferta, será de esperar uma redução do número de casas desocupadas nesse mercado. É fácil de entender o porquê: tudo o resto igual, os incentivos para manter uma casa desocupada diminuem quando os determinantes fundamentais conduzem a um aumento do preço. Nas bolhas imobiliárias, pelo contrário, verificamos um aumento do número de casas vazias. 

E o que é que vemos em Lisboa? O concelho conta com aproximadamente 320 mil fogos, dos quais cerca de 242 mil estão habitados a título permanente. Das restantes, 48 mil estão vagas. São 48 mil casas habitáveis, mas que não estão a ser habitadas nem de forma temporária, nem de forma permanente. Isto corresponde a 15% do total das casas no concelho. 
Qual é o número de casas vagas que é normal numa grande cidade europeia? Está muito distante deste valor: em Munique, Frankfurt, Freiburg, Münster, Darmstadt o valor ronda os 0,2%, mas este valor sobe para 3% em Amesterdão ou Dublin, 4% em Londres, 6% em Milão, 8% em Roma ou Viena e até 10% em Atenas, sendo que Paris é a única cidade europeia importante com um valor semelhante a Lisboa, os mesmos 15%. 
No entanto, poder-se-á argumentar que a referência não deveriam ser outras cidades, mas sim a própria cidade de Lisboa em períodos anteriores. Afinal de contas, poderiam existir razões estruturais para Lisboa ter mais casas vazias que cidades europeias comparáveis (por exemplo, uma justiça mais morosa e disfuncional no que diz respeito à partilha de heranças). Acontece que mesmo em comparação com a média histórica (que em si já está distorcida em alta porque um dos quatro censos realizados teve lugar em 2011, mesmo antes do rebentar de uma bolha imobiliária), Lisboa tem um excesso de casas desocupadas (acima de uma estimativa inflacionada da média histórica), na casa dos cinco mil fogos. 

Será por estas e outras razões que um estudo do Banco de Portugal afirma que os sinais de sobrevalorização do mercado imobiliário residencial em Portugal já duram desde o início de 2017. Os preços subiram mais de 50% desde então. 

Há, no entanto, mais questões a considerar. Em primeiro lugar, é verdade que nos últimos anos se verificou uma diminuição considerável do volume de construção imobiliária, e é verdade que isso terá contribuído para o inflar desta bolha imobiliária. Mas importa desfazer um equívoco: a diminuição da construção não corresponde a uma diminuição da oferta: desde de que a construção seja superior ao número (quase irrisório) de casas que deixam de existir devido à sua degradação física, o número total de casas continua a aumentar. O que a redução do volume de construção chegou a provocar foi um abrandamento desse aumento da oferta, não uma diminuição. Seja como for, o volume de construção recuperou ligeiramente nos últimos dois, três anos, e tem revelado uma tendência de aumento:

  

Já em relação à procura, é verdade que se verificou um aumento muito substancial nos últimos anos em parte motivado por um aumento da população, nomeadamente um aumento rápido e acentuado da comunidade imigrante, mas tratou-se de um aumento fugaz, entretanto revertido. Embora os dados da Pordata quanto às comunidades imigrantes em Portugal sejam substancialmente diferentes dos relativos às contribuições para a segurança social (o segundo quase três vezes maior que o primeiro), ambos mostram qualitativamente a mesma evolução (no caso das contribuições para a Segurança Social, uma redução de 18% em 2024):


O número de imigrantes deixou de aumentar, e está a diminuir. Note-se que isto não corresponde a uma diminuição da entrada de imigrantes, e sim a uma redução do total de imigrantes. Por outro lado, e creio que isto não surpreenderá nenhum leitor, existe um crescimento natural negativo da população e sem aumento da imigração esta continuará a diminuir de ano para ano. Essa redução é muito substancial. 
Pela minha parte, usei as pirâmides etárias do INE e as taxas de sobrevivência do INE por faixa etária, bem como as taxas de fecundidade do INE por faixa etária para simular a evolução demográfica do país. Estes foram os meus resultados para a população nos próximos anos:



