quinta-feira, 29 de maio de 2008

As dificuldades de César

O último artigo de João César das Neves (JCN), já referido pelo Carlos, merece reflexão.

Devemos deixar de lado as graçolas pueris típicas da argumentação católica, como por exemplo «recusar Deus é uma crença como as outras» (como se a careca fosse um penteado, ou a saúde fosse uma doença), ou ainda jogos de linguagem como «uma obra supõe um autor» e «uma lei implica um legislador». Um artigo de fundo pressupõe palavras ordenadas, mas, como se vê, não pressupõe rigor nem honestidade intelectual.

Confrontemos as três «dificuldades» do ateísmo alegadas pelo nosso inefável JCN.

A primeira «dificuldade» seria que «a resposta ateia tem de ser que o acaso de milhões de anos conduziu de uma explosão ao sorriso da minha filha». Acontece que, como já foi dito dezenas de vezes, «acaso» é um termo errado para a evolução do universo. Se eu largar uma pedra no ar, ela não cai «por acaso». Cai porque a massa atrai massa. E se eu soltar uma raposa num galinheiro, a extinção das galinhas não é um acaso. É a satisfação de um apetite. É por mera economia de expressão que chamamos «leis» às regularidades do universo que conseguimos compreender. Porque nenhum «legislador» previu o extermínio das galinhas, nem o sorriso da filha de JCN. Mas se as antepassadas desta não sorrissem, mais dificilmente teriam garantido o afecto paterno e, portanto, a sobrevivência do seu património genético. Mas adiante.

A segunda dificuldade seria que «meros átomos de carbono, aglomerados em aminoácidos e evoluindo pela selecção natural» não poderiam «gritar que salário digno é valor universal». O salto de lógica (uma das mais genuínas tradições teológicas) destina-se a baralhar os leitores. Os átomos de carbono aglomeraram-se há muito, e há muito que alguns desses aglomerados descobriram estratégias de sobrevivência e de defesa do seu bem-estar. Primeira: a reprodução sexuada. Segunda: a vida em sociedade. Terceira: coligações de interesses em cada sociedade (sindicatos, por exemplo). Não olhar para os passos intermédios só é útil para quem tudo quer confundir. A realidade é mais fascinante, complexa e rica do que a versão mesquinha e dogmática que os teólogos nos querem vender.

Mas JCN toca, a este propósito, num ponto importante: «todos os humanos sentem em si uma ânsia de justiça e verdade, um sentido de bem e mal». Eu creio que exagera: estou convencido de que existe, em qualquer população humana suficientemente grande, uma percentagem de psicopatas (quase todos do sexo masculino), que só observam as regras sociais (quando o fazem...) por puro cinismo. Todos os outros humanos terão algum equilíbrio entre o seu sentido ético inato e os instintos que os levam a transgredi-lo. Mas JCN engana-se se pensa que os «valores comuns» caíram do céu aos trambolhões. A «ética universal» pode ser em parte inata (não praticar violência gratuitamente), e em parte consequência necessária da dinâmica de grupo (expulsar do grupo quem pratica crimes, por exemplo).

Finalmente, a terceira dificuldade seria que «para o ateu este universo, sem origem nem orientação, também não tem propósito». Sinceramente, sempre me pareceu de uma enorme falta de verticalidade precisar de uma muleta divina para discernir o «bem» do «mal». Sim, o universo, em si, não tem propósito ético. E depois? Continuamos a poder decidir, à escala humana, qual é o propósito das nossas vidas. A indiferença do universo é apenas o cenário sobre o qual o fazemos.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

17 comentários :

João Vasco disse...

Ricardo:

Este texto está excelente.

Gostaria apenas de acrescentar uma observação:

««meros átomos de carbono, aglomerados em aminoácidos e evoluindo pela selecção natural» não poderiam «gritar que salário digno é valor universal»»

É engraçado como o tom dos criacionistas pode ser útil para convencer ignorantes.

Se eu dissese em tom jocoso que «o Matias acredita que em menos de 100g de plástico dá para escrever uma enciclopédia inteira», até pode parecer complicado. A esmagadora maioria das pessoas não faz ideia como é tal coisa possível, mas graças aos CDrom, é fácil provar que isto é possível. Se os CD rom ainda não fossem conhecidos de todos e o Matias estivesse a investigá-los, ele estaria numa situação complicada.
Para explicar que o meu tom não faz sentido, teria de falar de coisas que exigem conhecimento e reflexão aprofundadas, e poderia não convencer ninguém.

Basicamente esse pequeno do Cesar das Neves usa o mesmo tom obscurantista e desonesto dos criacionistas.

Enfim, a religião tem aquela tendência para o obscurantismo...

Francisco Múrias disse...

