segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O suposto milagre dos quatro dias por semana

Circula por aí uma história extraordinária: «A Microsoft Japão experimentou semanas com 4 dias de trabalho e a produtividade aumentou 40%».
Parece bom de mais para ser verdade, e realmente é bom de mais para ser verdade.
Infelizmente, é treta.

Quem me lê sabe que acredito que seria essencial diminuir os horários de trabalho, e que essa deveria ser uma prioridade política dos partidos de esquerda. Tenho insistido nesse ponto com muita frequência. No entanto, acredito que este "mito" nunca deveria ser usado como argumento para essa redução, e gostaria de aproveitar este espaço para discutir melhor esta questão.

Convém começar por reconhecer que, em média, a produtividade por hora diminui com o número de horas trabalhadas. Ou seja, se trabalhamos menos horas, produzimos mais, em média, por cada hora de trabalho.

Claro que isto não é sempre assim. Para muitas profissões a produtividade média é praticamente constante. Alguém que está a vigiar um local, alguém num balcão de atendimento onde responde a dúvidas ocasionais, um lojista numa loja que não está pressionada por uma quantidade elevada de clientes são alguns entre muitíssimos exemplos de casos onde a produtividade média é aproximadamente constante, pelo menos para o tipo de horários que lei permite. Noutras profissões acontece o oposto: em várias profissões de elevadíssima complexidade pode acontecer que a produtividade aumente com o número de horas despendidas no problema: quem quiser trabalhar num projecto de tecnologia de ponta, se dedicar 10h por semana nem sequer vai chegar a compreender o projecto em causa, muito menos dar um contributo útil para o seu andamento. Dependendo da especificidade do projecto, pode acontecer que trabalhar 40h semanais corresponda a uma produtividade média por hora superior a trabalhar 35h. 

Mas, para a maioria das profissões, em agregado, podemos dizer que produtividade por hora corresponde à lei dos rendimentos decrescentes: quanto mais horas se trabalha, menos se produz, em média, por hora. E a razão pode nem ter tanto a ver com o cansaço, ou a motivação, mas à simples capacidade que muitos trabalhadores competentes têm de escolher como exercer o seu esforço com maior eficácia. Por exemplo, um relações públicas de uma empresa que trabalhe apenas 20h por semana vai lidar apenas com as questões mais relevantes e impactantes, e não se preocupar com algumas iniciativas menos consequentes. Mas se trabalhar 35h já vai ter tempo para se debruçar sobre essas questões. Se trabalhar 45h semanais, pode já não encontrar nenhuma iniciativa minimamente eficaz para realizar o seu trabalho.

Esta noção de que, em geral, a produtividade média por hora diminui com o número de horas de trabalho não tem nada de novo ou surpreendente. Já se sabe disso há muito tempo, é uma ideia intuitiva e banal.

Outra questão diferente é a da produtividade por semana. Será que a produtividade semanal aumenta com a diminuição do número de horas? A essa pergunta respondo com outra: será que as empresas estão organizadas e funcionam com o propósito de maximizar os lucros?
Se fosse relevante o número de situações em que a diminuição do número de horas de trabalho semanais corresponderia a um aumento da produção semanal, seria de esperar que os empresários começassem a propor contratos com um número de horas semanais mais reduzidos. Eles poderiam pagar ligeiramente menos e obter muito mais. 
A única maneira de conciliar a ideia de que a produtividade total aumenta com a redução das horas de trabalho com a observação de que as entidades patronais não querem reduzir os horários será partir do princípio que ninguém tinha, até agora, feito essa experiência. Afinal, é muito comum que as práticas que aumentam de forma muito substancial os lucros sejam mimetizadas pela concorrência e acabem por se generalizar, principalmente se a sua complexidade é relativamente reduzida. Que melhor forma de aplacar os líderes sindicais que pedem um aumento de 2% do que propor, em vez disso, uma redução do horário de trabalho que corresponda a aumentos por hora na casa dos 15% ou mais,  sabendo que os lucros vão disparar em consequência dessa "cedência"?
Como é evidente, essa experiência tem sido feita constantemente, em toda a parte. Já nos anos 70 cerca de 600 empresas nos EUA (com um total de 75 000 trabalhadores) implementaram semanas com 4 dias de trabalho. Nos anos 70 surgiu na imprensa o mesmo entusiasmo e expectativa que vemos agora na notícia sobre a Microsoft Japão. Mas a prática não se generalizou. Será que é porque as equipas de gestão são, sem excepção, tão incompetentes e fechadas que não reconhecem, década após década, um método de aumentar o seu lucro (e a sua popularidade entre os seus subordinados, já agora)? 
Ou será que algum "outlier" desperta tanta surpresa e interesse que se espalha pela comunicação social e pela imaginação colectiva muito mais do que pelas práticas empresariais porque, como é natural, não produzimos mais no total por trabalhar menos horas? 
Não existe nenhum milagre nem nenhum paradoxo. A produtividade total aumenta com o número de horas semanais de trabalho, pelo menos para o tipo de horários que são legalmente permitidos.

