quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Hierarquia vs Consenso

Diferentes formas de organização colectiva podem ser classificadas quanto ao grau de hierarquia presente. Existem colectivos extremamente hierárquicos, tais como algumas empresas privadas, os exércitos, alguns estados não-democráticos. Depois existem formas de organização intermédia, onde se elege um órgão dirigente com um mandato limitado e sujeito a uma série de outros controlos de cariz democrático mais directo nuns casos e indirecto noutros. No extremo oposto, existem formas de organização completamente baseadas no consenso ou, pelo menos, radicalmente democráticas, nas quais não é possível encontrar nenhuma estrutura dirigente formal. 

A esquerda, por defender a liberdade e igualdade, tende a preferir formas de organização colectiva menos hierárquicas, sendo que, no entanto, os regimes classificados como sendo de "extrema esquerda" foram e são de cariz extremamente hierárquico (se bem que muitos dos seus defensores aleguem que não). 

Não obstante esta contradição (que aprofundei aqui), a actuação política de esquerda foi, em muitos contextos, de luta - bem sucedida - para tornar a organização colectiva menos hierárquica, e os valores de esquerda têm implícitos esta preferência por formas de organização mais horizontais.

Identificando-me pessoalmente com a esquerda libertária, deveria ter esta preferência por formas de organização mais horizontais ainda mais vincada. E tenho: como já escrevi anteriormente, acredito que se o sistema democrático aumentar o grau de participação dos eleitores, a qualidade das políticas públicas tenderá a melhorar, pelo menos no médio/longo prazo. Existem fortes razões para acreditar que assim será. 

No entanto, importa também reflectir sobre as limitações das formas de organização mais horizontais e os méritos das formas de organização mais hierárquicas. As segundas não são adoptadas de forma tão generalizada apenas por ignorância ou pela reprodução de formas de organização prévias: têm vantagens que devem ser reconhecidas se quisermos implementar um sistema adequado e funcional. 

Os sistemas mais horizontais tendem, a diferentes escalas, a propiciar uma maior qualidade e adequação das decisões, se não tivermos em conta a velocidade da tomada da decisão como um factor que afecta a sua qualidade. 

Há contextos onde não podemos deixar de fazer essa consideração. Uma guerra, por exemplo, exige uma coordenação de estruturas sociais muito complexas que seja muito rápida. Os exércitos são estruturas extremamente hierárquicas porque uma estrutura menos hierárquica estaria em forte desvantagem se em confronto, num contexto que muda radicalmente a cada minuto. 

As estruturas mais horizontais tendem a propiciar, no médio/longo prazo, mais estabilidade (o que por si pode trazer muitos benefícios em vários contextos) e decisões mais alinhadas com os interesses dos afectados; mas também uma tomada de decisão que pode ser excessivamente lenta, o que nalguns contextos pode ser fatal. 

Isso significa que, pelo menos enquanto não mudarem radicalmente as nossas capacidades de organização colectiva (as ferramentas tecnológicas já permitiram um substancial aumento dessa capacidade, como aqui referi, mas não devemos sobrestimar os seus efeitos) podemos acreditar que muitas organizações - em particular o estado - beneficiam de maior horizontalidade, mas que, para organizações mais complexas (com muitos elementos, sem que existam necessariamente relações de convívio e confiança entre os mesmos) que têm de actuar numa escala temporal mais apertada, existe um ponto a partir do qual o nível de horizontalidade pode promover a disfuncionalidade.

Uma vez reconhecendo este facto (e apenas para estruturas muito amplas que o exijam), importa tentar conciliar, na medida do possível - e sabendo que irão existir limitações - a horizontalidade com uma distribuição de competências decisórias que pode ser lida como "algo hierárquica" mesmo que isso não seja reconhecido de forma formal. Mantendo, claro está, o adequado escrutínio, e todo o tipo de garantias que evitem qualquer abuso de poder. 


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Os problemas do termo "decrescimento"

Escrever o texto que se segue é uma experiência bastante frustrante.

