terça-feira, 6 de junho de 2006

O Manifesto de Euston

Um grupo de intelectuais da esquerda britânica (incluindo Norman Geras, Nick Cohen, Shalom Lappin e Alan Johnson, entre outros) juntou-se para escrever um manifesto que tem suscitado algum interesse na blogo-esfera e na imprensa britânica.
O «Manifesto de Euston» tem a intenção ostensiva de se demarcar de algumas personalidades e organizações da esquerda britânica que, nas palavras dos autores, têm sido «demasiadamente flexíveis» nos seus valores de esquerda. No manifesto, criticam-se claramente as «desculpas» e a «compreensão» por «regimes e movimentos reacionários»; o «relativismo cultural segundo o qual os direitos humanos fundamentais não são apropriados para algumas nações e povos»; o «anti-americanismo» enquanto «preconceito generalizado»; as «desculpas» para o terrorismo, e as alianças, no movimento anti-guerra, com «teocratas». Por outro lado, os autores propõem afirmativamente uma «política geralmente igualitária» em questões sociais; a «reforma radical das maiores instituições de governança económica global» e o «comércio justo, mais ajuda [aos países em desenvolvimento] e o cancelamento da dívida [desses países]»; a primazia do dever de «intervenção humanitária» sobre a «soberania» de Estados que não respeitem os direitos humanos essenciais; a «abertura a ideias e indivíduos à direita» e a «liberdade de criticar a religião». Assume-se ainda, expressamente, que alguns dos autores foram a favor da «intervenção militar no Iraque» e outros contra.
Não é necessário ser um grande especialista na política do Reino Unido para compreender que alguns dos alvos do Manifesto de Euston serão políticos da esquerda radical como George Galloway (que foi eleito deputado em Londres com o apoio de uma coligação de trotsquistas e islamistas) ou como o presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone (que recebeu, elogiou e defendeu o clérigo muçulmano wahabita Al-Qaradawi, um apoiante do bombismo suicida na Palestina, homófobo e favorável à violência doméstica e às mutilações genitais, e que Livingstone considera «um moderado»), para além do movimento anti-guerra britânico propriamente dito.

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E porque me interesso eu por isto, pergunta o leitor? Resposta: porque encontro no Manifesto de Euston um diagnóstico certeiro (entre vários que já foram feitos anteriormente) da desorientação de alguma esquerda radical contemporânea.
Os factores principais que geraram a situação actual foram: a nível internacional, a derrocada das ditaduras comunistas da Europa de leste em 1989 e a evolução capitalista da China por um lado, e por outro lado o 11 de Setembro e a emergência dos movimentos islamistas como principal força contestatária global; a nível interno, as dificuldades da «política de classe» e da forma organizacional sindical, e a sua substituição pela «política identitária» e pelas organizações não laborais. Numa situação em que o «sub-proletariado» dos países centrais da UE é geralmente de origem muçulmana (e representado por organizações de cariz religioso ou étnico) e num momento em que os EUA passaram das intervenções (muitas vezes, camufladas) que faziam na América Latina nos anos 80, para a invasão e ocupação de países muçulmanos, a convergência, mesmo que temporária, com organizações muçulmanas extremistas tornou-se possível. O impulso «anti-americano» e a ideologia «multiculturalista» facilitam a aliança.
Norman Geras (um dos autores principais do manifesto) já assumiu que parte da sua motivação resultou da incapacidade de muita gente de esquerda em reconhecer que o regime de Saddam era totalitário e tirânico, e em aceitar que agora se deveria trabalhar para instaurar um regime democrático no Iraque. No fundo, é mais do que isso. É também o desconforto com a ausência de combate político (e, nalguns casos, até de distanciamento organizativo...) face ao islamofascismo, os bloqueios comunitaristas na formulação política, e a falta de alternativas a nível internacional.
Embora concorde na generalidade com o «Manifesto de Euston», quanto ao essencial tenho a sorte de não ter marchado contra a guerra, aqui em Lisboa, rodeado por barbudos anti-semitas e mulheres de véu, e por isso não tenho tanta urgência em denunciar outros sectores da esquerda. Mas acho que, chegados a este ponto, só por ingenuidade ainda se pode acreditar que será fácil o caminho para ter algo parecido com uma democracia no Iraque. E uma auto-crítica dos que acreditaram que esse caminho seria fácil e rápido seria bem vinda. Quanto ao que é acessório, acho desnecessário o comprometimento dos autores com a «solução de dois Estados» na zona Israel-Palestina, e não compreendo o que faz o Linux no meio daquilo. E finalmente, acho um sinal de pouca inteligência táctica não se distanciarem tão veementemente da direita como o fizeram face a alguma esquerda.

