terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O professor que ah, e tal...

Já perdi a conta ao número de vezes que deparei com esta história parva:

«Professor que nunca havia reprovado um só aluno

Um professor de economia em uma universidade americana disse que nunca havia reprovado um só aluno, até que certa vez reprovou uma classe inteira.
Esta classe em particular havia insistido que o socialismo realmente funcionava: com um governo assistencialista intermediando a riqueza ninguém seria pobre e ninguém seria rico, tudo seria igualitário e justo.
O professor então disse, “Ok, vamos fazer um experimento socialista nesta classe. Ao invés de dinheiro, usaremos suas notas nas provas.” Todas as notas seriam concedidas com base na média da classe, e portanto seriam ‘justas’.
O professor então disse, “Ok, vamos fazer um experimento socialista nesta classe. Ao invés de dinheiro, usaremos suas notas nas provas.” Todas as notas seriam concedidas com base na média da classe, e portanto seriam ‘justas’. Todos receberão as mesmas notas, o que significa que em teoria ninguém será reprovado, assim como também ninguém receberá um “A”.
Após calculada a média da primeira prova todos receberam “B”. Quem estudou com dedicação ficou indignado, mas os alunos que não se esforçaram ficaram muito felizes com o resultado.
Quando a segunda prova foi aplicada, os preguiçosos estudaram ainda menos – eles esperavam tirar notas boas de qualquer forma. Já aqueles que tinham estudado bastante no início resolveram que eles também se aproveitariam do trem da alegria das notas. Como um resultado, a segunda média das provas foi “D”. Ninguém gostou.
Depois da terceira prova, a média geral foi um “F”»

Quando confrontado com esta história, o meu problema em responder-lhe sempre foi «por onde começar?».
Muitas das versões desta história dão detalhes: a universidade, o nome do professor, a data da ocorrência. Naturalmente diferem: trata-se de uma história inventada.
No entanto, ela não é apresentada como uma parábola ou uma invenção, mas sim algo que aconteceu, e essa mentira mais geral é uma perfeita metáfora dos disparates que polvilham a história, e da moral simplista e absurda que apresenta.

A esse respeito, o Ludwig escreveu um excelente texto, cujo título reutilizei, que aqui partilho com os leitores (destaques meus):

«Em primeiro lugar, o dinheiro não é um bom análogo dos resultados da avaliação porque a sua distribuição tem pouco que ver com mérito ou esforço. Um passou décadas a trabalhar arduamente para ganhar o ordenado mínimo; outro é secretário de Estado porque conheceu aqueles numa universidade privada e entrou para aquele partido; outro já nasceu rico; e assim por diante. Uma ideia central dos socialismos é precisamente a de distribuir os recursos em função do mérito e das necessidades e não, como acontece no capitalismo, em função da sorte, do poder, da família ou das cunhas. Nisto, o sistema de avaliação pelo qual cada um tem uma nota conforme o seu desempenho é muito mais próximo do ideal socialista do que da realidade capitalista. Para aproximar a realidade do capitalismo precisávamos de um sistema de avaliação onde a família e as amizades contassem 90% na nota final.

Em segundo lugar, o dinheiro não é apenas uma recompensa. É também o factor principal para determinar o esforço necessário e até a possibilidade de obter certos resultados. É muito mais fácil ter um lucro de um milhão começando com cem milhões do que começando do zero. Também nisto a universidade é muito mais socialista do que a rábula quer admitir. Numa universidade decente, todos os alunos têm igual acesso às salas, mesas, laboratórios, biblioteca e tempo dos professores. Socialismo. Se a universidade funcionasse como um capitalismo os alunos teriam de pagar tudo, item a item, e os alunos mais ricos teriam muito mais possibilidades do que os pobres. É o que acontece quando não há ensino público gratuito ou apoio estatal às famílias pobres que queiram ter os filhos na escola. Ou seja, quando não há socialismo. No entanto, longe de ser um fracasso, parece ser consensual que a educação de cada um não deve depender totalmente do dinheiro que a família tem disponível.

Finalmente, a ideia de trabalhar em conjunto e partilhar a recompensa não é estranha aos alunos do ensino superior. Há muitos trabalhos de grupo que contam para avaliação. Se bem que haja casos em que um se encosta aos colegas e leva a nota de borla, a realidade é que, em grupos pequenos e minimamente coesos, este tipo de colaboração é perfeitamente possível e até benéfico. Tanto que os modelos económicos, mesmo dos sistemas mais capitalistas, consideram que o agente económico é o agregado familiar e não o indivíduo. Cada família de pais e filhos normalmente funciona em socialismo.

Esta história tenta provar que o socialismo não funciona partindo de um sistema cujo funcionamento normal é muito mais socialista do que capitalista. Depois deturpa o método de avaliação de uma forma que não se aproxima de sistema económico nenhum. Nunca encontrei um sistema económico que uniformizasse os indicadores de desempenho. E, com base nisto, relata um cenário que, na minha experiência, é absurdo. Se a nota final de cada aluno fosse a média da turma, em geral aprovavam todos os alunos inscritos. Isto porque, por um lado, os alunos facilmente se organizariam para estudar em conjunto e, por outro, os alunos que vissem não conseguir ter positiva nos seus testes anulariam a inscrição para não prejudicar os colegas. As excepções seriam tão poucas que não teriam impacto no resultado. Com grupos pequenos formados por pessoas com interesses comuns e contacto regular, até este modelo forçado de colaboração funcionaria. 

Se bem que o socialismo seja perfeito para grupos pequenos e coesos, como um agregado familiar, ter direitos de propriedade partilhados sobre os meios de produção não é compatível com a inevitável divergência de interesses em grupos grandes e heterogéneos e o planeamento centralizado não consegue lidar com a diversidade de valores. Por isso, o socialismo puro não funciona em grande escala. Mas também é ingénuo julgar que a liberdade de transaccionar bens e serviços, por si só, resulta num sistema justo em que todos recebem de acordo com o seu esforço e mérito. Pelo contrário. Essa liberdade amplia inevitavelmente qualquer vantagem relativa e o resultado é que a riqueza se acumula numa pequena minoria em detrimento não só da maioria mas da própria estabilidade do sistema. Neste momento, os milionários, 0.7% da população mundial, detêm 41% da riqueza total enquanto que os dois terços da população com menos recursos, 3.2 mil milhões de adultos*, repartem entre si 3% do total da riqueza. O capitalismo de mercado livre é necessário para lidar com a complexidade de interesses e valores num planeta com milhares de milhões de pessoas mas só funciona se assentar uma base socialista que garanta que parte da riqueza é distribuída de acordo com o mérito e as necessidades. Uma disciplina em que a nota de cada aluno fosse função de quanto pagassem ao professor também não funcionaria bem. Excepto para o professor. »


2 comentários :

JDC disse...

"[...] e, por outro, os alunos que vissem não conseguir ter positiva nos seus testes anulariam a inscrição para não prejudicar os colegas."

Concordo com o texto mas o trecho acima é pura especulação...

João Vasco disse...

A frase anterior torna claro que sim, que isso se trata de especulação baseada na experiência profissional do autor (professor universitário): «E, com base nisto, relata um cenário que, na minha experiência, é absurdo.»