É-me relativamente fácil identificar os erros e contradições da direita, ou de um grupo que me pareça bastante equivocado, mesmo correndo o risco de ser identificado como estando «do outro lado da barricada». A verdade é que as minhas diferenças de valores e prioridades são tais que, para a maioria dos efeitos práticos, eu estou do outro lado da barricada, a lutar para que a sociedade caminhe num sentido diferente e inconciliável.

Já em relação às pessoas que defendem a importância do decrescimento, o mesmo não se passa. Pelo contrário, sinto uma afinidade de valores, princípios e prioridades substancial. 
Geralmente são pessoas que priorizam as várias dimensões da qualidade de vida (em particular o tempo livre e a saúde) em vez de sobrevalorizar a prosperidade material; são pessoas que valorizam uma distribuição equilibrada da riqueza e rendimento (nisto estão acompanhadas pela esquerda em geral); e finalmente são pessoas com a lucidez de compreender a importância da sustentabilidade ambiental da actividade humana, por oposição à forma míope como quase toda a sociedade desvaloriza essas questões e é incapaz de sacrificar qualquer migalha de prosperidade material no presente para evitar catástrofes de dimensões bíblicas no futuro próximo. 
São também pessoas com consciência das limitações do PIB enquanto medida da criação de valor, e do erro social que é não dar a mesma ou maior importância a outro tipo de medidas (que corrigem ou atenuam algumas limitações do PIB) no âmbito do debate público.
Estas quatro razões, e outras, fazem com que a minha proximidade política com este movimento seja muito significativa, o que se consubstancia no abraçar das mesmas causas e bandeiras (exemplos: implementação de um RBI emancipador e progressista, implementação de taxas de carbono mais elevadas, urgência da reconversão energética, defesa da redução dos horários máximos - com prioridade face à subida do salário mínimo, medição (acrescida) por parte dos institutos nacionais de estatística de indicadores de desenvolvimento diferentes). Essa proximidade consubstancia-se também numa grande simpatia pessoal e relação de camaradagem relativamente às pessoas que conheço que se batem por estas ideias.

No entanto, o texto que se segue expõe e fundamenta aquilo que me separa destas ideias. 


domingo, 5 de setembro de 2021

Ainda sobre o Afeganistão - e não só

Em 2003, pouco antes da invasão do Iraque, a cadeia televisiva MSNBC cancelou um programa televisivo com enorme audiência e despediu o escritor e apresentador Phil Donahue que era responsável. 

Poderíamos especular a respeito do "porquê" dessa decisão, mas uma fuga de informação permite conhecer a resposta

«Soon after the show's cancellation, an internal MSNBC memo was leaked to the press stating that Donahue should be fired because he opposed the imminent U.S. invasion of Iraq and that he would be a "difficult public face for NBC in a time of war" [21] and that his program could be “a home for the liberal anti-war agenda”.[22] Donahue commented in 2007 that the management of MSNBC, owned at the time by General Electric, a major defense contractor, required that "we have two conservative (guests) for every liberal. I was counted as two liberals."[23]»

Na altura não se falava em "fake news" e na pandemia de desinformação, mas já existiam inquéritos que mostravam que cerca de 69% dos americanos acreditava que Saddam esteve directamente envolvido no ataque aos EUA no dia 11 de Setembro

Esta percepção completamente oposta à realidade não surgiu "do nada": os meios de comunicação social "tradicionais" desinformaram o público a tal ponto que quanto menor o consumo de informação televisiva, menor a probabilidade de estar equivocado a respeito da invasão do Iraque. Programas satíricos como o "Daily Show" proporcionavam à sua audiência uma percepção mais fidedigna dos factos do que as grandes cadeias televisivas. 

Isto não foi coincidência ou acidente: foi deliberado. O que o memorando relativo ao despedimento de Phil Donahue mostra é que as perspectivas críticas da invasão foram deliberadamente suprimidas, tornando qualquer análise da invasão distorcida, enviesada e desinformativa.

Mas este nem sequer é caso único:

«NBC has fired the Pulitzer prize-winning reporter Peter Arnett after he gave a controversial interview to Iraqi state television in which he said American military plans had failed.»