9 comentários :

Pedro Viana disse...

"E finalmente, acho um sinal de pouca inteligência táctica não se distanciarem tão veementemente da direita como o fizeram face a alguma esquerda."

Bom, acho que isso resume tudo... quando tais pessoas criam um espantalho oco e praticamente inexistente auqe chamam Esquerda Radical por conveniência, e que passa por ter sido pró-Saddam, ser conivente como o islamofascismo, e anti-americana, para atacar quem na esquerda radical discorda deles, "esquecendo-se" de atacar a direita, e chegando ao desplante de querer que haja uma «abertura a ideias e indivíduos à direita»....

A mim basta-me algo para desqualificar alguém como de Esquerda: defender a guerra como instrumento para o que quer que seja. Quem defende a guerra defende o mais extremo exercício de Poder que se pode exercer sobre Outro: quem pensa assim é que é totalitário, e está mais próximo do islamofascismo do que pensa.

no name disse...

o linux??

Rui Fernandes disse...

pois eu já ouvi o louçã muito entretido a defender a utilização de software aberto (open software)... a ligação da esquerda com as coisas aparentemente grátis não é nova... (não confundir, eu gosto do linux apenas sei que não é grátis, sei quem o paga e porquê, e sei quem o paga sem saber porquê, e sei que a propósito destas formas de pagamento todas há muito mais que se lhe diga do que em geral se diz)

Rui Fernandes disse...

aí o manifesto euston não é sequer inovador em relação a tal esquerda radical que pretende criticar
como o ricardo alves disse se poderia ter feito melhor que "limar mal limado" as arestas à terceira via de blair

no name disse...

ok, já imagino o que o texto deve dizer sobre o linux e outro open source software. penso, no entanto, que o ponto que referes não é a defesa de software grátis, mas antes a defesa de software livre, sem ligações ou custos devidos a empresas privadas. essa questão parece-me ser diferente do que referes. se queres criticar a defesa do open source software sugiro antes que explores a contradição muitas vezes feita no que diz respeito a confundir open source software com não existência de direitos de copyright. precisamente o linux faz uso do copyright por forma a poder sobreviver, nos moldes em que foi criado :-)

Rui Fernandes disse...

sabes quem são os grandes promotores e também importantes financiadores privados do linux: hp e ibm, conseguirás imaginar porquê

além delas são as universidades. já ninguém acha saudável o estado a produzir frigoríficos mas se acha porreiro finaciar sistemas operativos. há algo de bizarro nisto é isso que eu acho, e se o problema é o monopólio da microsoft existem soluções legais com várias dezenas de anos para isso que poderiam e já deveriam ter sido tomadas.

Rui Fernandes disse...

o linux já não sobrevive nos moldes em que foi criado

Ricardo Alves disse...

Caro «Pedro»,
a conivência é bastante clara no caso do Livingstone, e ainda mais no caso do Galloway. Existe efectivamente complacência em alguns grupos da esquerda britânica face ao islamofascismo. Noutros países também, mas a situação é pior no RU.

Quanto ao pacifismo incondicional, tem as suas dificuldades: situações de auto-defesa, por exemplo.

Ah, e o Linux é o ponto 14 do manifesto. Está entre a liberdade de ideias (13) e a herança da esquerda (15). Juro.

Pedro Viana disse...

Lá porque certos indivíduos se mostram complacentes com o islamofascismo isso não quer dizer que a Esquerda Radical, como ideologia e na grande maioria dos seus aderentes, o seja. Como disse, há quem goste de criar espantalhos, elevando um ou dois personagens a seus "porta-vozes", para de modo intelectualmente desonesto tentar desacreditar parte da Esquerda (ao mesmo tempo que pisca os olhos à direita, por vezes da mais reaccionária que existe). Quanto ao pacifismo, ele tem várias variantes que vão desde a recusa do exercíocio da violiencia em qualquer caso, mesmo em defesa própria, até à aceitação do seu exercício em defesa de outro, mas apenas como último caso e em caso da agressão já estar a ser exercída. Estou mais próximo do último caso do que do primeiro. Iniciar guerras paar defender "direitos humanos" é inadmissível. Para mim só é aceitável a interposição de combatentes voluntários, em posição defensiva, entre o agressor e as vítimas, e em caso de genocídio eminente ou iniciado.