quinta-feira, 5 de maio de 2005

As contradições do «não», «non», «no», «nein» e do mais que haja

Existem várias razões, e até contraditórias, para se ser contra o Tratado constitucional europeu. Dependendo do posicionamento político de cada um (esquerda/direita, democrata representativo/democrata participativo, soberanista/federalista, social-democrata/liberal, etc.) pode rejeitar-se o Tratado por motivos não apenas diferentes, mas mesmo opostos.
Eu, por exemplo, acho que o Tratado não é laico por incluir o artigo I-52, mas alguns católicos portugueses já argumentaram que o mesmo Tratado é uma afronta laicista por não incluir uma referência à divindade no Preâmbulo (como esses católicos convivem com o Preâmbulo da CRP é algo que gostaria de compreender...). Estas disparidades são ainda mais visíveis quando se observa o debate sobre o Tratado em diferentes países. Na França, o Tratado é considerado economicamente liberal e portanto as críticas vêm sobretudo da esquerda. No Reino Unido, a UE é vista como suspeita de regulamentar demais, e não é por acaso que a maior parte da oposição politicamente organizada vem da direita (note-se a posição intransigente dos conservadores). O número e as variações destas contradições aumentam quando se multiplica o número de países em que se oberva o debate sobre o Tratado.
Já o «sim»/«oui»/«yes»/«si»/«ja» é mais fácil. Resigna-se a aceitar o Tratado como o equílibrio possível entre países que têm histórias nacionais, culturas políticas e consensos internos mais diferentes do que aquilo que geralmente se assume. E alimenta-se da esperança de que existe um futuro luminoso potenciado por uma união renitente embora também contraditória nas razões do assentimento das partes.
Existem portanto alguns para quem o «bem comum» de um «povo europeu» que não existe nem existirá é mais importante do que o «bem comum» da comunidade nacional. Mesmo para esses, mais tarde ou mais cedo põe-se a questão de saber se se pode atingir o tal «reino de Deus»/«amanhã que canta» comprometendo, de caminho, os princípios em que acreditam.

Laurent Fabius entra na batalha

Laurent Fabius, o dirigente de topo do PSF que, no referendo interno deste partido, fora o principal defensor do «não» ao Tratado constitucional, começa agora a romper o silêncio que se impusera. A escolha do momento é óbvia: as últimas sondagens dão o «sim» em subida, já dentro da margem de erro dos fatídicos 50%. As razões para Fabius se ter mantido silencioso quando outros dirigentes do PSF (como Henri Emmanuelli) partiram em campanha pelo «não», essas poderão estar relacionadas com as suas ambições presidenciais. Juntando-se tão tarde à campanha, Fabius aparece como o mais centrista dos defensores do «não» de esquerda, num contexto em que quase toda a esquerda francesa (trotsquistas, comunistas, republicanos, metade dos ecologistas e metade dos socialistas) se encontra em campanha pelo «não».

Finalmente, juízo?

Jorge Coelho já parece ter percebido que o Parlamento serve para legislar, e que isso é verdade mesmo no caso da interrupção voluntária de gravidez. Só espero que, a haver votação, não se volatilizem os votos afirmativos na bancada do PS. É que um terço da bancada poderá ser católica. Cheira-me a isso...

terça-feira, 3 de maio de 2005

Laicidade lusófona (7): Portugal

(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.
6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.
(...)
(Liberdade de aprender e ensinar)
(...)
2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
3. O ensino público não será confessional.
(...)
(Limites materiais da revisão)
As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
(...)
b) A forma republicana de governo;
c) A separação das Igrejas do Estado;

Ao Parlamento o que é do Parlamento

Descriminalizem a interrupção voluntária de gravidez no Parlamento. É para isso que servem os Parlamentos: para legislar. As tergiversações de ontem são mais um adiamento de uma questão que deveria ter sido resolvida parlamentarmente em 1998, há já sete anos. Os referendos, por princípio, não deveriam ser sobre questões de direitos individuais e/ou de consciência (sobre Tratados internacionais, claro que sim).
Porque será que não se despacham? Falta de coragem?

segunda-feira, 2 de maio de 2005

Revista de imprensa (2/5/2005)

