sábado, 9 de maio de 2015

A automação e o emprego



Muitas pessoas não vêem na automação uma ameaça para o emprego. E as razões são várias: olhamos para a revolução industrial com alguma distância, e vemos que a nossa qualidade de vida aumentou significativamente, vemos que novos empregos foram criados em áreas em que ninguém imaginava, e que a tecnologia tornou a vida mais próspera e fácil.
Por outro lado, quando olhamos para o passado a tendência é para ter um olhar complacente para com os «luditas» os tolos que andaram a destruir máquinas como resposta aos empregos destruídos por estas: como que velhos do Restelo incapazes de aceitar o inevitável, ninguém quer fazer o papel análogo nos dias de hoje.
E quem for mais versado nalguns modelos económicos muito comuns até pode explicar porque é que a automação não destrói o emprego: no curto prazo pode realmente diminuir a procura* de trabalho, e levar a uma redução dos salários. Mas isso leva a um aumento da rentabilidade do capital, o que faz com que este cresça mais rápido. À medida que o capital cresce mais rápido que a população (e consequentemente do que o "factor trabalho"), eventualmente isso levará a uma descida da rentabilidade do capital e um aumento dos salários - o salário acabará por corresponder à «produtividade marginal do trabalho», e como esta sobe com a automação, também os salários acabarão por subir. E o desemprego voltará a ser marginal.
Esta é a versão dominante sobre o impacto da automação no trabalho, e pretendo demonstrar que está errada, porque incompleta.

Importa compreender quais são os erros no raciocínio exposto, e depois olhar para a história e ver quais foram as consequências do extraordinário processo de automação que aconteceu durante a revolução industrial.
É fácil compreender porque é que numa primeira fase a automação leva a uma descida dos salários: é oferta e procura pura e simples. Se assumirmos uma oferta* de trabalho constante, o primeiro impacto de automação é deslocar a curva da procura. Onde antes as fábricas precisavam de uma determinada quantidade de pessoas, agora passam a precisar de muito menos gente. O ponto de intercepção corresponde a um salário menor, e a um menor número de horas transaccionadas.




Esta mudança vai ter três consequências:

a) a rentabilidade do capital vai aumentar, e os salários vão diminuir. Se os capitalistas tivessem a mesma propensão para gastar dos seus rendimentos acrescidos que os trabalhadores, a procura agregada não se alteraria. No entanto, empiricamente verifica-se que os trabalhadores tendem a gastar uma fatia superior dos seus rendimentos, o que faz com que esta alteração conduza a uma diminuição da procura agregada. Essa diminuição da procura agregada levará a curva da procura a deslocar-se ainda mais, acentuando a tendência anterior.

b) grande parte dos trabalhadores precisa de sobreviver. Assim, a descida do salário abaixo de um determinado nível leva a que se disponham a trabalhar mais horas (e não menos) para garantir a sua subsistência. Isto quer dizer que ao invés de se manter constante, a curva da oferta tende a deslocar-se para a direita. Isto leva a reduções adicionais no salário, mas a um aumento no número de horas de trabalho transaccionadas. No entanto, este aumento não se traduz numa redução do desemprego: visto que cada trabalhador agora trabalha mais horas, o número de pessoas empregadas reduz-se mesmo com o aumento de horas trabalhadas. Ambos estes efeitos (maior desemprego e redução acrescida do salário) acentuam a tendência para a redução da procura agregada explicada no ponto anterior.

c) se a rentabilidade do capital aumentar o suficiente (coisa que logo à partida se torna difícil quando existe um problema de procura agregada), a certo ponto esperar-se-ia que a taxa de lucro se reduzisse sucessivamente. Com tanto capital disponível, os salários voltariam a subir. O problema é que, como Piketty demonstrou, este quadro é um tanto ingénuo. Mesmo quando a economia cresce muito pouco, a rentabilidade do capital mantém-se relativamente elevada. A riqueza vai-se concentrando em cada vez menos mãos, que acabam por ter um controlo político e social suficientemente alto para criar uma espécie de «cartel do capital» e encontrar formas de manter uma elevada rentabilidade para os seus activos. Como a riqueza se concentra em menos mãos, a sociedade funciona menos como uma «economia de mercado» com inúmeros agentes em concorrência.
Ao contrário da visão ingénua antes exposta, a proporção dos rendimentos para o capital e trabalho não é uma constante no longo prazo, mas sim algo que pode variar significativamente.

