quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Cavacolândia, Vol. 1

Na tomada de posse, Cavaco Silva convida o Cardeal Patriarca para se sentar ao seu lado e insere uma fórmula religiosa no juramento da Constituição da República. A comunicação social trata o assunto como mero folclore.
Pouco mais de um mês depois, nas celebrações do 25 de Abril, Cavaco Silva impede que se toque o «Grândola, Vila Morena». Aos que apontam uma contradição com a campanha eleitoral, Cavaco Silva responde, com uma gargalhada, que se trata de uma canção que só faz sentido tocar no concelho alentejano referido no título.
Em Junho de 2006, Cavaco Silva aparece à porta da Vivenda Mariani com um cachecol da selecção da FPP, e berrando «Eu sei que Portugal pode vencer!». Sócrates anuncia imediatamente que concederá tolerância de ponto para cada um dos jogos dos «novos Viriatos». Porém, após a equipa de Scolari e Madaíl perder 1-0 com Angola e empatar sem golos com o Irão, os rumores de que metade da equipa faz excursões nocturnas a Amesterdão avolumam-se. Com o México, a FPF está a perder 3-0 quando se dá a segunda expulsão de um jogador português. O que resta da equipa agarra no árbitro e dá-lhe uma sova. No dia seguinte, os títulos dos jornais desportivos são «Portugal injustiçado» e «Arbitragens estragam Mundial».
Na semana seguinte, a Assembleia da República prepara-se para votar a despenalização do aborto quando o Presidente Cavaco afirma numa entrevista (e num tom agastado) que «as pessoas deviam preocupar-se em ter ideias para novas empresas em vez de se ocuparem de assuntos como esse». Ao contrário do que fora anunciado, o PS abstém-se na votação final.
Durante o Verão, torna-se claro que a Ota e o TGV são «grandes consensos nacionais», como se escreve num editorial do Expresso.
Chegados ao Outono, a Iberdrola alarga a sua influência na EDP. Alguns jornais citam «fontes de Belém» segundo as quais o Presidente estará «irritado» com a «ingenuidade» e a «incompetência» do Governo socialista.
Na mensagem de ano novo de 2007, Cavaco Silva afirma que o Hino Nacional, devido ao seu teor anti-britânico, «dificulta as relações económicas com a Inglaterra», e que portanto nomeou uma comissão para alterá-lo que será constituída por Maria Cavaco Silva, Zita Seabra, Paulo Teixeira Pinto, João Pedro Pais e Nicolau Breyner. Duas semanas depois, no Pavilhão Atlântico, perante uma plateia preenchida por criancinhas que agitam bandeiras verdes e vermelhas sincopadamente, Kátia Guerreiro ataca entusiasticamente as estrofes do «Hino de Portugal»:
Portugal, Nação sob Deus
(Não, não somos ateus)
Grandes descobridores
Povo de vencedores
Ninguém faz nada de mal
Do Minho até ao Funchal
Vamos todos gritar
"Portugal vai ganhaaaaar!"
À saída do espectáculo, um jornalista interroga Cavaco Silva sobre o casamento de homossexuais, ao que o Presidente começa a responder «o senhor Cardeal Patriarca já disse que...» quando é interrompido por Maria Cavaco Silva que, agarrada ao braço do marido, berra «...deviam ser todos queimados no Rossio». Nos dias seguintes, a imprensa entrega-se a um debate apaixonado sobre «o mito da Inquisição», que culmina com um dossiê do Público em que dois professores da Católica explicam que a única vítima do Santo Ofício foi um animal de estimação que morreu intoxicado com o fumo das piras. Embora não haja dúvidas de que o animal pertencia a um judeu, os historiadores debatem se seria um cão ou um gato. Entretanto, a revista Atlântico conclui que a responsabilidade pela Inquisição cabe inteiramente ao «politicamente correcto», ao «multiculturalismo» e aos intelectuais franceses.
(continua)

7 comentários :

Palmira F. da Silva disse...

Simplesmente delicioso :-)

Unknown disse...

Fantástico. Texto muito bem conseguido. Parabéns.
Fico à espera do próximo capitulo.

xatoo disse...

pareces o Brian dos Monthy Python quando foi raptado pela nave dos extraterrestres - chegou lá acima e viu tudo num relance. Rápido e certeiro!

Anónimo disse...

MAS A MARIA MERECE. . .




"De acordo Com O Correio da Manhã, Maria Monteiro, filha do antigo
ministro António Monteiro e que actualmente ocupa o cargo de adjunta do
porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros vai para a embaixada
portuguesa em Londres.

Para que a mudança fosse possível, José Sócrates e o ministro das Finanças
descongelaram a título excepcional uma contratação de pessoal
especializado.

Contactado pelo jornal, o porta-voz Carneiro Jacinto explicou que a
contratação de Maria Monteiro já tinha sido decidida antes do anúncio da
redução para metade dos conselheiros e adidos das embaixadas.

As medidas de contenção avançadas pelo actual governo, nomeadamente o
congelamento das progressões na função pública, começam a dar frutos.

Os sacrifícios pedidos aos portugueses permitem assegurar a carreira desta
jovem de 28 anos que, apesar da idade, já conseguiu, por mérito próprio e
com uma carreira construída a pulso, atingir um nível de rendimento mensal
superior a 9000 euros.

É desta forma que se cala a boca a muita gente que não acredita nas
potencialidades do nosso país, os zangados da vida que só sabem criticar a
juventude, ponham os olhos nesta miúda.

A título de curiosidade, o salário mensal da nossa nova adida de imprensa
da embaixada de Londres daria para pagar as progressões de 193 técnicos
superiores de 2ª classe, de 290 Técnicos de 2ª classe ou de 290 Assistentes
Administrativos.

O mesmo salário daria para pagar os salários de, respectivamente, 7, 10 e
14 jovens como a Maria, das categorias acima mencionadas, que poderiam
muito bem despedir-se, por força de imperativos orçamentais.

Estes jovens sem berço, que ao contrário da Maria tiveram que submeter-se a
concurso, também ao contrário da Maria já estão habituados a ganhar pouco e
devem habituar-se a ser competitivos.

A nossa Maria merece.

Também a título de exemplo, seriam necessários os descontos de IRS de 92
portugueses com um salário de 500 Euros a descontar à taxa de 20%.

Novamente, a nossa Maria merece."

Anónimo disse...

O texto está fantástico, está ridiculamente parecido com a realidade.
Já agora o comentário acima também está excelente, desconheço o caso mas não se me afigura grande surpresa a sua confirmação.

"É desta forma que se cala a boca a muita gente que não acredita nas
potencialidades do nosso país, os zangados da vida que só sabem criticar a juventude, ponham os olhos nesta miúda."

:)

João Vasco disse...

O artigo está delicioso

Anónimo disse...

A realidade ultrapassará a ficção?