  1. Na última The New Republic, uma crítica implacável das derivas clericais do Partido Republicano feita por Andrew Sullivan. O artigo é curiosíssimo por distinguir o «conservadorismo de fé» (que denuncia) do «conservadorismo de dúvida» (que defende). É evidente que o autor escreve a partir de um ponto de vista de direita, conservador e norte-americano que não partilho. Mas, justamente por isso, é divertido constatar que até nessas paragens improváveis se pode encontrar alguém horrorizado com a cruzada moral que tomou conta dos EUA. Um excerto das conclusões: «What has to endure is not merely a reformed liberalism that can one day take government away from its current masters, but rather a conservatism that does not assent to its own corruption at the hands of zealots. This doesn't mean hostility to religion. It means keeping religion in its safest place--away from the trappings of power. And it means keeping politics in its safest place--as the proper arrangement of our common obligations, and not as a means to save or transform our lives and souls. If we are fighting such a conservatism of faith abroad--and that is the core of the war on Islamist terrorism--then why should it be so hard to confront it in much milder forms at home?»
  2. Como já disse, os artigos de Hélio Schwartsman na Folha de São Paulo são imperdíveis. O último intitula-se «O Papa Ratzinger».

Maioria absoluta duvidosa para Blair

A maioria parlamentar do Partido Trabalhista de Tony Blair nas eleições de quinta-feira poderá estar por um fio. As sondagens dos últimos dias tanto dão o diferencial Trabalhistas-Conservadores em quarto minguante como em quarto crescente. Tendo em conta que o sistema eleitoral britânico (uninominal sem exigência de maioria em cada círculo eleitoral) torna o resultado global muito sensível a pequenas variações locais, neste momento é impossível apostar em qual dos três cenários possíveis se realizará, por ordem de probabilidade: (i) maioria absoluta trabalhista; (ii) maioria relativa trabalhista; (iii) maioria relativa conservadora.
Uma maioria absoluta conservadora é pouco provável, até porque o PIRU (Partido da Independência do Reino Unido) poderá tirar votos aos conservadores em alguns círculos eleitorais.
Tory Blair está em dificuldades principalmente devido ao seu papel na guerra do Iraque, que levará muitos votantes tradicionais dos trabalhistas a absterem-se ou a votarem nos liberais-democratas. Aliás, Billy Bragg apela a que se vote nos «lib-dems» apenas onde isso não possa recompensar os Tories, e Glenda Jackson, uma trabalhista, pede que a elejam para que possa combater Blair no Parlamento. Polly Toynbee acha que a desideologização da Terceira Via impede as pessoas de reconhecerem o que os trabalhistas têm feito de positivo. Saudavelmente, os jornais reino-unidenses assumem as suas preferências partidárias em editoriais.

Laicidade lusófona (6): Timor Leste

Preâmbulo
(...)
Na sua vertente cultural e humana, a Igreja Católica em Timor-Leste sempre soube assumir com dignidade o sofrimento de todo o Povo, colocando-se ao seu lado na defesa dos seus mais elementares direitos.
(...)
Interpretando o profundo sentimento, as aspirações e a fé em Deus do povo de Timor-Leste;
Reafirmam solenemente a sua determinação em combater todas as formas de tirania, opressão, dominação e segregação social, cultural ou religiosa,
(...)
Artigo 11.º
(Valorização da resistência)
(...)
2. O Estado reconhece e valoriza a participação da Igreja Católica no processo de libertação nacional de Timor-Leste.
(...)
Artigo 12.º
(O Estado e as confissões religiosas)
1. O Estado reconhece e respeita as diferentes confissões religiosas, as quais são livres na sua organização e no exercício das actividades próprias, com observância da Constituição e da lei.
2. O Estado promove a cooperação com as diferentes confissões religiosas, que contribuem para o bem-estar do povo de Timor-Leste.
(...)
Artigo 45.º
(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. A toda a pessoa é assegurada a liberdade de consciência, de religião e de culto, encontrando-se as confissões religiosas separadas do Estado.
2. Ninguém pode ser perseguido nem discriminado por causa das suas convicções religiosas.
3. É garantida a objecção de consciência, nos termos da lei.
4. É garantida a liberdade do ensino de qualquer religião no âmbito da respectiva confissão religiosa.