Não é surpreendente que sejam as pessoas que mais desejam alguma actuação legal para limitar os horários de trabalho quem espalha este tipo de notícias com mais entusiasmo, mas há alguma ironia nesse facto. Eu, que também vejo a redução dos horários como uma prioridade política crucial, vejo o entusiasmo em volta destes resultados como um obstáculo a essa luta. 

Vejamos: acreditar nestes resultados é ter uma percepção fundamentalmente errada do problema em causa. Presume-se que os interesses dos empregadores e trabalhadores não estão desalinhados ou em contradição: todos têm a ganhar com horários semanais mais reduzidos. O obstáculo a esses ganhos generalizados é a ignorância, o medo de experimentar formas diferentes de organização, valorizando mais a "tradição organizacional" que o lucro. Se ao menos a gestão de topo das empresas estivesse disposta a correr mais riscos em nome de lucros superiores, o problema estaria resolvido. Não faz sentido, neste caso, intervir legalmente para condicionar a actuação das empresas, o que importa é espalhar a informação, fazer chegar à gestão de topo das mesmas que estão milhões de euros à espera dos accionistas assim que existir a coragem de granjear a simpatia dos trabalhadores, da imprensa e do público em geral com esta medida de redução de horários. 

Mas a realidade é diferente. As entidades patronais ganham em garantir que as pessoas trabalham mais horas pelo mesmo vencimento, e é por isso que a luta dos sindicatos por horários mais reduzidos nunca foi pacífica ou baseada na "partilha de informação científica" - foi uma luta de décadas, muito violenta e consequente. Os interesses dos empregadores e dos trabalhadores estão em oposição neste caso, e é por isso que as empresas geralmente se "encostam" ao horário máximo que a lei permite. 

A redução dos horários de trabalho, por via legal, tem enormes benefícios. Conduz a uma redução do desemprego, conduz a um aumento do tempo de lazer, conduz a melhores indicadores de saúde, maior acompanhamento familiar, maior coesão social, maior participação política, e até conduz a maior produtividade por hora. Mas não, não conduz a maior produção. E isso é aceitável, é um preço muito razoável a pagar para viver numa sociedade com maior qualidade de vida, mais segurança e liberdade. 

4 comentários :

Ide levar no déficite ide disse...

conduz também a menos salário provavelmente uma vez que há mais trabalhadores

João Vasco disse...

Xi! Um argumento! Um comentário que não desconversa!

E é um bom argumento, ainda por cima.

A minha resposta é a seguinte: se existir um valor elevado de desemprego é verdade que esta medida, a médio prazo, conduz a salários mais reduzidos (o salário por hora, no longo prazo, não se alteraria).
Nessa situação eu diria que me parece mais saudável, do ponto de vista social, ter 95% da população activa a ganhar X, com 5% de desemprego; do que ter 90% da população a ganhar cerca de 105% de X, com 10% de desemprego. Sim, os salários são ligeiramente mais baixos na primeira opção, mas existe menos gente numa situação desesperada, e as pessoas em geral têm mais tempo de lazer e mais segurança no emprego.