Expostos estes argumentos, importa olhar para a realidade.
Não é verdade que depois da revolução industrial nós temos sociedades menos desiguais, e salários muito mais altos? Não é verdade que a nossa qualidade de vida é muito superior?

Tudo isso é verdade, mas importa atentar para o que aconteceu entretanto.
Adam Smith viveu o início da revolução industrial. Na sua obra magistral (que recomendo sem reservas) "A Riqueza das Nações" nós podemos intuir as previsões optimistas descritas no início. A rentabilidade do capital tenderia para zero, e os salários acabariam por disparar.
Mas enquanto Adam Smith viu o capitalismo a funcionar no seu melhor, cerca de um século depois Carl Marx viu o capitalismo a funcionar no seu pior. O que é aconteceu entretanto?

Não é fácil estimar a evolução dos salários reais. Não existiam na altura estimativas frequentes do "cabaz de preço para os consumidores" nem a recolha de informação era tão sistematizada. Na realidade, existem estimativas muito díspares a respeito da evolução dos salários reais, sendo que muitos acreditam que na fase inicial da revolução industrial, eles estagnaram ou regrediram.
Existem, no entanto, outros indícios que podemos usar para apurar a qualidade de vida da maioria da população durante estes anos. Quando a nutrição não é abundante, a altura da população reflecte a maior ou menor prosperidade da população.

Vale a pena portanto atentar nos registos da atura dos soldados, que podem dizer-nos bastante sobre o nível de vida da população após a revolução industrial:



Perante estes dados, é mais fácil compreender porque é que Marx tem uma perspectiva tão diferente da de Adam Smith.

No entanto, irónica e inadvertidamente, o próprio Marx explica porque é que, mesmo dentro do próprio sistema capitalista, a situação acabou por se inverter - os salários vieram a subir, a qualidade de vida acabou por aumentar, a população acabou por partilhar a prosperidade criada pela automação. A revolução generalizada que previa acabou por não tomar lugar.

Vejamos: numa primeira fase Marx descreve como o mecanismo exposto em b) ocorreu. As pessoas tinham de trabalhar cada vez mais horas para sobreviver, e o desemprego era uma situação cada vez mais comum. A situação atingiu a um ponto onde se chegou a ilegalizar o desemprego e enforcar pessoas pelo crime de serem "desempregadas", como forma desesperada de aliviar a pressão social causada por um exército de desempregados que aumentava de dia para dia (não nos podemos esquecer que os processos que exigiam menos mão de obra não aconteceram apenas nas fábricas mas também nos campos, e que muitas pessoas foram expulsas dos seus próprios terrenos, expropriadas para aumentar os latifúndios dos mais ricos e influentes).

Mas Marx também descreve a resposta social a esta situação de desespero. Os trabalhadores dispuseram-se a arriscar a sua vida e segurança em greves  ilegais e outras formas de luta, acabando por conquistar uma lei que impedia jornadas de trabalho superiores a 12h, lei essa que foi acolhida pelos industriais e capitalistas com enorme resistência. Alegavam que as suas indústrias se tornariam pouco competitivas, que o capital se iria deslocar para outros países com leis menos rigorosas, que era uma injustiça e uma afronta anti-natural impedir alguém mais industrioso de trabalhar tanto quanto quisesse, e por aí fora.
Agora peço ao leitor que pause o texto para pensar sobre esta situação: uma lei que vem limitar as jornadas de trabalho às 12h foi um importante avanço social. Importa dizer que a jornada de trabalho não incluía o tempo destinado às refeições, que não existiam férias estabelecidas por lei, nem fins de semana. Mesmo numa altura em que a população era significativamente mais religiosa, e o trabalho ao Domingo de certa forma um tabu, a burguesia urbana lamentava publicamente a influência destes preconceitos da Igreja na população rural, que ainda se abstinha de trabalhar ao Domingo - acreditavam que a Igreja tinha de se modernizar, permitindo à população rural contribuir tanto para a criação de riqueza como a população urbana. A esmagadora maioria da população empregada trabalhava mais que 12h diárias, todos os dias, sem fins de semana, férias ou reforma, sem parar. Vale a pena pensar nisto.