A população nacional diminui 11% nos próximos 15 anos, mas essa diminuição não abranda. Se a redução da população imigrante se mantiver, esta diminuição será ainda mais acentuada. Que impacto é que isto terá na procura de habitação? Não é certo. Depende da "miopia" dos agentes de mercado. Se os agentes de mercado fossem perfeitamente racionais, o preço actual já entraria em linha de conta com esta previsível diminuição da procura. Pelo contrário, se a procura por habitação for proporcional às necessidades de habitação imediatas, as quais são grosso modo proporcionais à população, seria de esperar uma redução bastante substancial da procura. O impacto nos preços desta redução substancial da procura dependerá da elasticidade do preço da procura, um parâmetro que tem sido estimado empiricamente. O Banco de Portugal estima que o valor se encontre entre os 0 e os 0,1 para o curto prazo, e entre os 0,2 e os 0,3 para o longo prazo. Isto significa que, neste prazo de 15 anos (ou seja, usando 0,25 para a elasticidade), seria de esperar uma redução nos preços de 37%, sem sequer ter em conta a nova construção ou os 50% em excesso já acima mencionados. 
E importa reforçar que a redução da procura não terá cessado nesse prazo de 15 anos. Pelo contrário, sem uma mudança substancial do perfil de fertilidade, o ritmo de redução da população tende a acelerar estabilizando finalmente numa redução de 1% ao ano, ou seja, uma redução do preço real dos imóveis de 4% por ano, todos os anos (ou, assumindo uma inflação de 2%, uma redução do preço nominal na casa dos 2% por ano, todos os anos).

Uma questão à qual importa responder é "porquê"? Se é tão evidente que, já em 2017 a habitação em Lisboa era um activo sobrevalorizado; se já existia um excesso de casas em Portugal e de casas desabitadas em Lisboa, o qual só foi aumentando desde então; se a evolução demográfica no nosso país e no ocidente em geral não é nenhum segredo; se o número de habitações não parou de aumentar e a construção até acelerou nos últimos dois anos, como é que o preço das casas continuou a aumentar desta forma exorbitante, tornando Portugal o campeão da OCDE no aumento da inacessibilidade da habitação?

A bolha imobiliária que deu origem à crise do subprime pode ajudar a dar a resposta. Esta crise teve lugar devido a um problema de agência: os incentivos de quem gere os activos não estão perfeitamente alinhados com os incentivos dos donos desses activos. Nesse caso, esse desalinhamento de incentivos traduziu-se numa exposição excessiva ao risco. 
Assim, quando olhamos para um fundo imobiliário, podemos pensar em qual o papel que teria caso servisse os interesses dos donos dos activos: o de comprar activos imobiliários quando estivessem subvalorizados (face aos determinantes fundamentais do preço), e o de os vender quando estivessem sobrevalorizados (face aos determinantes fundamentais do preço). Se os fundos imobiliários funcionassem desta forma, além de maximizarem os lucros dos donos dos fundos, teriam um papel social desejável (principalmente se os imóveis estivessem a ser rendibilizados entre transacções), actuando como força estabilizadora dos preços: as compras evitariam quedas excessivas, as vendas evitariam subidas muito acentuadas. Numa situação deste tipo, com as casas em Lisboa com preços em máximos históricos, seria de esperar que os fundos imobiliários já se tivessem desfeito dos seus portfólios quase por completo (o que verificamos é o oposto: os fundos imobiliários nunca detiveram tantos imóveis: a carteira em habitação correspondia a 5,5% do volume anual de transacções de alojamentos familiares, mas cresceu 63% e corresponde agora a 9,5%).   
No entanto, é importante olhar agora para os incentivos de quem gere o fundo imobiliário, não no de quem detém os activos. Se, no que concerne aos determinantes fundamentais do preço o activo está sobrevalorizado, o valor esperado da diminuição do preço até pode ser negativo, mas isso não é incompatível com uma probabilidade de 99% de subir 0,5% e uma probabilidade de 1% de descer 90%. Ou seja, é possível estar num contexto onde o activo está sobrevalorizado e mesmo assim a evolução mais provável do preço continue a ser uma subida. Aqui interessaria ao dono do activo vendê-lo, mas nesse mesmo contexto o gestor beneficia mais a sua carreira ao comprar activos que, com toda a probabilidade irão valorizar. Caso, azar dos azares, se verifique que a compra foi má ideia, os prejuízos pessoais do gestor não são proporcionais os prejuízos sofridos pelo dono do activo. A este desalinhamento de incentivos (que se torna mais relevante tendo em conta a inércia que existe nas variações dos preços) devem somar-se uma série de questões de cariz social e comportamental. Como diz o ditado "ninguém é despedido por comprar IBM": o gestor de activos que abdicou de comprar uma casa sobrevalorizada quando todos os seus colegas estão a comprar passa por especialmente incompetente nos tais 99% de hipóteses da casa valorizar; mas o gestor de activos que comprou essa mesma casa não passa por especialmente incompetente nos tais 1% de hipóteses da casa perder 90% do seu valor, já que todos os seus colegas fizeram precisamente a mesma coisa. 
Assim, os fundos imobiliários, em vez de comprarem activos imobiliários subvalorizados e venderem activos imobiliários sobrevalorizados, tendo um papel estabilizador no mercado; compram activos quando existe uma tendência de aumento do preço, e vendem activos quando existe uma tendência de descida. Isto tem, pelo contrário, um papel desestabilizador no mercado imobiliário, que além de ser socialmente perverso, ajuda a explicar a ocorrência e amplitude das bolhas imobiliárias. 