Se não existir um valor elevado do desemprego, então não me parece verdade que os salários reduzam, no total. Isso quer dizer que já existia escassez de mão de obra, pelo que os salários estariam abaixo da produtividade, e esta medida - ao aumentar ainda mais a escassez de mão de obra - conduz a que os salários se aproximem mais da produtividade.

Miguel Madeira disse...

1 - Fiquei sem perceber se a notícia é mesmo mentira, se é verdade mas mal explicada, ou se é uma questão do João Vasco achar que, quase por definição, não pode ser verdade para a generalidade da economia.

2 - Já vi teorias de que o que está a bloquear a expansão do teletrabalho será que os gestores (e eventualmente mesmo os empresários) muitas vezes serão motivados mais pelo desejo de poder do que pelo desejo de maximização dos lucros (e até me ocorre - mas não pensei muito no assunto - que numa economia em que haja empresas geridas por "maximizadores de poder" e outras geridas por "maximizadores de lucro" - "aristocratas" versus "burgueses"? - o equilíbrio talvez seja para as primeiras se tornarem dominantes porque estão sempre a crescer, enquanto as segundas serão mais tentadas a pôr os lucros no banco e não crescem tanto) e portanto têm receio de deixar os empregadores trabalharem a partir de casa, mesmo que possam ser mais produtivos. Será que um mecanismo similar não poderia ocorrer na questão do horário de trabalho (alguns gestores sentirem prazer em ter os seus súbditos à sua volta muitas horas)?

João Vasco disse...

1- Pode ser verdade (e mesmo isso é incerto dada a falta de rigor da imprensa generalista quando descreve resultados científicos...) que um estudo tenha concluído o que a notícia diz que concluiu, mas qualquer notícia sobre ciência devia SEMPRE contextualizar com meta-estudos.
Idealmente, só os meta-estudos deviam ser reportados pela imprensa generalista - isto é algo que penso em relação a todas as áreas científicas, com destaque para a nutrição, não apenas em relação à economia.
Aquilo que acontece é que os estudos dão resultados "à volta" daquilo que é concluído pelos meta-estudos, mas a imprensa generalista só reporta os resultados mais contra-intuitivos, dando uma noção completamente distorcida da realidade.
Há alguns anos atrás uns cientistas fizeram circular a ideia de que o chocolate emagrecia, fazendo uso por um lado dos problemas do "p-hacking" (isso era um problema da comunidade científica que não está aqui em causa, que eu saiba) e por outro desta forma da imprensa generalista funcionar (aqui é exactamente o mesmo problema).

Os meta-estudos obviamente desmentem esta ideia. Mas o que me parece absurdo é que pessoas que leram uma notícia generalista sobre a questão da produtividade acreditem que sabem mais sobre como maximizar os lucros do que gente que tem como profissão fazê-lo.
As associações patronais estão dispostas a ceder no aumento do salário mínimo que lhes vai custar milhões, mas não cedem um milímetro na questão dos horários que lhes iria aumentar disparatadamente os lucros, e ninguém foi "tirar a limpo" esta notícia do que se passou no Japão. Só alguns militantes de base de alguns partidos de esquerda é que tiraram as devidas consequências.


2- Num mercado competitivo as empresas burguesas acabariam por dominar as empresas aristocratas no longo prazo. Sim, as aristocratas contratariam mais gente, mas não ofereceriam preços tão competitivos e acabariam por ser corridas do mercado.
Claro que sabemos que os mercados não são completamente competitivos, e por isso pode existir um maior grau de "aristocracia" do que aquele que existiria num mercado competitivo, mas o diferencial seria sempre relativamente moderado, pois o mundo é vasto e as práticas que dão mais lucro se não se espalham de um ano para o outro, também não precisam de muitas décadas...
Note-se que a ideia "vamos experimentar horários mais reduzidos para ver se a produtividade aumenta" já tem sido tentada (pelo menos!) desde os anos 70 e ainda não se generalizou. Porque será?