Depois desta conquista em vários países industriais importantes, começou a luta pela jornada de trabalho de 10h. Na altura em que Marx escreve, não só muitos trabalhadores já tinham realizado essa conquista nos seus respectivos países, como nos EUA já se tinham finalmente conquistado as 8h de trabalho.
E sabemos que nos mais tarde vieram outras conquistas: férias, fins de semana, etc. Tudo aquilo que damos por garantido foram conquistas duras dos nossos antepassados.



Com esta cartelização da mão de obra, criada pelas leis conquistadas pela luta dos trabalhadores, a situação muda de figura. No imediato, os salários sobem. E, apesar do número de horas de trabalho transaccionadas descer, o facto de cada trabalhador exercer a sua actividade durante menos tempo leva também a uma descida do desemprego. Ambas estas circunstâncias levam a um aumento da procura agregada, que acabará também por levar a um aumento da procura de trabalho, que por sua vez leva a acrescidos aumentos de salário e emprego, num ciclo virtuoso que leva a um aumento significativo da qualidade de vida.

E foi exactamente aquilo que aconteceu:


Ou seja, não foi a automação, por si só, que levou a um importante aumento da qualidade de vida para a maioria da população.
Foi a automação em conjunto com uma bem sucedida e muito difícil e corajosa luta popular por melhores condições de vida. As duas coisas em conjunto - aumento da produtividade e estabelecimento de limites à oferta de trabalho - vieram a resultar numa maior prosperidade e qualidade de vida.

O problema que se coloca é o seguinte: e hoje?
Uma nova vaga de automação, quase que como uma terceira revolução industrial, está aí ao virar da esquina. Mas desta vez faz sentido limitar-mo-nos a reduzir a jornada? Será que essa solução ainda funciona?

Dir-se-ia que será sempre uma solução insuficiente. Se a jornada de trabalho desce muito, várias pessoas podem procurar mais de um emprego para assegurar maiores rendimentos.
Por outro lado, em grande parte dos empregos actuais a entidade patronal dá mais importância aos objectivos atingidos pelo trabalhador, do que ao número de horas passadas no escritório. Isto faz com que muitas pessoas acabem por ignorar os horários estabelecidos, trabalhando muito mais do que o número de horas semanais permitidas por lei. E como podem fazê-lo em casa ou noutros locais, a legislação laboral nunca poderá impedir esta prática, e assim não poderá garantir uma redução efectiva da oferta de trabalho.

Mas se, por si só, uma redução do número de horas de trabalho permitidas por lei não conseguirá diminuir com eficácia a oferta de trabalho e garantir que a automação ao virar da esquina gera mais prosperidade e não mais desemprego, o que poderá resultar?




*Na linguagem comum as empresas "oferecem" trabalho, e as pessoas "procuram" trabalho.

No entanto, no contexto a que me refiro, os termos "oferta" e "procura" de trabalho têm o significado oposto - são as pessoas quem vende o seu trabalho e os empregadores quem o compra.

Assim, os trabalhadores são responsáveis pela "oferta" de trabalho, e as empresas as responsáveis pela "procura" de trabalho.

5 comentários :

Miguel Madeira disse...