E há mais umas tantas dezenas.


O peso tremendo que a indústria de armamento tem nos conteúdos informativos dos EUA ajuda a explicar o enorme falhanço da sua ocupação do Afeganistão. Fora do Afeganistão, os americanos foram, de longe, os principais prejudicados com a ocupação deste território. 

Já as acções das cinco maiores empresas de armamento viram o seu preço aumentar dez vezes nos últimos vinte anos. Superaram amplamente o resto do mercado e foram dos melhores investimentos que alguém poderia ter feito.  


A "mama" no Afeganistão acabou, mas agora é importante criar a percepção no público de que a retirada foi um erro colossal, para que outro Presidente não se atreva tão cedo a enfrentar o poderoso complexo militar-industrial. 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Afeganistão e o complexo militar-industrial

Fico com pena que o anterior governo afegão tenha caído e que os Talibãs tenham voltado a assumir o controlo do país. Corrupto que fosse o governo anterior, parece-me claro que no curto prazo a situação vai piorar para as mulheres, para os não religiosos, para os não-fundamentalistas e, em geral, para a população. 

No entanto,

Não é apenas que concorde a 100% com a decisão de Joe Biden de retirar as tropas americanas por muitas e diversas razões. É que este desfecho dá-nos que pensar a respeito de uma delas. 

Olhemos para a situação há cerca de um ano: os talibãs controlavam uma parte substancial do território apesar do governo ter do seu lado a maior potência militar e económica do mundo inteiro. Porquê? Uma resposta imediata seria dizer que a população tem um grande apreço pelos talibãs, e que nem todos os recursos disponibilizados pelos EUA - que foram muitíssimos - poderiam ser capazes de inverter a situação. Seria uma população tão favorável ao fundamentalismo islâmico que nem décadas e milhões investidos numa estratégia de "ganhar mentes e corações" teria conseguido dar frutos. 

Parece-me uma resposta errada. Ao contrário do que aconteceu no Vietname ou noutros teatros de guerra, não existiram grandes potências investidas no falhanço dos EUA, e os recursos investidos na ocupação do Afeganistão seriam mais que suficientes para que uma larga maioria dos afegãos passasse a valorizar o ocidente em geral e os EUA em particular, se a estratégia fosse adequada. 

O problema é que não podemos assumir que os EUA agiram como um "estado racional" que tem um determinado objectivo estratégico e faz tudo o que pode para o cumprir. A estratégia dos EUA - usar bombardeamentos via drones de forma tão exagerada e com uma falta de critério bárbara e criminosa, como se quisessem facilitar ao máximo o recrutamento por parte dos talibãs e de todos os grupos fundamentalistas islâmicos pelo planeta fora - não faz sentido se pensarmos que o seu objectivo estava alinhado com os objectivos geoestratégicos dos EUA. Mas faz todo o sentido se pensarmos que o seu objectivo estava alinhado com os objectivos económico-financeiros da indústria de armamento. 

Vejamos: a indústria de armamento nos EUA é responsável por cerca de 10% da receita de publicidade das grandes cadeias televisivas (Fox, CNN, MSNBC, etc.). Como devem imaginar, não se gastam estes milhares de milhões em publicidade para convencer o eventual general a meio do seu zapping a comprar os tanques mais avançados, muito menos se assume que o público americano em geral é o "consumidor final" dos submarinos nucleares de última geração. A razão de gastar estes balúrdios todos os meses corresponde a uma estratégia de "relações públicas" por parte da indústria de armamento. Uma a que conduz a que a cobertura informativa seja tal que, enquanto mais de 70% dos europeus tinha perfeita noção de que não existiam armas de destruição massiva nenhumas no Iraque e que a pressa dos EUA em ignorar Hans Blix vinha precisamente da consciência dessa ausência; uma quantidade semelhante de americanos acreditava que Saddam tinha sido parcialmente responsável pelo ataque às torres gémeas.  Saddam, um ditador sanguinário conhecido pela perseguição implacável dos fundamentalistas religiosos. Esta desinformação do público americano não foi um acidente nem uma coincidência: com os principais órgãos de comunicação social sujeitos à "estratégia de relações públicas" da indústria militar, outro resultado não seria de esperar. 

