sexta-feira, 17 de abril de 2009

Qual é a cultura política do Estado português?

É inevitável que um Estado promova uma cultura política própria. Seria desejável que, em absoluto, não o fizesse, mas é necessário escolher currículos para o ensino secundário, dar nomes a ruas e pontes, e patrocinar eventos.

O actual regime democrático não apresenta uma cultura política marcadamente própria. Talvez por isso, recai frequentemente na cultura política do salazarismo. Quando se construiu uma nova ponte sobre o Tejo, deu-se-lhe o nome de um navegador de há cinco séculos; no Algarve, a principal estrada tem o nome de «Via do Infante» (D. Henrique); recentemente, a TV pública produziu e emitiu uma série sobre o galã António Salazar; e agora, temos o patrocínio das mais altas figuras do Estado à «canonização» do cavaleiro medieval Nuno Álvares Pereira. Estes heróis são alguns dos heróis do Estado Novo. São aqueles que os gurus da política cultural do salazarismo consideraram mais apropriados a uma ideologia estatal de nacionalismo, militarismo, catolicismo e autoridade. Evidentemente, as pessoas reais que foram Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira ou Vasco da Gama terão pouco que ver com a apropriação que a propaganda de um Estado totalitário fez deles séculos mais tarde. Mas têm uma relação ainda mais ténue com o actual Estado democrático e republicano.

Os cidadãos portugueses querem, penso eu, viver em liberdade com direitos garantidos constitucionalmente e desenvolvimento económico. Seria portanto mais lógico que a cultura política da democracia promovesse as figuras a quem devemos os princípios liberais das primeiras constituições, como Manuel Fernandes Tomás ou Mouzinho da Silveira, pensadores da liberdade como Alexandre Herculano ou Raul Proença, e políticos da democracia e da laicidade como o injustamente vilipendiado Afonso Costa ou o muito esquecido António Sérgio. Que os cadáveres de Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira e outras figuras medievais repousem em paz. O Portugal moderno, na prática, foi fundado por Sebastião José. E, para o futuro, penso eu que se o deseja mais à imagem de cientistas e democratas do que admirando os exemplos de santos e guerreiros sanguinários de um passado distante.

10 comentários :

Olhar Ateu disse...

Se a beatificação de Nuno de Santa Maria foi um acto claramente político, como ilustro, a sua canonização também o será.
Só que desta vez os interesses políticos em presença serão mais do lado do Vaticano, pelo que não se justifica o seu apadrinhamento por figuras institucionais.

Cordialmente

JDC disse...

Lá porque o Estado Novo se serviu dos Descobrimentos para cultura política isso não retira nem mérito nem importância a essa época da História portuguesa. Querer vetar isso para "coisa do passado" é um erro. Claro que isso não deve impedir de reconhecer o mérito na História portuguesa de figuras mais recentes...

Anónimo disse...

O que este post deveria perguntar é o porquê de a cultura política do estado português e do regime democrático não apresentar uma cultura política marcadamente própria.

E se esse post fizesse essa pergunta e se se quisesse ir até ao fundo da resposta provavelmente descobrir-se-ia que a "geração de democratas feitos a martelo" que emergiu após o 25 de Abril nunca quis que o Estado Português e o regime apresentasse uma cultura marcadamente própria.

As razões eram duas:
1-porque não sabiam como fazer.
2- porque não queriam fazer e sentiam-se confortáveis com a cultura que ainda vinha do Salazarismo.


É por essa razão que nunca existiram, por exemplo, nos currículos do ensino secundário disciplinas que ensinassem o que era civismo e cidadania, mas dentro de um regime democrático.


Porque formar cidadãos com ideias cívicas e de cidadania, foi algo que nunca interessou a este regime actual, nem aos políticos que dele emergiram especialmente os que se apelidam de ser de esquerda.


E o resultado está à vista: sondagens que dão 34% de cidadãos a pensar votar em eleições e canonizações de guerreiros medievais, como sendo os tópicos da pátria e as grandes discussões a ter.


