Quando os sistemas ISDS surgiram, eles não permitiam o tipo de “assaltos” às finanças públicas de governos interessados em proteger o ambiente, a saúde pública, os direitos laborais ou outros valores fundamentais que viemos a conhecer nas últimas décadas.
Ao invés, os tratados limitavam-se a salvaguardar o investidor estrangeiro em caso de expropriação (directa e arbitrária) sem devida compensação. Subjacente à ideia estaria a noção de que, mesmo que as leis do país oferecessem protecções à propriedade privada que deixassem o investidor confortável, este não poderia contar com os tribunais desse país para aplicar essas mesmas leis, na medida em que a independência dos mesmos não estaria assegurada. O tribunal poderia estar sujeito ao poder executivo, o que deixaria o investidor sem adequado recurso e sujeito à arbitrariedade do governo.
Nestas circunstâncias, o investidor abdicaria de investir, o que seria supostamente pior para o país em causa. Para evitar esta situação, o país assinaria um acordo internacional que garantiria uma forma de indemnizar o investidor em caso de arbitrariedade grosseira, sendo que a avaliação dessa situação não estaria nas mãos do governo ou do poder legislativo, mas sim de uma terceira parte que faria cumprir adequadamente o acordo - tipicamente três árbitros pagos ao caso, um escolhido por uma parte, outro pela outra e um terceiro de comum acordo.
Sabemos como é que a história continuou, movida pelo conflito de interesses no cerne do sistema: os árbitros, por serem pagos ao caso, beneficiam pessoalmente de mais queixas, sendo que no ISDS elas só podem partir dos investidores, pelo que se os árbitros derem razão aos investidores recolherão benefícios pessoais - estão a ser “juízes em causa própria”. Assim, com o passar das décadas, os termos vagos dos tratados internacionais foram sendo interpretados de formas sucessivamente mais amplas e favoráveis aos investidores. É aí que surge e se expande o conceito de “expropriação indirecta” segundo o qual leis que possam afectar os lucros futuros do investidor também são passíveis de gerar avultadas indemnizações. À medida que o sistema se foi tornando mais favorável aos investidores, o número de queixas por via dos sistemas ISDS foi aumentando sucessivamente, apresentando um crescimento explosivo.
Parece inequívoco e evidente que o sistema ISDS tal como existe hoje é disfuncional, absurdo e muito pernicioso. A amplitude ideológica da oposição é tremenda (deste as forças anti-capitalistas, aos sectores mais conservadores e sectores mais "pró-mercado", passando por forças moderadas à esquerda e à direita) e mesmo a revista Economist escreveu: «Se a sua intenção fosse convencer o público de que os acordos comerciais internacionais são uma forma das empresas multinacionais ficarem ricas à custa da população em geral, eis o que poderia fazer: conceder às empresas estrangeiras o direito extraordinário de aceder a um tribunal secreto, de advogados empresariais altamente remunerados, pedindo indemnizações sempre que um governo aprovasse uma lei para, por exemplo, desencorajar o hábito de fumar, proteger o meio ambiente ou impedir uma catástrofe nuclear. No entanto, isso é precisamente o que fazem milhares de tratados de comércio e investimento ao longo do último meio século, através de um processo conhecido como “Resolução de litígios entre investidor e estado” ou ISDS.»
Sendo tão claras as falhas do sistema ISDS, tal como ele existe (que é a questão relevante do ponto de vista político), coloca-se uma questão que pode ser politicamente irrelevante no actual contexto, mas parece mais interessante do ponto de vista meramente intelectual: será que o sistema ISDS, se fosse fiel ao seu propósito original, seria um sistema desejável e benéfico?
Acredito que não. Mesmo que sucessivos abusos não tivessem distorcido o sistema ultrapassando todos os limites do razoável, ele continuaria a ser indesejável.
Na realidade, o sistema original pretendia responder a um grave problema institucional (a alegada falta de independência dos tribunais face ao poder executivo) enfraquecendo ainda mais as instituições do país (por um lado, enfraquecendo o poder legislativo, por outro lado limitando os mecanismos de prestação de contas) e sob processos ainda menos transparentes e escrutináveis.
Pior, este sistema, na melhor das hipóteses, anularia um potencial incentivo importante para a independência e solidez de instituições cruciais, já que - graças a esse sistema - o investimento chegaria em qualquer dos casos, houvesse ou não houvesse independência do sistema de justiça.
Na pior das hipóteses (e que muita investigação empírica sugere ser mais realista), este sistema atrairia precisamente o tipo de investimento mais predatório e especulativo, aquele que menos contribuiria para o desenvolvimento do país, podendo mesmo prejudicar a sua economia.
É natural que muitos não me acompanhem nesta apreciação. É possível rejeitar sem hesitações o ISDS tal como existe hoje, mesmo acreditando que o propósito original não era tão nefasto. Ainda assim, concedendo que cerca de 99% dos problemas do ISDS resultam da enormidade dos abusos que o sistema sofreu ao longo das últimas décadas, creio ter boas razões para fundamentar a minha rejeição do propósito original do sistema.
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