Infelizmente, a moldura legal, em vez de servir o interesse público - por exemplo, evitando isenções relativas a estes fundos imobiliários que aumentam a complexidade do sistema, distorcem os mercados, diminuem a disponibilidade de capital produtivo, reduzem as receitas públicas e inflacionam os preços das casas -, é criada com o propósito de servir actores políticos que fazem uso destes instrumentos para enriquecimento pessoal. 
A este respeito, vale a pena citar a notícia: «o ex-ministro da Economia Pedro Siza Vieira fundou uma sociedade imobiliária na véspera de tomar posse do cargo governativo. No seu curto mandato assinou a lei de 2019 que “aprova o regime das sociedades de investimento e gestão imobiliária”, benefícios fiscais incluídos.» É apenas um exemplo entre vários. 

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O Tributo

Reproduzo um texto publicado na página da TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo para cuja redacção contribuí:


No passado dia 21 de Agosto foi publicada uma declaração conjunta sobre as linhas condutoras para um acordo comercial entre os EUA e a UE. Já tinham sido feitas declarações sobre as ditas linhas condutoras no dia 28 de Julho, enquadradas na visita de Donald Trump à Escócia. Na sequência das declarações da altura, houve a percepção generalizada – de que partilho e procurarei fundamentar – de que o acordo representava uma capitulação em toda a linha por parte da União Europeia, de que se tratava de um acordo humilhante no quanto iria subordinar, de forma desequilibrada e injusta, os interesses europeus face aos interesses dos EUA.

Deve dizer-se que o acordo em si não deve estar para breve (a negociação e aprovação nas instituições da UE tipicamente demora vários anos, por vezes décadas), mas há um aspecto do mesmo que teve implementação imediata e já está em vigor. As taxas aduaneiras dos EUA face à União Europeia sobre a generalidade dos produtos subiram para 15% (estavam em cerca de 1,2% antes de Trump iniciar o seu mandato), enquanto as taxas da UE sobre os EUA (que eram cerca de 3% antes do início do mandato de Trump) devem deixar de existir brevemente.

É importante frisar que esta assimetria significa que os negócios europeus que exportam para os EUA vão pagar parte do orçamento de estado deste país. Por vezes diz-se, erroneamente, que quem paga as taxas aduaneiras dos EUA são exclusivamente os consumidores norte-americanos. Desse ponto de vista equivocado, os consumidores europeus são poupados a pagar este imposto sobre o consumo aos governos europeus, enquanto os consumidores americanos terão de pagar os tais 15% ao governo dos EUA. Mas esse ponto de vista ignora que a incidência real dos impostos sobre o consumo é, geralmente, distribuída pelas duas partes que participam na transacção: parte do valor é pago pelos consumidores, cujo produto fica mais caro após as taxas cobradas, mas outra parte do valor é pago pelos produtores, cujo produto fica mais barato antes das taxas serem aplicadas, para não perder competitividade e assim maximizar os lucros (veja-se o exemplo do vinho português). Na realidade, sabemos que a proporção que cabe a cada uma das partes depende da sensibilidade da procura e oferta ao preço do produto: no caso de produtos facilmente substituíveis ou dispensáveis o produtor acaba por pagar uma proporção maior; no caso de produtos essenciais dificilmente substituíveis, o consumidor é quem paga uma maior proporção do custo. Para pequenas economias abertas, é verdade que os consumidores acabam por pagar a quase totalidade das taxas aduaneiras aplicadas; mas os EUA estão longe de ser uma pequena economia aberta, pelo que a receita obtida pelas taxas aduaneiras sobre produtos europeus será, numa parte substancial paga pelos produtores europeus. A estimativa da Goldman Sachs aponta para os 14% para já, podendo chegar aos 25% num prazo mais alargado. 

