quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Daniel Dennet: «Concordo com o Papa»

«P. O papa disse na semana passada que a teoria de Darwin é “irracional” por sugerir que o mundo é um resultado acidental da evolução. Por que a Igreja Católica e outras religiões não aceitam a realidade empírica da evolução, que não necessariamente significa anular a hipótese de uma ordem divina?
D.D. A biologia evolucionista pode não anular a hipótese de uma ordem divina, mas isso porque ela é devidamente reticente quanto a essas implicações até que sejam não apenas provadas, mas também quase universalmente aceitas. Os que vêem tal implicação estão provavelmente certos. Eu concordo com o papa em uma coisa: há uma contradição substancial entre a doutrina cristã (católica, mas também protestante) e a biologia evolucionista, apesar do que alguns candidatos a diplomatas sugerem. É extremamente difícil encontrar algum sentido comum entre a integridade da ciência em geral e da Teoria da Evolução em particular e qualquer interpretação literal de qualquer um dos preceitos fundamentais da cristandade. O tipo de religião que é claramente compatível com a ciência contemporânea é um conjunto de doutrinas notavelmente sofisticadas e truncadas. Unitarianos, por exemplo, têm essa visão, mas muitos outros cristãos consideram suas visões como inconciliáveis com o ateísmo - e eu estou inclinado ac oncordar.
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P. O sr. acha que a religião hoje se incomoda mais com a ciência do que o contrário? Por quê? O que acha do conceito de “design inteligente”?
D.D. Depois de décadas de uma diplomacia complicada, que algumas vezes se transformou no que poderia ser chamado de hipocrisia, os cientistas estão começando a dizer em público o que há muito tempo acreditam em particular: não existe nenhuma maneira intelectualmente honesta de ciência e religião coexistirem. Os defensores do “design inteligente” estão certos quanto ao seguinte: se a teoria da seleção natural estiver correta (e suas credenciais hoje são tão seguras quanto as credenciais da teoria de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol), então as histórias tradicionais da criação nas religiões abrâmicas devem ser ou falsas ou inteiramente metafóricas. Como o “design inteligente” é um movimento evidentemente desesperado e intelectualmente fracassado, não surpreende que o atual turbilhão exista.
P. Pessoas que acreditam em Deus dizem que, como a humanidade não consegue explicar tudo nem distinguir cientificamente o certo e o errado, haverá sempre um campo para a religião, e que ela não pode ser racionalmente justificada. Qual é sua opinião?
D.D. É claro que não podemos explicar tudo - ainda. E é claro que não confiamos na ciência para distinguir o certo do errado. Mas a ciência pode explicar por que e como nós, seres humanos, desenvolvemos a competência de conceber o certo e o errado e de racionalizar sobre o que, consideradas todas as coisas, é a coisa certa a fazer; logo, ela pode explicar o fato de que apreciamos verdades que não são elas mesmas verdades científicas. A idéia de que a religião pode explicar o que a ciência não pode, decididamente, não tem base. A religião não pode explicar nada; esse não é seu papel. Dizer que a ciência não pode explicar a moralidade, e que portanto sempre haverá um campo para a religião, é um “nonsequitur” - como dizer que a ciência não pode explicar a poesia, logo sempre haverá campo para a música. Música é uma maravilha, mas não serve para explicar coisas - então não pode explicar a poesia, nem qualquer outra coisa. Tampouco a religião pode.
(...)
P. Em seu trabalho o sr. tenta superar a dicotomia entre determinismo e indeterminismo, entre explicação mecânica e responsabilidade moral. Se a mente é um subproduto do cérebro, ainda assim podemos reduzi-la a seus circuitos fisiológicos? O cérebro não é um sistema aberto que interage o tempo todo com a realidade exterior, logo não pode ser isolado em sua vida orgânica?
D.D. O cérebro é de fato aquilo que o cérebro faz, mas, se você tentar entender o que ele faz ao nível da fisiologia, nunca vai tirar um sentido disso - não mais do que pode explicar por que Deep Blue, em termos de eletrônica, é melhor no xadrez do que outros computadores que jogam xadrez. O que faz um sistema nervoso dominar espanhol e outro dominar inglês nunca será explicado simplesmente em termos de fisiologia. Os níveis mais altos em que se explicam essas competências são informacionais, não fisiológicos, embora sejam baseados em circuitos fisiológicos. Do mesmo modo, o fato de que o cérebro é um sistema em aberto é realmente importante. Mas um laptop também é. Meu laptop nunca encontrou um programa de texto japonês, mas ele poderia operar um sem a menor dificuldade. Sem revisões em sua arquitetura, ele poderia executar qualquer um dos trilhões de programas que ainda não foram escritos, da mesma maneira como meu piano pode, sem alteração nenhuma, ser usado para tocar uma infinidade de peças musicais ainda não compostas.
P. O sr. concorda com Steven Pinker quando ele diz, por exemplo, que a propensão masculina à infidelidade deriva de característica orgânica (a dispersão dos espermatozóides)?
D.D. O que acho é que a assimetria padrão entre macho e fêmea prevê, de fato, que osmachos sejam mais dispostos à infidelidade do que as fêmeas. Isso não significa que tal conduta seja a certa, mas significa que é “natural”
(Daniel Dennet em entrevista a O Estado de S. Paulo; recebido por correio electrónico.)

4 comentários :

João Moutinho disse...

"não existe nenhuma maneira intelectualmente honesta de ciência e religião coexistirem".
Não haverá aqui algum fundamento anti-religioso?
(Não estou a falar anticlerical.)
Porque razão a teoria evolucionista ou a mecânica quântica hão de colidir com a crença em "O Criador"?
E o "design inteligente" tão debatido e rebatido não servirá de arma de arremesso?
E o impulso que a Religião Hindu ou Islãmica trouxeram ás ciências?

João Moutinho disse...

Fundamento queria dizer fundamentalismo. Eu o que dá ser uma criatura falível.

Ricardo Alves disse...

João Moutinho,
não me parece que o Dennet esteja a ser anti-religioso. Está só a ser rigoroso: as mais fundamentais das crenças monoteístas são incompatíveis com a ciência. Penso, por exemplo, na ressurreição, na «criação» da espécie humana, ou no geocentrismo.
Quanto ao impulso que o hinduísmo e o Islão trouxeram às ciências, não sei bem qual foi...

Anónimo disse...

Pensadores islâmicos, nos primeiros séculos após Maomé, e antes de a religião se tornar progressivamente mais fechada, comunicaram a herança grega ao ocidente. Um fenómeno sociológico natural de movimentos em estado nascente (Alberoni): no início tudo é belo e não há contradições, ou são afastadas pelo ímpeto do entusiasmo.
Só que lá está, com o tempo o estado nascente passou a instituição (Alberoni) e fechou-se...