A pedra não cai por acaso ,não cai porque a massa atrai massa, cai porque o sr a amandou ao ar e se o sr soltar uma raposa numa capoeira a raposa come as galinhas porque o sr a pôs lá.
Acreditar que uma raposa se formou porque uma data de átomos estavam com apetite ou porque a «massa atrai massa« é tão estúpido como acreditar que um Mercedes se forma pelas mesmas razões.
A raposa e o Mercedes existem pela mesma razão, alguém os construiu.

João Vasco disse...

«Acreditar que uma raposa se formou porque uma data de átomos estavam com apetite ou porque a «massa atrai massa« é tão estúpido como acreditar que um Mercedes se forma pelas mesmas razões.»

O mercedes "forma-se" porque o homem estudou as leis do universo (tipo "massa atrai massa) e conseguiu usa-las para seu proveito.
A partir dessas leis compreendeu fenómenos que contrariam o nosso senso comum (o tempo passa mais lentamente se andarmos muito rápido) mas que não deixam de ser verdadeiros. Os ignorantes podem rir-se por alguém dizer que o tempo passa mais lentamente se andarmos mais rápido, ou que uma enclopédia pode caber em 100g de plástico. Até podem dizer que é estúpido alguém acreditar nisso. Pobres ignorantes.

Os cientistas, que descobriram como construir o mercedes, também descuvriram a história dos seres vivos que nos antecedem. E compreenderam que não foram desenhados, que evoluiram gradualmente de acordo com as leis naturais.

Já podem ter chamado estúpido a quem compreendeu que a terra girava à volta do sol - «não se está mesmo a ver que é o contrário?». Pobre ignorância.

Se fossemos dar ouvidos aos ignorantes que acham que as leis naturais se podem deduzir dos seus palpites, nunca poderíamos contruir o mercedes. Mas eles não teriam razões para duvidar que a raposa tinha sido contruida por "alguém".

João Vasco disse...

Claudio Tereso:

Muitas pessoas notam o facto de que em Portugal a sociedade civíl é pobre, e que quase todo o activismo social gira em volta dos partidos.

A sua atitude, tão comum, ajuda a explicar este fenómeno.

Os ateus associarem-se? Que horror!!!

Enfim... realmente não consigo entender esta aversão pelas associações.

Ricardo Alves disse...

Francisco Múrias,
hoje vamos fundar a Associação Ateísta Portuguesa (livre-se de enviar lá a sua milícia...).

Só por isso, olhe, nem lhe respondo. Estude qualquer coisa. Por exemplo, os livros do Stephen Jay Gould publicados pela Gradiva.

Ateísmo.

Anónimo disse...

"A raposa e o Mercedes existem pela mesma razão, alguém os construiu."

Não necessariamente, uma vez que quanto à raposa não se evidencia nenhuma prova de que tenha existido qualquer causalidade concreta nesse produto. O simples equilíbrio bio-ecológico não o justifica. Ver causalidade intencional na formação da raposa é mera especulação.
O problema do debate, acerca do surgimento do Universo conhecido pela humanidade, não é o da impossibilidade de comprovar uma causalidade intencional nos factos científicos, que mesmo os seus defensores não tentam, justificando as suas posições com a simples assunção de que tem que ser assim (crença, fé), é o facto de que a impossibilidade em explicar cientificamente todas as questões humanas acerca do universo humano não significa que o universo tenha sido intelectualmente concebido. Isso significa apenas que o homem não sabe tudo. Não se podendo daí inferir que exista uma inteligência que saiba. Na verdade, a própria ideia de omnisciência é irrealizável logicamente, porque não se pode ter todas as experiências: a de comer suflê de peixe e depois gelado de sésamo e a de comer isso por uma ordem inversa, o que é diferente; ou a experiência de viver na Roma antiga e de presenciar a proclamação da República em França ou em Portugal...
Pascal liquida toda a possibilidade de conceber uma ideia de deus que não seja ilógica:
"Deus não pode conceber uma barreira que não possa transpor."
E está provada a impossibilidade lógica de uma ideia de divindade que inclua essas universalidades.



AL

Anónimo disse...

Correção:

onde se lê - "ou a experiência de viver na Roma antiga e de presenciar a proclamação da República em França ou em Portugal..." - eu quis antes dizer na mesma época viver duas realidades inconciliáveis.

Cláudio Tereso disse...

João vasco:
Baralhaste-me completamente!
Essa resposta era para mim?
Leste bem o que escrevi?

Verifica lá, sff :)

João Vasco disse...

Cláudio:

Fui verificar, e era este o texto ao qual respondi.