Apesar do ponto anterior ser o único que está em vigor, importa falar nos restantes. Dia 28 de Julho anunciou-se que a UE se comprometeria a comprar bens energéticos no valor de 750 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 3 anos. Para colocarmos este compromisso em perspectiva, importa aferir quanto é que a UE gasta em energia anualmente: 318 mil milhões de dólares, dos quais 76 mil milhões de dólares (em combustíveis fósseis, cujo consumo a UE se comprometeu a reduzir) são comprados aos EUA. O ponto mais positivo deste compromisso é a sua inequívoca ilegalidade: nenhuma instituição europeia tem competências para garantir o seu cumprimento, nem deveria ter. Um compromisso deste cariz poderia levar os produtores americanos a limitarem-se a triplicar o preço dos combustíveis fósseis que vendem, sem aumentar a produção, na certeza de que os agentes económicos europeus seriam obrigados a pagar tais preços extorsionários para cumprir os seus compromissos internacionais. É uma exigência tão absurda que não tem sido levada a sério.

Também não tem sido levada a sério a exigência de um aumento do investimento europeu nos EUA em 600 mil milhões de dólares. Tem-se dito que isso é uma consequência expectável do saldo comercial bilateral que a UE vai mantendo com os EUA (embora esta relação exista para saldos agregados, não para saldos bilaterais), mas isso não tem em consideração que o compromisso pode mudar as dinâmicas de mercado, conduzindo a distorções desfavoráveis aos interesses europeus. Também aqui, o lado mais positivo deste compromisso é a sua ilegalidade: as instituições europeias não têm competências para garantir investimentos privados com este volume, pelo que dificilmente qualquer acordo aprovado irá traduzir esta intenção de forma fidedigna.

Finalmente, foi também feita a exigência da UE aumentar os seus gastos em armamento norte-americano. A ameaça russa tem levado alguns comentadores a menorizar este compromisso, na medida em que será expectável um aumento do gasto militar da UE nos próximos anos que, argumenta-se, naturalmente também passaria por um gasto acrescido em equipamento dos EUA. Isto não obstante os EUA terem, precisamente em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, mostrado uma falta de compromisso para com os seus aliados, uma política errática, imprevisível, e indiferente ao direito internacional. Isto não obstante os EUA terem, recentemente, ameaçado a integridade territorial de vários países sem qualquer tipo de provocação, desde o Panamá ao Canadá, e incluindo um que faz parte da União Europeia: a Dinamarca. Compreender-se-á, face ao contexto delicado de conflito com a Federação Russa, que os Estados-membros da UE não cessem de forma imediata e repentina todas as compras militares, mesmo a uma potência que se revelou perigosa e imprevisível, mas demonstra uma enorme irresponsabilidade não iniciar desde já uma diminuição gradual da dependência militar, que seria incompatível com este compromisso. Dito isto, uma incompatibilidade mais imediata e inequívoca com este compromisso é a lei: as instituições europeias não podem assumir este compromisso pois não faz parte das suas competências garantir o seu cumprimento. 

As novidades recentes

A declaração de 21 de Agosto traz pontos acrescidos. Alguns são detalhes com os problemas de legalidade já mencionados, como por exemplo a exigência de que a União Europeia gaste 40 mil milhões de dólares em circuitos integrados americanos associados à inteligência artificial. Outros são mais graves, pois dizem respeito à “harmonização regulatória” nomeadamente nos sectores automóvel, agrícola, pecuário e florestal – as disposições que faziam parte do acordo transatlântico entre a União Europeia e os EUA (TTIP), felizmente enterrado. Os padrões de segurança e exigência dos EUA nestes campos não são considerados apropriados pelos especialistas, nem pelos eleitores europeus, mas existe a vontade de os impôr pela via de negociações onde a sociedade civil é mantida à margem. A título de exemplo, o Conselho Europeu de Segurança nos Transportes salienta que a travagem automática de emergência, testes de protecção dos peões e sistemas de assistência à manutenção na faixa de rodagem são tecnologias obrigatórias na Europa mas não nos EUA, e que podem ajudar a explicar porque é que na última década a sinistralidade na Europa tem diminuído enquanto a dos EUA tem aumentado. No campo agropecuário, os porcos e o gado bovino nos EUA podem ser medicados com ratopamina, um fármaco usado como aditivo alimentar para conseguir uma maior engorda do animal, proibido na Europa e em 156 outros países pelos riscos que comporta para a saúde dos consumidores. O mesmo acontece com a somatotropina, usada nas vacas leiteiras para aumentar a produção de leite, e a antimicrobiana, uma solução à base de cloro usada no contexto da produção aviária, procurando compensar maus padrões de segurança alimentar neste domínio. 