E a maior ferramenta de controlo político por parte desta indústria nem sequer é essa. Nos EUA a legislação relativa a "contribuições de campanha" é muito permissiva. Ser a favor de uma invasão ou da subida de impostos / desfalcamento do estado social / endividamento que a financiam pode ser impopular e levar um legislador a perder votos dos eleitores mais atentos; mas a contribuição de campanha das indústrias militares que recompensam o legislador por essa opção permitem financiar anúncios e outras acções de campanha que conquistam muitos mais votos. Isto explica os corpos legislativos "às ordens" da indústria de armamento. E se isto é assim com uma invasão, também é assim com uma ocupação disfuncional que enche os bolsos da indústria de armamento. 

Esta explicação encaixa perfeitamente nos factos. Ao longo de 20 anos a ocupação americana não tornou o governo afegão mais popular: tornou-o menos popular. Bombardeando casamentos, funerais, assassinando inocentes e socorristas, e cometendo mais umas tantas atrocidades e crimes de guerra, os talibãs e toda a sorte de fundamentalistas islâmicos foram ficando cada vez mais populares e perigosos - fazendo a indústria de armamento ganhar duas vezes: uma pelas armas e munições usadas hoje; outra pelas que serão necessárias amanhã. 

Para acabar com o regime Talibã, Biden deu o primeiro passo. Quanto mais longe os EUA estiverem, mais próximo estará o dia em que o apoio popular aos talibãs termina. 

Até lá, os EUA só poderão resolver este problema e começar finalmente a combater o terrorismo quando fizerem uma reforma profunda no financiamento das campanhas eleitorais e deixarem de ter os fabricantes de armas a determinar a política externa. 

Existem outras razões pelas quais o abandono dos EUA foi uma boa notícia, mas esta é a principal.

sábado, 17 de julho de 2021

Esquerda e responsabilidade orçamental

A Iniciativa Liberal é um partido de direita cujas propostas orçamentais se pautam pela irresponsabilidade orçamental. A Iniciativa Liberal quer diminuir as taxas de IRS, IRC e uma série de outros impostos, reduzindo por essa via a receita fiscal, sem que proponham uma redução equiparável da despesa pública. Sim, existem as promessas vagas de combate ao desperdício e ineficiência, mas no que diz respeito às grandes rubricas, as propostas da IL vão no sentido de aumentar a despesa pública, prometendo um sistema de seguros privados mais custoso ou um cheque-ensino que sairia mais caro. 

Esta novidade é bem-vinda porque pode ajudar a destruir um conceito que tanto gente à esquerda como à direita já tinha interiorizado em Portugal: que a responsabilidade orçamental está associada à direita, ou que a irresponsabilidade orçamental é uma característica da esquerda. De facto, todos os partidos que têm defendido a necessidade de contas públicas equilibradas (PSD, CDS, PS) são partidos com um programa económico de direita (PSD, CDS) ou de centro-direita (PS). Se a isto somarmos o facto de muitas pessoas atribuírem a crise de 2011 ao suposto "despesismo" do PS e ao facto deste partido ter defendido uma consolidação orçamental mais suave que o PSD, está formada a "tempestade perfeita" para criar esta percepção errônea: quanto mais à esquerda, mais orçamentalmente irresponsável. 

Esta percepção errada não resiste ao alargamento de perspectivas: nos EUA, pelo menos nas últimas 4 décadas, têm sido os governos mais à direita aqueles que mais têm aumentado o défice, e os governos mais à esquerda aqueles que mais o têm combatido. E no panorama europeu verificamos que os estados sociais mais sólidos e robustos foram construídos pelos governos que têm mantido contas públicas mais sólidas. 

No entanto, o que há de mais curioso nesta noção de que a esquerda seria "orçamentalmente responsável", é pensar nas consequências de um saldo orçamental negativo "crónico" com as consequências de um saldo orçamental positivo "crónico". Em tese, faria sentido a direita ser orçamentalmente irresponsável e a esquerda ser orçamentalmente responsável, pelo menos se assumirmos que os gastos públicos servem principalmente para financiar o estado social.  

