Há quase 10 anos publiquei aqui um conjunto de posts sobre a deriva de direita que tem ocorrido nas últimas décadas no mundo ocidental, magistralmente descrita por Freitas do Amaral:
«quer o socialismo democrático quer a democracia cristão viraram tanto à direita (nos últimos 30 anos) que se converteram em aliados das classes superiores, quando a sua doutrina lhes apontava o caminho da aliança com as classes médias e com o povo mais pobre. O resultado global é triste, mas fácil de detectar: enquanto a social-democracia nórdica continua a favorecer os mais desfavorecidos, a generalidade dos governos socialistas e democratas-cristãos protegem sobretudo os mais ricos e poderosos, castigando sistematicamente a sua principal base de apoio - as classes médias.
Voltámos ao capitalismo no seu pior: Leão XII e Bernstein foram esquecidos pelos seus seguidores; quem influencia os políticos de hoje é Adam Smith, na sua versão neoliberal que o desfigura, é Gizot, apesar de não ser bem conhecido, e é Friedrich Hayek, quase sempre mal interpretado. Por isso as desigualdades aumentam, a corrupção alastra e o poder económico deixou de estar subordinado ao poder político. Platão e Aristóteles já explicavam muito bem porque é que as democracias degeneravam em oligarquias, e estas em plutocracias. Mas quem os lê hoje em dia? E quem reflecte sobre os sábios avisos que nos legaram?»
Os posts foram quase proféticos, terminando com um "se a deriva continua, o fascismo vem a caminho..." que antecipou a existência e chegada do CHEGA ao Parlamento, mas também a ascensão política de Trump, Bolsonaro, etc.
No entanto, em paralelo com esta "deriva de direita" no campo económico, deu-se também uma "deriva de esquerda" a que as pessoas de direita, principalmente as mais conservadoras, não param de se referir, e com alguma razão.
Tal como, no campo económico, muito do discurso de Sá Carneiro - considerado um líder de direita - seria hoje considerado "demasiado extremista" na boca das lideranças do BE ou PCP (pelo menos pelos comentadores dos principais órgãos de comunicação social), também posições que eram consideradas "moderadas" ou até "progressistas" são hoje consideradas "extremistas" e "inaceitáveis" por serem vistas como excessivamente conservadoras.
O campo onde esta mudança foi mais evidente foi o das relações entre pessoas do mesmo sexo. Quando o BE surgiu como partido, a reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo era ousada, e até extremista. A posição de que o casamento seria aceitável, mas a adopção nem tanto era considerada uma posição entre o progressista e o moderado. Hoje, rejeitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou - aceitando-o - rejeitar a adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo é uma posição que é vista (e bem) como revelando homofobia, é considerada extremista e "inaceitável".
Esta foi uma extraordinária vitória, e é muitíssimo importante que a esquerda aprenda as lições desta vitória, como das sucessivas derrotas que foi sofrendo.
Mas esta não foi a única vitória da esquerda nas últimas décadas. Existiram significativas mudanças na representação do género e da etnia no cinema e na cultura popular. O enorme hiato entre homens e mulheres no que diz respeito à formação académica foi-se fechando ao ponto de já se ter verificado uma ligeira inversão, e o pensamento dominante tornou-se bem menos tolerante para com a violência doméstica. E por aí fora... Numa série de questões culturais, ditas "de valores", a esquerda foi conseguindo conquistar um conjunto de vitórias.
Não é por acaso que a esquerda tenha conseguido obter as suas vitórias precisamente nas questões que não obstavam (ou até poderiam ajudar a promover) os lucros das principais empresas. Há medida que a esquerda ia somando derrotas no campo económico e somando vitórias naquilo a que se foi chamando o "campo cultural", seria de esperar que as vitórias no campo económico se fossem tornando mais fáceis (porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior), e que as vitórias no campo cultural se fossem tornando mais difíceis (também porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior). E, no entanto, a esquerda não parou de somar vitórias no campo cultural, e derrotas no campo económico.
Sem supor que tenha havido qualquer espécie de intenção deliberada neste processo, vale a pena observar que - do ponto de vista funcional - esta actuação por parte da esquerda é precisamente aquilo que os mais ricos e poderosos melhor poderiam desejar.
Isto não significa, de todo, que tenha sido um erro a aposta nessas lutas. Cada uma das vitórias da esquerda nestas últimas décadas foi um passo em frente para a Humanidade, essencial para nos dar esperança em relação ao futuro.
Mas neste momento em que a extrema-direita está em ascensão, não podemos deixar de fazer um bom diagnóstico daquilo que aconteceu nas últimas décadas: uma tremenda deriva de direita no que concerne às esmagadora maioria das questões que são decididas no Parlamento, e mesmo assim um discurso que não é considerado absurdo (pelo menos ao ponto de não ser influente) de acordo com o qual "esta é a sociedade que a esquerda construiu".
É porque, desonestidades e exageros à parte, em paralelo com a deriva de direita, houve também uma deriva de esquerda.
Às vezes esquecemo-nos disso, e naqueles posts de há 10 anos eu certamente me esqueci disso.
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