Portanto sem pretender chatear quem fez o post, mas isto é uma forma de fazer batota: não é perguntar "qual a cultura",mas sim perguntar "porque é que é esta a cultura" que interessa perguntar.

dorean paxorales disse...

canonizar o costa, isso é que era.

Ricardo Alves disse...

JDC,
sem dúvida que os descobrimentos não perdem mérito por terem sido utilizados pelo Salazarismo. Mas, mesmo os «descobrimentos» são sempre centrados nos donos das caravelas, e não nos cientistas e técnicos que permitiram que Portugal tivesse realmente uma vantagem face a outros povos. E acha que faz sentido insistir quase exclusivamente nos «descobrimentos» quando as colónias já foram?

Vivemos numa democracia constitucional e não num reino medieval.

Ricardo Alves disse...

«O que este post deveria perguntar é o porquê de a cultura política do estado português e do regime democrático não apresentar uma cultura política marcadamente própria.»

É uma excelente pergunta que complementa o que eu tentei escrever.

Pessoalmente, estou convencido de que um factor importante foi que os políticos que subiram ao poder a partir de 1975 andavam pelos 50 anos. Já tinham ido à escola primária no Estado Novo. A cultura cívica democrática tinham-na aprendido (se tinham...) por via familiar ou nos partidos da oposição (e, na oposição, a cultura hegemónica era a comunista, que também não era propriamente um modelo para democratas...).

Anónimo disse...

O regime de Portugal tem uma grave doença que precisa de ser diagnosticada

Tenho reflectido sobre os rumos da democracia em Portugal e cheguei à conclusão de que o problema é que se trata de uma enfermidade não diagnosticada, ou um diagnóstico feito mas não reconhecido pelas gentes.

Portugal, desde há pelo menos 200 anos, passou de país colonizador a país colonizado, submetido por várias potências: primeiro a Grã-Bretanha, depois pelos países ricos da UE, com participação dos EUA.

Tudo se pode compreender melhor, incluindo a enorme quantidade de corrupção e falta de vergonha da classe política, se virmos este país como uma vulgar neo-colónia, seja do continente sul -americano, seja africano.

De facto, esses países têm (ou tiveram) regimes que até podem ser formalmente democráticos, mas onde uma pequena oligarquia manda, usando políticos corruptos para fazer o jogo da representação emanter assim o povo quieto.

Gostava de escrever um livro para fundamentar melhor e tornar mais popular esta tese. Preciso de colaborações sobre o assunto.

Escrevam-me:manuelbap@yahoo.com

Agradeço qualquer apoio que queiram dar-me.

Solidariedade,
Manuel Baptista

Ricardo Alves disse...

Dorean,
esse seria um passo importante para a ICAR se reconciliar com a República. ;)

Unknown disse...

Caro Prof.

Portugal deveria fazer juz a figuras históricas de combate ao fascismo ainda tão próximo e tão cúmplice em S. Bento ainda hoje, como: Palma Inácio e o assalto na Figueira da Foz (lembremos LUAR), ou o sequestro do avião da TAP para Casablanca em 1961, Henrique Galvão e o desvio do paquete Santa Maria, que foram actos muito corajosos, dos quais as minhas aulas de História na universidade ficam muito aquém, assim vai a educação e cultura no nosso país, tenho muita pena de não aprender o artigo 21.º da CRP ;))

Anónimo disse...

é certo que essas (enunciadas no último parágrafo) figuras merecem muito mais destaque e consagração do que têm tido. E que são os meus ídolos...
De qualquer forma, acho que é injusto associar este Governo aos heróis fabricados pelo Estado Novo, que obviamente não são os seus. Desde logo, porque esses exemplos não são da responsabilidade deste Governo.
E depois, porque todo o resto do que tem sido edificado, dito e escrito, tem o tom do republicanismo que só o PS quis e soube herdar.

um outro Anónimo