No seu livro "O Capital no Século XXI", ao procurar explicar o aumento galopante das desigualdades, Picketty considera que uma parte importante da equação diz respeito à evolução do património público: desde os anos 70 que vemos o capital público a diminuir em proporção do rendimento da economia e ainda mais enquanto proporção do capital total:


 
Para a direita, esta evolução é sem dúvida positiva, pois significa que uma maior proporção dos activos e meios de produção está nas mãos de actores privados que os gerem, alegadamente, de forma mais eficiente. 
A esquerda, pelo contrário, não pode separar esta evolução do aumento das desigualdades e estagnação dos salários reais que lhe está associada, e não costuma fazê-lo. É comum ver esta evolução como um retrocesso ao panorama social e político anterior às grandes guerras, marcado pela instabilidade e pelas profundas desigualdades que lhe deram origem.

Mas esta evolução é, no que concerne ao património público, uma consequência directa de saldos orçamentais negativos crónicos. Esta "trajectória económica de direita" é consequência de escolhas políticas que são vistas como sendo de esquerda por uma enorme proporção do público e dos actores políticos. Se o saldo orçamental das contas públicas for positivo, o património público aumenta. Se o saldo orçamental das contas públicas for negativo, o património público diminui. 
Assim sendo, faz todo o sentido que a Iniciativa Liberal faça propostas orçamentalmente irresponsáveis. Se o estado gastar mais dinheiro do que aquilo que recebe, terá de privatizar as empresas públicas que ainda restam para pagar as contas, ou então de agravar o seu grau de endividamento, o que significa que no longo prazo o estado passará a cobrar impostos aos trabalhadores em geral para pagar os juros aos credores. 
O que parece mais bizarro é que o BE, o PCP e o PEV também o façam. 

Claro que esta exposição simplifica um pouco o panorama. Nem a IL nem o BE, PCP e PEV alegam que querem aumentar o grau de endividamento do estado. Aliás, o BE, PCP e PEV até se bateram pela reestruturação da dívida pública na sequência da crise de 2011, precisamente como uma forma de diminuir este endividamento excessivo. 
Existem, no entanto, duas questões diferentes a considerar. Uma é a necessidade de políticas contra-cíclicas. Com poucas excepções, todos reconhecerão a importância de políticas contra-cíclicas, deficitárias quando a economia está em baixo, e vice-versa. Faz sentido que a esquerda seja ainda mais favorável do que a direita a uma intervenção "estabilizadora" neste sentido, na medida em que não só a mesma corresponde a uma intervenção pública no contexto de uma economia de mercado, como tipicamente terá um impacto redistributivo. Assim sendo, defender um défice pontual no contexto de uma crise como a de 2011 pode ser correctamente visto como uma posição de esquerda. Não é isso que está em questão neste texto: falamos daquilo que seria o défice "médio", num ano não especialmente bom, nem especialmente mau. 
Já tenho visto alguns líderes políticos de esquerda a defender um conjunto de políticas que resultaria num défice crónico dando a entender que se trataria de uma política contra-cíclica, destinada a estimular uma economia que tem crescido pouco ao longo das últimas duas décadas. Note-se que isto não é uma política contra-cíclica: uma política contra-cíclica defende saldos menores quando o crescimento está abaixo da média, não quando está abaixo dos nossos desejos. 

A segunda questão a considerar são as justificações dadas pela IL ou BE, PCP e PEV para alegar que as políticas que propõem não iriam aumentar significativamente a dívida pública. A IL entra no "Reagonomics" puro e duro: como baixam o IRS, as pessoas trabalham mais, a receita aumenta. Esta fantasia já foi testada várias vezes, falha sempre, resulta em défices avassaladores, e os líderes da IL sabem perfeitamente disso. Noutras circunstâncias não explicaria por má fé aquilo que poderia explicar por preconceito ideológico, mas Portugal já leva uns bons anos a mudar estas taxas para cima e para baixo e existem poucas dúvidas que uma forte redução das taxas de IRS iria reduzir a receita no actual contexto. Não existe sequer debate entre quem conhece os números a não ser quanto à dimensão da redução.  Dito isto, esta posição demagógica pode ser considerada menos irresponsável por quem partilhar o mesmo conjunto de valores e princípios, na medida em que tal erro apenas resultaria numa diminuição do património público, algo que dificilmente os apoiantes da IL considerarão trágico. 

