sexta-feira, 27 de maio de 2005

«Quem me dera aquele ateísmo antigo»

«"Não acreditar em Deus não é desculpa para alguém ser visceralmente anti-religioso ou ingenuamente a favor da ciência", diz Dylan Evans, um palestrante sobre robótica da Universidade de West England em Bristol.
Evans escreveu um artigo de opinião para The Guardian, de Londres, ridicularizando o ateísmo obsoleto do "século 19" de pensadores ilustres como Richard Dawkins e Jonathan Miller, propondo em seu lugar um ateísmo novo, moderno, que "valorize a religião, trate a ciência como simples meio para um fim e descubra o significado da vida na arte". Na verdade, diz ele, a própria religião deve ser compreendida como "uma espécie de arte que só uma criança tomaria como real e só uma criança rejeitaria como falsa". A posição de Evans se ajusta com perfeição à daquele filósofo da ciência americano, Michael Ruse, cujo novo livro, The Evolution-Creation Struggle (Harvard University Press, 2005), deposita boa parte da culpa para o crescimento do criacionismo na América - e para as tentativas cada vez mais estridentes da direita religiosa para ejetar a teoria evolucionista do currículo e substituí-la pelo novo dogma do "plano inteligente" - na porta dos cientistas que tentaram competir com a religião e até mesmo suplantá-la. Apesar de evolucionista convicto, ele é, contudo, um crítico contundente de gigantes modernos como Dawkins e Edward O. Wilson.
O "ateísmo light" de Evans, que tenta negociar uma trégua entre visões de mundo religiosas e não religiosas, é tão facilmente desmontável quanto os blocos de construção de brinquedo com os quais, ele de maneira reveladora nos diz, essas idéias deveriam ser construídas: "O ateísmo devia ser mais como um conjunto de blocos de Lego do que como um brinquedo pré-montado." Essa trégua só teria chance de funcionar se fosse recíproca - se as religiões mundiais aceitassem valorizar a posição do ateu e reconhecer sua base ética, se elas respeitassem as descobertas e conquistas da ciência moderna, mesmo quando essas descobertas desafiam santidades religiosas, e se aceitassem que a arte, no que ela tem de melhor, revela os múltiplos significados da vida ao menos tão claramente quanto os textos dito "revelados". Não existe um acordo recíproco como esse, porém, nem tampouco a menor chance de que semelhante acomodação possa ser alcançada.
Entre as verdades consideradas evidentes por si mesmas pelos seguidores de todas religiões está a de que o não-reconhecimento da divindade é equivalente à amoralidade e a ética requer a presença sustentadora de algum tipo de árbitro supremo, alguma espécie de absoluto sobrenatural sem o qual secularismo, humanismo, relativismo, hedonismo, liberalismo e toda a sorte de impropriedades permissivas inevitavelmente atrairão o infiel para caminhos imorais. Para aqueles de nós que estão perfeitamente preparados para tolerar os vícios acima, mas ainda se acreditam seres éticos, a posição de que a descrença na divindade equivale à imoralidade é muito dura de engolir.
Tampouco o comportamento corrente da religião organizada desperta confiança na atitude de laissez-faire de Evans/Ruse. Em toda parte, a educação está sendo seriamente ameaçada por ataques religiosos. Nos últimos anos, nacionalistas hindus na Índia tentaram reescrever os livros de História do país em respaldo à sua ideologia antimuçulmana, um esforço que só foi frustrado pela vitória eleitoral de uma coalizão secularista liderada pelo Partido do Congresso. Enquanto isso, vozes muçulmanas em todo o mundo - na Turquia, a criacionista islâmica BAV,de Bilim Arastirma Vakfi ou Fundação para a Pesquisa Científica, é um exemplo clamoroso - alegam que a teoria evolucionista é incompatível com o Islã.
E nos Estados Unidos a batalha sobre o ensino do plano inteligente em escolas americanas atinge um ponto crítico no momento em que a União para as Liberdades Civis Americana se prepara para levar os proponentes do plano inteligente a um tribunal da Pensilvânia.
Parece inconcebível que um melhor comportamento por parte dos grandes cientistas mundiais, do tipo que Ruse gostaria, seria capaz de persuadir essas forças a recuar. O plano inteligente, idéia elaboradade trás para diante para forçar a velha idéia de um Criador na beleza da criação, está tão solidamente enraizada na pseudociência, tão cheia de falsa lógica e é tão fácil de atacar que parece demandar um pouco de severidade.
Seus defensores argumentam, por exemplo, que a absoluta complexidade e perfeição de estruturas celulares/moleculares é inexplicável pela evolução gradual. No entanto, as múltiplas partes de sistemas biológicos complexos e entrelaçados evoluem juntas, gradualmente se expandindo e se adaptando - e, como Dawkins mostra em O Relojoeiro Cego (1986), a seleção natural age em cada etapa desse processo.
No entanto, assim como os argumentos científicos, há outros que são mais, bem... novelísticos. Que tal o plano malfeito, por exemplo? Teria sido assim tão inteligente inventar um canal natal ou uma próstata? Depois, há o argumento moral contra um planejador inteligente que amaldiçoou suas criações com câncer e aids. Seria o planejador inteligente amoralmente cruel também? Ver a religião como"uma espécie de arte", como Evans candidamente propõe, só é possível quando a religião está morta ou quando, como a Igreja da Inglaterra, ela se tornou um conjunto de rituais polidos. A velha religião grega vive como mitologia, a velha religião nórdica nos deixou os mitos nórdicos e, sim, agora os podemos ler como literatura.
A Bíblia contém grande literatura também, mas as vozes literalistas do cristianismo se tornam cada vez mais altas e é duvidoso que elas recomendariam a abordagem de livro infantil de Evans. Enquanto isso,as religiões continuam atacando seus artistas: pinturas de artistas hindus são atacadas por rebeldes hindus, peças sikhs são ameaçadas pela violência sikh e romancistas e cineastas muçulmanos são ameaçados por fanáticos islâmicos com um vigoroso não-reconhecimento de qualquer parentesco.
Se a religião fosse um assunto privado, as pessoas poderiam facilmente respeitar o direito de seus crentes a buscar seus confortos e sua nutrição espiritual. Mas a religião é hoje um grande negócio público, usando uma organização política eficiente e tecnologia da informação de ponta para promover seus fins. As religiões jogam duro o tempo todo, mas pedem em troca um tratamento com luvas de pelica.
Como Evans e Ruse fariam bem em admitir, ateus como Dawkins, Miller eWilson não são nem imaturos nem culpáveis por combater tais fanáticos. Eles estão fazendo uma coisa vital e necessária
(Este artigo de Salman Rushdie foi publicado originalmente no New York Times; reproduzo aqui a versão de O Estado de S. Paulo, 22/5/2005).

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