Eu sei que estas coisas às vezes não são simples de ver a partir de Portugal e que podem demorar tempo a explicar, sobretudo a quem não leu o famoso livro de Max Weber sobre os católicos e os protestantes, a Reforma e a Contra-Reforma...
Mas as coisas a que me refiro são óbvias para quem vive fora do país e eu atrevo-me a trazê-las para aqui mais uma vez: até porque estou na Holanda este mês, meio em férias, meio a trabalhar, e as coisas me parecem ainda mais claras vistas de um país rico, organizado, limpo e planeado com bom senso e sentido crítico.
Com menos recursos naturais do que Portugal e um império que durou, na chamada Idade de Ouro, mais ou menos 50 anos até ser destruído pelos ingleses, a Holanda soube poupar, investir e colher os frutos. E porquê?
Na sexta-feira passada, durante um jantar, estava a pensar para onde é que foi o dinheiro da costa de Africa, do Estado da India, do Brasil, de Angola e até o dos contribuintes alemães, que entrou a rodos com o advento da UE.
A resposta é, infelizmente, muito simples. A maioria foi enterrada em igrejas, catedrais, fundos para suportar orações perenes, eleições de bispos e cardeais, embaixadas aos papas, uma população de clérigos gigantesca e absolutamente inútil, que mendigava pelo país, suja e ignorante, ou se enchia de comida em centenas de conventos onde nunca se produziu uma ideia.
E o que é que a ICAR nos deu em troca? Medo do inferno, superstições, missas, procissões, milagres e autos de fé, o Index e as sebentas de Coimbra, estirpadas do iluminismo.
Mas acima de tudo a ICAR foi a melhor e mais zelosa defensora dos direitos da aristocracia rural, também ela maioritariamente inútil, suja e ignorante (que o diga o marques de Pombal), contra os interesses das cidades, da classe média, dos comerciantes, das profissões liberais, do racionalismo e da revolução industrial.
Em Portugal a vontade de melhorar a nossa vida, de ascender socialmente é um pecado mortal, chamado “arrivismo”.
A ICAR tem sido uma força de bloqueio – daquelas que Cavaco Silva costumava lamentar – até aos nossos dias. Até 1974, apoiando aberta e desavergonhadamente o Estado Novo, os presos políticos, a tortura e a guerra colonial, contra todos os ensinamentos do Novo Testamento. A partir daí, sem quorum e sem o apoio aberto do exército e da polícia política, de forma menos escandalosa, tem sabido ser uma forca constante de reação contra o progresso e a justiça social.
Hoje como no tempo em que Eça escreveu “O crime do padre Amaro”:
“– Muita pobreza por aqui, muita pobreza! Dizia o bom abade – Ó Dias, mais este bocadinho de asa!
– Muita pobreza, mas muita preguiça – considerou duramente o padre Natário. Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar padre-nossos pelas portas. – Súcia de mariolas! – resumiu.
– Deixe lá, padre Natário, deixe lá! – disse o abade – Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há famílias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão ervas.
– Então que diabo querias tu que eles comessem? – exclamou o cónego Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. – Querias que comessem peru? Cada um como quem é!
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e disse com afecto:
– A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
– Ai, filhos! – acudiu o Libaninho num tom choroso – se houvesse só pobrezinhos isto era o Reininho dos Céus!
O padre Amaro considerou com gravidade:
– É bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificações de capelas...
– A propriedade devia estar na mão da Igreja – interrompeu Natário, com autoridade.
O cónego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
– Para o esplendor do culto e propagação da fé.”
Eça de Queiroz