Considero as disputas políticas entre a esquerda e a direita como sendo mesmo muito importantes. Se quisermos olhar para a razão pela qual, nos últimos 40 anos, a humanidade foi incapaz de garantir que o impacto ambiental da actividade económica fosse minimamente sustentável (agravando para lá do limiar do aceitável a ameaça existencial que o aquecimento global representa, entre outros problemas), a razão pela qual a Democracia e o Estado de Direito têm estado em retrocesso na última década, ou porque é que as desigualdades de rendimento e património se agravaram tanto dos países ocidentais, enquanto o salário mediano dos trabalhadores praticamente estagnou constituindo agora uma proporção muito menor da sua produtividade, a deriva de direita das últimas 4 décadas que tenho vindo a referir neste espaço é uma das razões mais importantes.
No entanto, se a nossa preocupação for explicar o atraso de Portugal face a outros países da UE e encontrar a melhor forma de superar esse atraso, o debate entre esquerda e direita terá muito pouca relevância. A nível ideológico, Portugal apresenta poucas diferenças face aos outros países da UE, está sensivelmente à direita de metade, está sensivelmente à esquerda de outra metade. O peso do estado na economia está muito próximo da média europeia, e se o número de funcionários públicos hoje está um pouco abaixo da média europeia, a verdade é que já chegou também a estar um pouco acima. A estrutura fiscal de Portugal não é radicalmente diferente e a legislação laboral também não. Portugal era um dos países com maior desigualdade de rendimento, mas também um dos países com maior atraso no domínio da instrução; esse hiato ao nível da instrução está a fechar e isso tem atenuado a diferença entre as desigualdades de rendimento em Portugal e as que existem no resto da UE. Portugal não se destaca pelo tipo de serviços públicos que oferece e o financiamento destes serviços é perfeitamente típico atendendo ao rendimento do país. Não podemos explicar o atraso português com "o socialismo" nem com "o liberalismo".
Claro que Portugal tem à partida, algumas desvantagens que poderiam afectar a nossa produtividade e por conseguinte o nosso desenvolvimento: posição geográfica periférica, condições menos propícias para a agricultura, etc. Mas Portugal também tem importantes vantagens, por ser um país costeiro e solarengo com uma latitude muito apetecível. Muitos portugueses sentem que Portugal é um país aquém do seu potencial, e creio que com razão.
É comum que Portugal esteja, entre os países desenvolvidos, entre aqueles onde existe maior percepção de corrupção, mas será que essa percepção corresponde à realidade? Existem alguns indícios de que sim, mas eu queria centrar-me num indício que me parece muito importante: a forma como o eleitorado português e a classe política lidam com este problema.
Num sistema democrático funcional, duas coisas tenderiam a ocorrer: por um lado existiria um consenso que ultrapassasse as divergências ideológicas de que a corrupção é um mal a combater e quem o quiser fazer com propostas concretas e exequíveis merece ser aplaudido, e que cabe à classe política dar as condições ao sistema de justiça para identificar e punir os crimes de corrupção com eficácia, bem como definir os crimes de corrupção de forma a garantir que não se pode "corromper legalmente". Como qualquer partido ou força política que fizesse propostas concretas e consequentes para combater o problema da corrupção seria beneficiado eleitoralmente, os maiores partidos, nos seus naturais esforços para aumentar a sua votação, já teriam feito um conjunto de propostas consequentes e adequadas para resolver este problema. Por outro lado, também existiria um consenso de que a denúncia fundamentada de grosseiros conflitos de interesses, fortes indícios de corrupção ou até mesmo de actos corruptos seria legítima e deveria dar lugar a maior escrutínio. Seria natural que um grande partido fosse penalizado eleitoralmente se figuras cimeiras fossem culpadas ou indiciadas, coadunando-se a dimensão do dano eleitoral com a força dos indícios em causa e a gravidade do acto em questão. Isto iria encorajar os maiores partidos a evitarem ao máximo estar associados a situações deste tipo, o que os levaria a serem particularmente cuidadosos e a fazerem as maiores diligências para prevenir situações desse tipo. Uma "lealdade clubística" que levasse as pessoas a não ajuizar adequadamente as acções dos seus camaradas seria social e eleitoralmente penalizada.
Aquilo que não poderia ter lugar seria o seguinte:
-uma proporção relativamente elevada dos eleitores ter uma atitude excessivamente cínica perante a relação entre os actores políticos e a corrupção, afirmando serem "todos iguais". Uma disposição deste tipo prejudica os políticos com mais vontade de atacar este problema, acabando por beneficiar em primeiro lugar os actores políticos mais corruptos.
-uma proporção relativamente elevada dos eleitores mais informados ter uma atitude excessivamente displicente face ao problema da corrupção; ou até mesmo pedante, acusando de populismo (palavra invariavelmente usada com a mais negativa das conotações possíveis) todos aqueles que manifestem vontade de atacar este problema.
Seria à partida de esperar que uma sociedade onde prevalecessem os dois comportamentos acima fosse vítima de um grave problema de corrupção, uma vez que os dois comportamentos acima resultam num atrofio do "sistema imunitário" da Democracia, necessário para evitar que a questão da corrupção assuma uma gravidade excessiva. Ora é exactamente isso que acontece em Portugal.
A generalidade das elites portuguesas ignora ou ataca qualquer tentativa de dar destaque ao problema do combate à corrupção e aqueles que mais rejeitam as elites reagem com um cinismo que equipara todos os políticos e protege os mais mais corruptos. A situação não poderia portanto ter deixado de se agravar sucessivamente.
A questão da corrupção acabou por ser aproveitada pela extrema direita, algo que só se tornou inevitável pela escolha das elites nacionais de ignorar o problema, o que é particularmente irónico. Tipicamente, é de esperar que aos partidos maiores e mais poderosos estejam associados mais casos e indícios de corrupção, irregularidades e conflitos de interesse. Acontece que o partido de extrema direita português mais mediatizado, apesar da sua ínfima dimensão, está já associado a várias situações deste tipo. O partido que mais fala sobre corrupção é aquele que tudo indica ser aquele com maior "densidade de corrupção". Isto significa que não lidar devidamente com este problema já não tem apenas como consequência o impacto negativo no nosso desenvolvimento e na convergência com o resto da UE: também pode pôr em risco a Democracia.
Assim, é absolutamente necessário, para a saúde da Democracia, alterar radicalmente esta situação. As eleições presidenciais podem dar uma oportunidade de o fazer.
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