quarta-feira, 29 de março de 2006

A maré virou

A publicação do último livro de Francis Fukuyama («After the Neocons: America at the Crossroads»), no qual o teórico se distancia ostensivamente dos neoconservadores, originou vários artigos interessantes na imprensa anglo-saxónica. A causa imediata da deserção de Fukuyama é a ressaca da guerra do Iraque: à passagem do terceiro aniversário da invasão, já ninguém consegue defender seriamente que a utopia da implantação da democracia pelo método da invasão e da ocupação seja mais do que isso mesmo, uma utopia. O neoconservadorismo (descrito por alguém como «uma mistura de Sionismo, imperialismo petrolífero e honesta evangelização democrática») fica portanto exposto como mais uma das fantasias ideológicas que os Governos fazem circular em tempos de guerra para inspirar editoriais e entreter intelectuais.
Embora Fukuyama continue aparentemente a acreditar que a história das ideias políticas terminou em 1989, com o triunfo da «democracia liberal» (o islamismo não conta?), deixou portanto de ser um crente nas virtualidades das «guerras de conquista democrática» (o que leva a que diga, com alguma graça, que abandonou o «leninismo» dos neoconservadores mais ortodoxos mantendo-se «marxista»). Mas, mais uma vez, o convencimento de que se tinha descoberto as «leis naturais da História» serviu para legitimar guerra e miséria; ou seja: mais uma vez, a ideologia mostrou que pode ser uma forma de alienação.

3 comentários :

cãorafeiro disse...

ricardo:

excelente post.

muito interessante sobretudo se o analisarmos à luz da questão da responsabilidade dos intelectuais, daqueles que trabalham as ideias.

já os nazis tinham a escola de munique, de geopolítica e o lebensraum e por aí fora.

os americanos têm fukuyamas e huntingtons, legítimos sucessores de karl haushofer

Ricardo Alves disse...

«cãorafeiro»,
é uma questão que me preocupa: em que medida as ideologias criam alienação em vez de aclararem a maneira como vemos as coisas.
Sempre houve «filósofos da corte», prontos a produzir uma ideologia que justificasse a guerra, ou o Governo, ou etc. E ainda hoje há «filósofos da corte»...

dorean paxorales disse...

A BBC produziu no ano passado um documentário chamado "The Power of Nightmares", onde o autor pretende explicar as origens e evolução do conflito extremista.
A tese de Adam Curtis é a de que ambos os movimentos fundamentalistas, cristãos na América e muçulmanos no Médio Oriente, resultaram da recusa por alguns dos materialismos que se digladiavam na década de cinquenta (uma espécie de 'gémeos espirituais separados à nascença').

Assim, finda a Guerra Fria onde ambos os inimigos garantiam a fidelidade dos seus com sonhos de paraíso na Terra, retrocedemos para um mundo onde a disciplina é imposta pelo medo que os pesadelos de uma hipotética organização mundial de fanáticos possam inspirar.

A vêr, caso haja possibilidade.
http://www.archive.org/details/ThePowerOfNightmares