Já as justificações do BE, PCP ou PEV para defender políticas que resultariam em défices crónicos são menos simples. Por vezes evitam a questão afirmando que as consequências futuras e perversas daquilo que defendem como justo (aumentar as prestações sociais, o investimento público e o financiamento dos serviços públicos sem aumentar a tributação) se devem às contradições e insustentabilidade do sistema capitalista em si. A ser levada a sério, esta justificação faria com que os eleitores que se sentem seduzidos pelo programa moderado e social-democrata destes partidos devam evitar votar neles: afinal de contas as suas propostas teriam, assumidamente, más consequências a menos que o capitalismo venha a ser abolido num futuro próximo. 

Outras vezes, no entanto, o argumento é mais complexo. Por vezes aquilo que se defende é que os défices só têm estas consequências perversas devido à falta de independência monetária do país. Que se o estado controlasse a política monetária (por exemplo, estando fora do euro), poderia endividar-se sem que isso trouxesse consequências perversas. Controlando a moeda, poderia manter juros baixos e qualquer nível de endividamento seria sustentável. 

Mas será que seria assim? O exemplo do Japão e dos EUA é frequentemente apontado, mas em ambos os casos verificou-se esta mesma redução do património público em consequência dos défices crónicos. Algo que conduz a um aumento das desigualdades e tem um impacto negativo no que concerne à distribuição da riqueza, com parte da receita fiscal do estado a servir como uma "renda" dos cidadãos com maior património. 
Se o estado pudesse controlar o banco central, poderia tentar usar a inflação para reduzir os juros reais que tem de pagar, mas essa é uma opção que apenas resulta temporariamente e não resolve o problema de fundo: os juros reais ficarão maiores do que inicialmente a médio prazo, assumindo que a autoridade monetária vai sempre evitar um fenómeno de hiper-inflação. Isto nem sequer é abstracto: Portugal teve autoridade monetária durante vários séculos, e os défices crónicos sempre deram origem a uma diminuição do património público. Não existe nenhum país que seja excepção a esta regra. 

Por estas razões, fica difícil de explicar porque é que em Portugal os partidos de esquerda assumem posições que por um lado contribuem para agravar as desigualdades e transferir riqueza de quem não tem património para quem tem, e por outro lado contribuem para que estes partidos sejam vistos como irresponsáveis e irrealistas pela população menos politizada. 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

A deriva de direita na política monetária

Neste blogue tenho várias vezes afirmado que tem havido uma "deriva de direita", e até fiz uma previsão bem certeira, antecipando a popularidade do CHEGA anos antes desse partido sequer surgir no mapa. 

Mas é interessante olhar para essa deriva no contexto específico da política monetária. Teria talvez maior pertinência tê-lo feito há mais tempo, quando a inflação estava claramente abaixo do alvo (talvez estejamos a entrar num contexto onde a economia viverá o problema oposto). 

Mas recuemos uns anos, em plena crise de falta de procura agregada, juros perto de zero, e inflação abaixo do alvo. Perante este contexto, como deveria a sociedade responder no que concerne à política monetária?

Vamos colocar possíveis soluções para essa crise económica, da direita para a esquerda. Tentarei descrever cada uma fazendo um esforço para traduzir o ponto de vista de quem a defende como correcta:

1- Solução "austríaca". Ter a política monetária nas mãos de burocratas é um erro. Em vez de manter o sistema de reservas fractional e uma moeda "artificial", deveriam ser os mercados a ter o controlo total, pois são as distorções de mercado causadas por políticas monetárias desajustadas que estão a causar estes problemas. Deviam deixar de existir bancos centrais e os bancos em geral teriam de garantir os depósitos a 100%.

