sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A desvalorização do trabalho

O gráfico que se segue (obtido aqui) apresenta a evolução rácio entre os rendimentos do trabalho e o PIB. O rácio é calculado usando diferentes critérios, uns que assumidamente sobrevalorizam o rácio, outros que assumidamente o subvalorizam. Seja qual for o critério adoptado, no entanto, a evolução temporal é clara - desde os anos 80 que esse rácio tem vindo a diminuir:


Se os salários tivessem subido a par e passo com a produtividade, o rácio seria constante. Vemos, pelo contrário, que os ganhos de produtividade não se têm reflectido em aumentos salariais equivalentes.

A situação é pior do que aqui parece. Para os países ricos o declínio deste rácio tem sido ainda mais acentuado. Além disso, o aumento das desigualdades salariais faz com que a razão entre o salário mediano (aquele que mais importa para a generalidade das pessoas) e o salário médio seja cada vez pior. 

A economia é um sistema de vasos comunicantes e os mesmos fenómenos que têm decorrido nos EUA acabam por ter impacto na economia europeia e nacional. Estes dados também nos dizem muito sobre as consequências económicas das escolhas políticas que têm sido feitas. Atentemos portanto à evolução salarial:



Apesar de se ver o início da divergência em 1973, quando termina o sistema "Bretton Woods" e se deu o arranque no que mais tarde se veio a tornar o processo de "hiperglobalização", a divergência torna-se muito mais clara e relevante a partir dos anos 80, com a presidência histórica e verdadeiramente transformadora de Ronald Reagan. É com a "Reagonomics" que podemos observar uma redução nos rendimentos do trabalho, cada vez mais distantes da produtividade. 

No entanto, o panorama para a generalidade das famílias é ainda pior. É que os gráficos acima falam de salários médios, mas a desigualdade salarial aumentou muito:



Com o aumento da desigualdade salarial podemos ver o seguinte:



Ou seja, para o trabalhador mediano, a relação entre o salário e a produtividade piorou ainda mais do que aquilo que os gráficos acima sugerem.

Em consequência destas evoluções, as desigualdades de rendimento têm aumentado de forma muito acentuada. Isso tem tido várias consequências. As desigualdades têm uma forte relação com a coesão social, com o impacto ambiental do consumo, com a esperança média de vida e a saúde em geral, com a confiança inter-pessoal, com a criminalidade, com a corrupção, com o sexismo e violência doméstica, entre outras. Uma das consequências é a incapacidade da generalidade da população poupar e a criação de maiores disparidades no património e consequente concentração do poder dos mais ricos. Nos EUA, China, Reino Unido, França, Alemanha e Espanha, podemos observar a seguinte evolução temporal:


A consequência deste fenómeno é um mundo com fortes pressões deflacionárias com um impacto económico negativo juntamente com uma maior instabilidade financeira que se manifesta em crises com a de 2008 ou 2011. Até o FMI publicou um texto onde alerta que as políticas neoliberais que têm vindo a ser seguidas têm impactos económicos perversos. Recentemente a Business Insider fez o mesmo. Não são propriamente aqueles que esperaríamos ver criticar o "neoliberalismo dominante". Estas desigualdades e estas crises, por seu lado, têm provocado a ascensão da extrema-direita que podemos observar, que estão a ameaçar as Democracias em todo o mundo. 

De facto, há um século atrás as desigualdades de rendimento atingiram um valor semelhante ao actual, antes de serem violentamente comprimidas na sequência da Segunda Guerra Mundial e da tremenda derrota da extrema direita que representou. Que vejamos a mesma ascensão da extrema direita quando as desigualdades estão a atingir valores semelhantes não me parece uma mera coincidência. 


E em Portugal?

Em Portugal o rácio entre os salários e o PIB baixou nas últimas décadas mais ainda do que no resto da zona euro, de acordo com os dados da AMECO. Segundo a Pordata, a produtividade aumentou mais de 10% acima dos salários médios ao longo deste período.  