Depois existem pontos onde se exige que a União Europeia faça por ignorar as próprias leis que tem passado, seja em relação à desflorestação, à directiva relativa à devida diligência face a violações dos Direitos Humanos nas cadeias de produção, ou ao mecanismos de ajustamento transfronteiriço de carbono. Finalmente, exige-se que a UE prescinda do seu direito de regular o sector digital como considera mais apropriado (estava a preparar-se legislação europeia para evitar a competição desleal, combater a desinformação e garantir a protecção dos consumidores nas redes sociais e outras plataformas digitais, de que Trump já se tinha queixado). 

Deve referir-se que o facto do acordo ser contrário aos interesses dos consumidores e produtores europeus não implica que seja positivo para a população dos EUA, não se trata de um jogo de soma nula: a política comercial errática, imprevisível e impulsiva de Trump terá consequências devastadoras na economia americana. De qualquer forma, o aceitar destes termos vai encorajar esta política comercial no curto e no médio prazo. Por todas estas razões, parece pouco plausível que um acordo tão contrário aos interesses da população europeia (mesmo que corrigido para evitar as ilegalidades flagrantes e substanciais) tenha possibilidades de ser aprovado. Ainda assim, importa acompanhar esta situação com atenção: seria irónico que a aprovação acontecesse sem grande oposição da sociedade civil precisamente porque o acordo era demasiado perverso para ser credível. 

Se a União Europeia reduzir como previsto as taxas aduaneiras para os EUA, terá uma política aduaneira ilegal de acordo com a Organização Mundial de Comércio, mas os EUA já paralisaram a instituição há alguns anos. Seja como for, estas taxas aduaneiras assimétricas já estão em vigor. Somos hoje contribuintes líquidos do orçamento de estado dos EUA. 

Importa perguntar aos nossos representantes na UE porque é que haveremos de querer financiar as políticas de Donald Trump.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A ascensão da extrema direita e a Democracia

O Nobel de economia de 2024 foi atribuído a o Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, pela sua investigação a respeito do que torna as sociedades mais prósperas. Se resumir em muito poucas palavras, quando vemos a relação entre desenvolvimento económico e a democraticidade dos regimes não é o primeiro que causa a segunda, é a segunda que causa o primeiro.

Vendo bem, faz sentido que assim seja: quanto mais democrático é o sistema político, mais incentivo têm os actores políticos para escolher as políticas que resultam em maior bem-estar; e quanto menos democrático for o sistema político, mais as políticas acabam por ter outro objectivo, o de enriquecer e empoderar a elite extractivista que controla o regime. Mais do que fazer sentido em teoria, podemos facilmente observar esta dinâmica na prática ao longo da História.

Dois destes investigadores escreveram um livro de divulgação "(“Porque falham as Nações”) pejado de exemplos históricos relativos principalmente aos últimos séculos. Ainda assim, os autores não escreveram nada no seu livro sobre a erosão da Democracia no ocidente, apesar de ter vindo a saber que a reconhecem. É sobre isso que gostaria de escrever.

Os EUA encontravam-se sob um regime relativamente democrático na sequência do “New Deal” e assim se mantiveram nas três décadas do pós-guerra, quando a qualidade de vida no ocidente aumentou de forma vertiginosa e robusta. Foram décadas nas quais as desigualdades de rendimento foram comparativamente reduzidas e estáveis, com os salários reais (i.e., ajustados à inflação) a subir a par e passo com a produtividade. A democraticidade do regime foi-se aprofundando com o fim de alguns regimes de segregação e outras importantes vitórias dos Direitos Civis. Criou-se um forte optimismo em relação ao futuro, à ciência e ao progresso, e a sociedade tinha confiança nas elites intelectuais que também ajudavam a gerar uma prosperidade partilhada.