2- Subir os juros. Sim a inflação (Pi) está muito abaixo do alvo, mas ter juros tão perto de zero é inaceitável. A solução correcta seria subir os juros nominais (i). No longo prazo a inflação irá inevitavelmente subir até porque para os mesmos juros reais (r) temos a relação i=r+PI, e portanto aumentar os juros nominais i deverá causar uma subida da inflação Pi.

3- Manter os juros constantes (perto de zero). Sim, a inflação está muito abaixo do alvo, mas será que isso é mesmo mau? Os preços descerem não acaba por ser melhor para as pessoas, que assim ganham poder de compra? São de evitar intervenções do Banco Central pouco ortodoxas, de resultado incerto, que vão inevitavelmente criar distorções.

4- Quantitative Easing (QE). Já que não podemos baixar os juros, pelo menos podemos comprar activos no mercado secundário para conseguir que chegue maior quantidade de dinheiro à economia e fazer a inflação ficar mais perto do alvo. Isso tem a vantagem de estimular directamente o investimento (valoriza os activos, tornando o investimento mais apetecível, aumentando a liquidez dos investidores, etc.).

5- Dinheiro de Helicóptero. Se queremos que chegue dinheiro às pessoas para que a inflação fique mais perto do alvo, que tal dar dinheiro directamente às pessoas? Isso vai estimular a procura (num contexto em que está em falta) e indirectamente estimular o investimento (pois o investimento é mais rentável se existir procura para os produtos do que se não existir). O QE favorece as pessoas com mais património, esta solução é mais justa e provoca menos distorções.

6- Senhoriagem temporária. Se queremos que chegue dinheiro à economia, podemos financiar o investimento público sem aumentar a carga fiscal: basta criar dinheiro e dar directamente aos estados. O problema disto é causar inflação, mas se a inflação está abaixo do alvo isso não é um problema, é uma solução! Matam-se dois coelhos de uma só cajadada.

7 - Senhoriagem permanente. Faz pouco sentido ter os Bancos Centrais dirigidos por burocratas não eleitos. Numa sociedade democrática, a política monetária também deve ser controlada democraticamente e utilizada como mais uma ferramenta económica por parte dos poderes públicos. A criação de moeda pode ser uma fonte de financiamento público utilizada para financiar até o estado social ou outras políticas públicas. O alvo para a inflação não precisa de ser tão baixo, e é possível usar a política fiscal  para garantir que o alvo é atingido (baixar os impostos se a inflação estiver abaixo, subi-los se estiver acima). 

8- Solução anti-capitalista. Estas fantochadas todas não passam de "soluções" para salvar o capitalismo, mas esta crise mostra que o capitalismo é um sistema instável e insustentável. Em vez de usar políticas monetárias para sair da crise, devemos usar a crise para perceber que o capitalismo tem falhas estruturais e deve ser abandonado.

Faltarão outras, mas o texto já vai longo.

Na sequência da crise de 1929, onde a opção da Reserva Federal por uma política algures entre o 3 e o 2 conduziu a uma das maiores catástrofes económicas na História recente, o pensamento político e económico sobre este assunto mudou consideravelmente.

As opções "aceitáveis" sobre o que fazer em relação a este cenário hipotético passaram a estar algures entre o 7 e o 5. Na defesa da política 5 destaca-se Milton Friedman, uma das figuras mais à direita no panorama político e ideológico da altura. E assim foi durante algumas décadas. 

Mas, a partir dos anos 80, a "deriva de direita" no que concerne à política económica começou e não parou desde então. E, a determinada altura, na sequência da crise de 2008 e depois de 2011 o "cenário hipotético" tornou-se realidade. 

E o debate político sobre qual a política monetária adequada, onde se situou? Sabemo-lo: entre os pontos 3 e 4. A solução 5 não foi sequer contemplada como uma possibilidade realista, a não ser por algumas figuras mais à esquerda. Elas atreveram-se a propor algo que antes era defendido por Milton Friedman.