Deve dizer-se que a descida dos rácios nos restantes países ricos condicionou a nossa evolução salarial, de forma negativa. Se nos restantes países ricos os rácios não tivessem descido, os mesmos salários em Portugal seriam considerados relativamente mais baratos por parte dos investidores, o que iria atrair mais investimento e criação de emprego num contexto de alta mobilidade do capital em que os países estão a travar uma "corrida para o fundo" que, como vemos, prejudica os trabalhadores em geral. 

Claro que podemos escolher a lógica do "se não os podes derrotar, junta-te a eles", e tentar ser ainda mais rápidos nesta "corrida para o fundo", recolhendo dividendos no processo, como a Irlanda ou o Luxemburgo. Vamos todos perder no fim, mas ao menos aproveitamos para passarmos a perna aos outros durante o caminho. 

Ou então, podemos batalhar para mudar as circunstâncias que têm conduzido a esta situação. E podemos fazê-lo a diferentes escalas. Na escala mais abrangente, de topo, a mudança mais urgente é ultrapassar os défices democráticos que deram origem a estes desfechos. A teoria do selectorado é muito certeira e seria de esperar que o surgimento de défices democráticos gerasse as circunstâncias políticas para políticas públicas menos alinhadas com os interesses da população em geral, e foi precisamente o que aconteceu: nos EUA com decisões judiciais que tornaram o sistema mais oligárquico, na UE com a travagem na caminhada rumo a uma democracia europeia

Numa escala mais próxima, podemos e devemos aderir a um sindicato se não tivermos já feito. Pela minha parte não podia estar mais satisfeito com a minha entidade patronal, mas mesmo assim fiz questão de me inscrever. Uma sociedade com sindicatos mais fortes tende ser mais justa, menos desequilibrada e a valorizar mais o trabalho. Veja-se o caso dos EUA


2 comentários :

Manuel Galvão disse...

Em Portugal e em outros países pouco industrializados, os aumentos de produtividade obtêm-se. acima de tudo, com a incorporação na produção de máquinas (ou software) que permitam dispensar trabalhadores. Essa incorporação faz-se comprando no estrageiro.

Os aumentos de produtividade assim conseguidos conduzem a um cálculo do valor da produtividade que não é correto, pois as máquinas compradas fora de Portugal são concentrados de mão-de-obra, e a contabilização dos respetivos custos de utilização é feita nas amortizações (ou como custos de fornecimentos externos, no caso de leasing) e não como custos de mão-de-obra estrangeira.

Os rácios entre os salários e o PIB têm baixado em todos os países industrializados porque se generalizou a aquisição de máquinas que aumentam a produtividade, em territórios fora desses países industrializados. Se imaginarmos um território em que todas as máquinas e outros sistemas que contribuem para o aumento da produtividade fossem produzidas nesse território, então seria de esperar que o referido rácio se mantivesse constante, ou que evoluísse muito pouco, evolução impulsionada somente pela alteração dos modos de organização da produção.

A evolução negativa dos rácios entre os salários e o PIB são, assim, só mais uma consequência da globalização, e da forma como as empresas têm gerido a seu favor os preços aparentemente baratos das importações.

João Vasco disse...

"A evolução negativa dos rácios entre os salários e o PIB são, assim, só mais uma consequência da globalização"

Não que concorde com o raciocínio acima (não me pareceu muito claro), mas concordo em grande medida com esta conclusão.
A "hiperglobalização" (a que o texto faz referência) é uma importante causa deste processo de desvalorização do trabalho. Mas a "hiperglobalização" não é um fenómeno natural: a forma como se tem desenrolado e os efeitos que tem tido resultam de escolhas políticas. O "cocktail neoliberal" inclui uma política de comércio que resulta numa "hiperglobalização" com estes efeitos.
Basta dar uma vista de olhos nos acordos de comércio e investimento que têm sido assinados. Estabelecimento de sistemas de justiça privados que se sobrepõem aos estados e servem as empresas multinacionais, facilitação do dumping social, laboral e ambiental, e trinta por uma linha.