Em 1976 uma decisão do Supremo Tribunal iria dar início a uma gradual mudança de regime. Ao impor um sistema de financiamento de campanha onde existem formas de suborno legalizado, que depois foi reforçada pela conhecida decisão “Citizens United”, os incentivos dos actores políticos nos EUA mudaram bastante. Votar a favor de políticas impopulares entre a população em geral, mas populares entre os lobistas tornou-se uma estratégia vencedora, e com esta mudança de incentivos mudou o regime, que passou de democrático para oligárquico à medida que as políticas económicas aprovadas ou rejeitadas deixaram de estar correlacionadas com a sua popularidade entre a população em geral mas extremamente correlacionadas com a sua popularidade entre os lobistas e os 1% de população com maior rendimento. Naturalmente, as desigualdades de rendimento e património começaram a aumentar a uma velocidade vertiginosa, os salários reais deixaram de acompanhar a produtividade, gerando um descontentamento generalizado com o regime político. Uma parte substancial da população, menos politizada, mostrou-se disposta a dar força a qualquer iniciativa política que mostrasse vontade de fazer uma mudança de regime.

Assim, hoje nos EUA vemos 3 regimes em luta: o status quo oligárquico defendido pelos poderes instalados tradicionais nos partidos Democrata e Republicano; o regime autocrático (fascista) defendido pelo movimento MAGA; e o regime democrático defendido por alguns dissidentes do partido democrata (Sanders, AOC, Mandami, etc).

Existem várias causas para a ascensão da extrema direita, mas esta insatisfação com o regime actual que resulta de políticas económicas e sociais que têm provocado insatisfação é uma delas, como aliás alguma investigação científica prova.

Tenho falado mais nos EUA porque é uma realidade face à qual temos algum distanciamento, mas ao mesmo tempo conhecemos razoavelmente. No entanto, mais relevante ainda é o caso Europeu.

Aqui na Europa, apesar do crescimento económico ter sido substancialmente inferior ao dos EUA nas últimas duas décadas, a insatisfação com as políticas económicas tem sido consideravelmente inferior, como inferiores são as desigualdades, e ainda bem. Ainda assim, há problemas comuns, com enorme destaque para o facto da habitação estar cada vez mais inacessível, e o poder de compra dos salários não aumentar em linha com a produtividade. E se é verdade que nos EUA a democraticidade do regime se erodiu desde 1976 o que conduziu a políticas económicas cada vez mais afastadas do interesse público, na UE tivemos uma desejável integração política que não foi suficientemente acompanhada pela supressão do défice democrático que existe à escala federal. Como resultado, tivemos também aqui nos países da UE em geral um recuo da democraticidade do regime que eventualmente trouxe consigo piores políticas públicas e insatisfação popular. Ironicamente, essa insatisfação traz consigo acrescidas ameaças à democraticidade do regime sob a forma de insatisfação com a Democracia e ascensão da extrema direita.

É fundamental reverter este processo e aprofundar a Democracia às diferentes escalas (local, nacional, europeia). À escala europeia isto exige uma integração alicerçada na democratização do regime político em todo o continente. A vitória nesta luta parece particularmente distante, sendo muito mais visíveis as vitórias em sentido oposto, mas tal como a desastrosa vitória de Trump criou oportunidades quase impensáveis para uma vitória mais rápida dos movimentos progressistas e genuinamente democráticos, talvez algo análogo aconteça na Europa. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Missa de Estado? Era o que faltava

A ICAR apropriou-se da tragédia do Elevador da Glória para se vestir de Igreja de Estado. Contou para tal com a conivência do presidente da República, do Primeiro Ministro, de vários ministros e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que colaboraram na encenação, assim como políticos da «oposição».

A tragédia da Glória não foi católica, aliás não há religião comum a coreanos, um marroquino, israelitas, brasileiros, norte-americanos, um suíço, alemães, etc. E Lisboa não tem, que se saiba, religião oficial. Tal como a República.

Faz parte da liberdade religiosa a ICAR promover uma missa pela razão que entender, como faz parte dessa liberdade católicos lá irem. Só que a encenação da missa à hora dos telejornais com as altas autoridades do Estado na primeira fila foi uma descarada exibição de poder.

Não há qualquer obrigação para os políticos do poder ou da oposição de se prestarem a estas cerimónias. Há muitas formas de homenagear os mortos e confortar os vivos, e participar na forma católica é privilegiar essa igreja.

Foi confrangedor.