É de repetir: "centro" do debate político nesta matéria passou dos pontos 7 a 5 para os pontos 3 a 4. As soluções mais à direita entre as aceitáveis passaram a estar à esquerda das soluções mais à esquerda entre as aceitáveis. 

Assim vemos como nesta questão económica crucial - a própria "quantidade de dinheiro" em causa! - o debate "moderado" se desviou tanto. Uma ideia defendida pelas figuras mais à direita passou a ser considerada irrealista por estar tão à esquerda. 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Contas miudinhas e algumas considerações avulsas

Votaram na eleição presidencial de domingo 4,3 milhões de cidadãos, menos do que na primeira eleição de Marcelo em 2016 (4,7 milhões) e na reeleição de Cavaco Silva em 2011 (4,5 milhões), mas mesmo assim só francamente pior do que em 2006, quando votaram 5,5 milhões (e não vale a pena recuar mais). Num contexto de pandemia e de reeleição, foi uma participação muito boa.

O facto maior da eleição é obviamente a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa (havia um único cargo em disputa, o resto são vitórias morais, derrotas simbólicas e testes de popularidade), e também ter sido tão expressiva (61%), só inferior às releições de Soares em 1991 (70%) e de Eanes em 1980 (62%). Venceu em todos os municípios (creio que nunca acontecera). A partir de Março, a maioria parlamentar de esquerda enfrentará em Belém um Presidente empoderado por um resultado historicamente frágil do campo progressista: uns meros 24%. Duvido que não paguemos este resultado muito caro: habitualmente, os segundos mandatos dos presidentes são bem menos equilibrados e centristas.

O principal responsável por a esquerda não conseguir sequer um quarto do eleitorado chama-se António Costa. O mesmo político que conseguiu quebrar com quatro décadas de muro entre as duas esquerdas parece não ter compreendido que os acordos de 2015 lhe conferiam uma responsabilidade especial, e que a partir daí nada seria igual. Talvez não tenha compreendido que a partir de agora é um Primeiro Ministro precarizado.

Ana Gomes teve um resultado honroso em condições políticas e pessoais muito difíceis. O PS ter faltado à chamada, mesmo muito mais do que quando o candidato era Alegre ou Nóvoa, é algo que deveria fazer reflectir sobre se não faltará um partido menos acomodado nessa área. E, felizmente, André Ventura foi estúpido ao ponto de prometer demitir-se se ficasse atrás de Ana Gomes e de lhe ter chamado a «candidata cigana». Sem esses dois gestos fúteis, o político mais incoerente e histérico da 2ª República talvez tivesse ficado em segundo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Voto Ana Gomes

Voto Ana Gomes porque devemos sempre votar em quem defende o ideal de sociedade mais próximo do que desejamos. Nenhuma outra candidatura se aproximou mais de defender a República democrática pela qual os melhores lutam desde 1974. Tem também a grande vantagem de ter um extenso currículo no combate contra as corrupções que são usadas (quase sempre ilegitimamente) para desacreditar o regime que mais progresso trouxe a este país.

No próximo domingo, os que votarem Ana Gomes poderão dizer que não se deixaram adormecer num centrão equívoco que é o pasto de todos os populismos, e que Marcelo, infelizmente coadjuvado por Costa, tem alimentado. Mais: estarão de consciência tranquila para um segundo mandato que será, como sempre tem sido, muito diferente do primeiro, provavelmente com mais vetos e magistraturas de influência musculadas do que fotografias e momentos de redes sociais.

Entretanto, desejo o melhor às candidaturas de esquerda que somam votos contra o maior dos males.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Liberdade de Expressão e Internet

 Um pequeno comentário do Miguel Madeira que dá que pensar:

«Se há uns 10, 15 anos, alguém dissesse "a velha internet descentralizada está a morrer e daqui a uns anos, a comunicação na internet vai estar controlada por menos de meia-dúzia de grandes grupos capitalistas, que decidem o que podemos escrever e ler e até humilham abertamente governos democraticamente eleitos", muita gente acharia um cenário plausível - mas aposto que falhariam redondamente se fossem fazer uma previsão sobre quem iriam ser, aparentemente, os maiores adversários dessas empresas.»