sexta-feira, 17 de outubro de 2025

As Razões da Capitulação

Reproduzo mais um texto publicado na página da TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo para cuja redacção contribuí:


Terminámos um texto recente sobre o acordo entre a União Europeia e os EUA com a frase “Importa perguntar aos nossos representantes na UE porque é que haveremos de querer financiar as políticas de Donald Trump.”

Em resposta a esta questão, muito se tem escrito que a UE não estava em condições de obter termos melhores. Frequentemente, a razão apresentada prende-se com o défice comercial que os EUA mantém na sua relação comercial com a UE. Importa explicar esta razão, demonstrar que se trata de um equívoco, e apresentar aquela que parece ter sido a verdadeira causa desta capitulação. 

Tem-se dito que, do ponto de vista económico, os EUA partiam para estas negociações comerciais em circunstâncias favoráveis, tendo em conta o saldo comercial deficitário que mantêm com a UE. Sabemos que, em última análise, se as taxas aduaneiras de ambos os lados do Atlântico subirem consideravelmente, isso prejudicará os produtores europeus muito mais do que os produtores americanos. E geralmente a análise acaba aí. Sendo este o panorama, seria de esperar que a UE fizesse mais cedências que os EUA para evitar que o conflito fosse levado às últimas consequências.

Claro que, precisamente pela mesma razão, o dito défice comercial americano, se as taxas aduaneiras de ambos os lados do Atlântico subirem consideravelmente, isso prejudicará os consumidores americanos muito mais do que os europeus.

não terão sido razões negociais na arena económica aquelas que motivaram esta verdadeira capitulação

Em circunstâncias normais, os custos políticos de prejudicar os produtores podem ser muito mais severos do que os de prejudicar os consumidores, visto que o forte prejuízo aos produtores se traduz em desemprego, e o forte prejuízo aos consumidores se traduz em inflação. Enquanto no primeiro caso os danos são concentrados em poucas vidas absolutamente devastadas pela mudança, que facilmente alteram o seu sentido de voto em resultado da tragédia, no segundo caso o dano económico é distribuído o suficiente para que ninguém altere o seu sentido de voto.

No entanto, importa olhar para o panorama político específico. É bem sabido que o tema principal nas últimas eleições americanas à escala federal foi a inflação. É bem sabido que Trump ganhou as eleições sob a promessa não apenas de baixa inflação, mas sim de inflação negativa (reduzir os preços). Isto já em si cria uma vulnerabilidade política significativa.

Por outro lado, e ainda mais importante, o que condiciona os votos dos eleitores não são apenas os problemas que sofrem, mas a forma como os atribuem, ou não, aos responsáveis políticos. Mesmo que a inflação sofrida em resultado de taxas aduaneiras elevadíssimas dos dois lados do Atlântico fosse igual (e a relação comercial deficitária dita não ser esse o caso, sofrendo a UE menos que os EUA), o custo político dessa inflação seria muito diferente, precisamente porque todos identificariam tais taxas aduaneiras como resultando de uma agressão unilateral por parte de Donald Trump. Assim, enquanto os eleitores americanos culpariam Trump pela escalada dos preços, o mesmo não aconteceria com os eleitores europeus. E neste contexto, podemos dispensar a especulação, basta olhar para o Brasil ou para a Índia onde a popularidade dos governantes aumentou significativamente na sequência da guerra comercial.

Isto significa que, não só a UE não estava numa situação de fragilidade negocial do ponto de vista económico, como, bem pelo contrário, estava numa situação de força invejável. Se ambas as taxas aduaneiras subissem de forma muito considerável, os danos políticos sofridos por Trump seriam muito superiores aos danos políticos (se alguns, porque a avaliar pelos casos análogos estaríamos na presença de benefícios políticos) sofridos pelos líderes políticos europeus. Parece pouco crível (e tem gerado muita perplexidade) que os responsáveis políticos europeus não tenham feito tal análise, pelo que podemos concluir que não terão sido razões negociais na arena económica aquelas que motivaram esta verdadeira capitulação

Estas negociações comerciais deixaram portanto de poder ser enquadradas exclusivamente no plano comercial e político

Mais relevantes e informativas foram algumas declarações afirmando que o apoio americano dado à Ucrânia, no contexto do seu conflito militar com a Federação Russa, teriam sido uma razão decisiva por parte dos líderes europeus. Uma viragem de 180º por parte dos EUA, semelhante à ocorrida na sequência da infame visita de Volodomyr Zelensky à Casa Branca, poderia, no pior dos casos, causar o colapso da Ucrânia, no melhor dos casos prolongar o conflito mais do que o necessário; e qualquer das hipóteses terá assustado os líderes europeus, que terão tentado “ganhar tempo”.

Estas negociações comerciais deixaram portanto de poder ser enquadradas exclusivamente no plano comercial e político, tendo também de ser enquadradas no plano mais amplo da segurança europeia. Uma situação particularmente delicada tendo em conta que os EUA são hoje uma forte e perigosa ameaça à segurança europeia, tal como as ameaças à integridade territorial da Dinamarca terão clarificado, caso a vastidão de indícios anteriores não tivesse sido suficientemente elucidativa. Para que a Europa possa definir a sua política comercial de forma soberana, urge reduzir ao máximo a sua dependência militar dos EUA, alcançando o máximo de autonomia em matéria de segurança.

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