Alguns pontos:

a) o primeiro é capaz de ser mais uma picuinhice sobre como desenhar o gráfico: de acordo com as premissas que o João Vasco está a adotar, no primeiro gráfico a barra verde (que suponho represente a oferta de trabalho) deveria ser vertical (oferta fixa), não diagonal; no segundo, em vez de duas barras verdes (uma escura e uma clara), deveria haver uma única barra verde inclinada no sentido noroeste-sueste (o que está a acontecer não é uma deslocação da curva da oferta de trabalho, mas uma deslocação ao longo da curva)

b) "No entanto, empiricamente verifica-se que os trabalhadores tendem a gastar uma fatia superior dos seus rendimentos, o que faz com que esta alteração conduza a uma diminuição da procura agregada. Essa diminuição da procura agregada levará a curva da procura a deslocar-se ainda mais, acentuando a tendência anterior." - Se o aumento da poupança motivada pela transferência de rendimento para os empresários equivaler a um aumento do investimento, não há problema para a procura agregada (diminui o consumo e aumenta o investimento)

c) acho que os efeitos da substituição do trabalho por máquinas dependem muito de como evolui a produtividade aparente do capital, ou seja, o rácio produção/capital:

Se o rácio produção/capital se mantiver constante (isto é, se para produzir uma unidade de produto continuar a ser usada a mesma quantidade de máquinas - em principio mais sofisticadas qualitativamente, mas de forma a que o aumento do valor da produção seja proporcional ao aumento do valor das máquinas), acho que o filme será como o modelo exposto no 3º parágrafo.

Se a produtividade do capital até aumentar (isto é, se cada vez se usar, não apenas menos trabalhadores, mas também menos máquinas para produzir uma unidade de produto), penso que também será a mesma coisa, ainda que de forma mais instável.

O problema é se a produtividade do capital diminuir (isto é, um cenário em que se usa cada vez menos trabalhadores e mais máquinas para produzir uma unidade de produto) - num cenário desses, a taxa de rentabilidade do capital tende a decrescer, o que leva a um processo tendencialmente oposto ao descrito no 3º parágrafo.

João Vasco disse...

Algumas respostas,

a) A curva da oferta deveria ser um pouco mais confusa, e às tantas terá uma terminação vertical (por muito altos que sejam os salários, ninguém pode trabalhar mais que 24h por dia), mas é muito importante para o que exponho nos textos seguintes (em particular no impacto do RBI) que a oferta de trabalho também varie com o salário, principalmente quando os rendimentos ultrapassam o suficiente para sobreviver.
E a redução das jornadas de trabalho também me parece que aquilo que fazem é deslocar a curva. Até nos podemos socorrer das tais curvas verticais hipotéticas: em vez de uma oferta diária de Pop*12h temos uma oferta diária de Pop*10h.

b) Sim, hipoteticamente pode ser assim. Mas empiricamente verifica-se que o investimento não varia de forma tão rápida.
Num cenário de juros altos (como na revolução industrial), a descida dos juros fruto do aumento dos lucros poderia conduzir a investimento acrescido numa segunda fase, mas a diminuição do consumo diminui as expectativas de retorno. Qual dos efeitos sobre o investimento é maior?
No entanto, no cenário actual de juros muito baixos, as expectativas de retorno é que conduzem o investimento, e a propensão marginal para o consumo dos trabalhadores e dos capitalistas são bastante diferentes.

c) A que terceiro parágrafo te referes?
É possível que exista aqui alguma confusão porque falo de efeitos de curto prazo (aumento da rentabilidade do capital com a automação) e potenciais efeitos de longo prazo (diminuição da rentabilidade do capital devido a uma acumulação mais rápida que o crescimento da população).
No curto prazo parece-me mesmo difícil alegar que a rentabilidade do capital diminuiria por exigir mais máquinas para produzir uma mesma unidade de produto, visto que sem acumulação prévia não existiria razão para substituir os actuais métodos de produção por esses, a menos que a rentabilidade fosse superior.

João Vasco disse...

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Miguel Madeira disse...

Afinal o segundo gráfico está certíssimo - eu é que fiz confusão e estava com a ideia que o segundo gráfico se referia à parte "grande parte dos trabalhadores precisa de sobreviver. Assim, a descida do salário abaixo de um determinado nível leva a que se disponham a trabalhar mais horas (e não menos) para garantir a sua subsistência."

João Vasco disse...

Sim. Ou seja, num ponto mais abaixo a curva lá fica vertical, mas apesar do número de horas transaccionado ser o mesmo, o desemprego é maior (porque cada pessoa trabalha mais horas, e logo a população empregada diminui).