Pela leitura do texto deprendi que o Cláudio considera que a criação de uma associação é uma coisa desagradável, promotora do conflito, preferencialmente a evitar.
Censura a Igreja Católica por, com a sua postura para com os ateus, levar a que estes se associem, evento este que parece ser visto como "mau para todos".

Posso estar enganado na minha interpretação do texto, mas parece fazer eco da attude que tenho visto da parte de muitos ateus (e crentes moderados) face à ideia de criar esta associação.
A ideia de que isso envolve militância excessiva, conflito desagradável, de que "desnecessária".

Caramba, é uma associação. É apenas isso. Também não existe "necessidade" de uma "associação de pesca desportiva de Pedrogão Pequeno", mas isso não é razão para não se formar.

Mas esta ideia de que tem de haver "necessidade" ou de prever o pior para qualquer associação que se forme, ou de associar a pertença a uma associação a uma desmesurada militância numa causa (e não apenas numa identificação com ela e pouco mais) é realmente muito comum. Não tem nada a ver com ateísmo, tem a ver com uma atitude de desinteresse cívico.

E explica porque é que em Portugal a sociedade civíl é tão frágil.

Francisco Múrias disse...

Dentro de 5 milhões de anos um arqueólogo, com 100 patas e duas antenas na testa, vai descobrir peças de um Mercedes 320 de 1954 fossilizadas. Outro arqueólogo vai descobrir peças de um Mercedes 320 de 1974, outro, ainda, vai descobrir peças de um Mercedes 320 de 2004.Todos juntos , numa academia, vão apresentar a prova da verdade da teoria da evolução e da não existência do Homem.

Meia dúzia de sábios vão fundar a Associação Antihumanista Universal para erradicar de vez com a ignorância e a crença na existência do Homem

João Vasco disse...

Francisco Múrias, acredito que no futuro venham a pensar isso que diz.
Os sucessores daqueles que no passado diziam que a terra estava imóvel (como era óbvio, e vinha escrito na Bíblia) e que hoje dizem que é impossível as leis naturais explicarem a complexidade da Bíblia, sabe-se lá que crença falsa vão defender no futuro.
Uma coisa é provável: este grupo rejeitará as objecções que os cientistas sérios farão às suas propostas.

Cláudio Tereso disse...

joão,

Ok, Percebi-te, mas levas um bocado longe demais as tuas conclusões.
Não sou contra associações e se há pessoa interventiva na sociedade sou eu, não tenhas duvidas.

Sou ateu a 200% e associado de algumas associações culturais e desportivas.

Em relação à AAP acho que concordas que aparece muito por estarmos a ser "apertados" pela igreja. Se não o fossemos, não me parece que a associação aparecesse. Que achas?

Percebo que haja quem sinta a necessidade/vontade/interesse de criar uma AAP mesmo sem esse confronto e nada tenho contra isso. Mas, pela parte que me toca, só aderi à AAP porque sinto que vai haver necessidade de uma posição organizada na sociedade ou corremos o risco de se começar a instalar uma intolerancia como existe nos EUA.

Se não fosse essa situação, tinha tanto interesse em pertencer à AAP como em pretencer à "Associação da Malta que Gosta de Tomar Banho no Mar", e não há (quase) nada que me dê mais prazer que nadar no mar.

Francisco Múrias disse...

200 anos antes os fanáticos da crença no Homem tinham criado uma policia que prendia e queimava todos os que duvidavam da sua existência .Em nome da liberdade os que duvidavam fizeram uma revolução que procurava que apenas a razão poderia conduzir os destinos deste povo. Mataram e queimaram todos os que se lhes opunham.

Hoje não havia duvidas o Homem nunca tinha existido. Os Mercedes tinham evoluído naturalmente de um modelo para outro só e apenas pelo apetite que os átomos de ferro tinham de se juntar uns aos outros em formas cada vez mais evoluídas.

O Homem estava morto era preciso fazer o funeral.

João Vasco disse...

Cláudio Tereso:

ok. :)


Francisco Múrias:

Pense naquilo que a inquisição andou a fazer e naquilo que escrevi no comentário anterior, e perceberá que o último texto que escreveu apenas reforça o ponto de vista que expús.

Anónimo disse...

Fosca-se!É hora de agir e deixar de retóricas com os obscurantistas do qual o Abominável omem(sic!) das Neves faz parte!A puta que os pariu!Há que correr com estes filhos da puta que estão no Poder.Poder nas ruas já!Nacionalização da GALP e a corrida em osso aos ladrões que lá estão a especular com algo q foi compreado com preços de 4 anos atrás e,não com o preço de hoje para ao petróleo que vai ser gasto em 2016!!!!!

Filipe Castro disse...

Eu acho que o Dr. Cesar das Neves é um taliban. Ponto.

Ricardo G. Francisco disse...

Excelente artigo, em particular as respostas a JCN.