quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Os problemas do termo "decrescimento"

Escrever o texto que se segue é uma experiência bastante frustrante.

É-me relativamente fácil identificar os erros e contradições da direita, ou de um grupo que me pareça bastante equivocado, mesmo correndo o risco de ser identificado como estando «do outro lado da barricada». A verdade é que as minhas diferenças de valores e prioridades são tais que, para a maioria dos efeitos práticos, eu estou do outro lado da barricada, a lutar para que a sociedade caminhe num sentido diferente e inconciliável.

Já em relação às pessoas que defendem a importância do decrescimento, o mesmo não se passa. Pelo contrário, sinto uma afinidade de valores, princípios e prioridades substancial. 
Geralmente são pessoas que priorizam as várias dimensões da qualidade de vida (em particular o tempo livre e a saúde) em vez de sobrevalorizar a prosperidade material; são pessoas que valorizam uma distribuição equilibrada da riqueza e rendimento (nisto estão acompanhadas pela esquerda em geral); e finalmente são pessoas com a lucidez de compreender a importância da sustentabilidade ambiental da actividade humana, por oposição à forma míope como quase toda a sociedade desvaloriza essas questões e é incapaz de sacrificar qualquer migalha de prosperidade material no presente para evitar catástrofes de dimensões bíblicas no futuro próximo. 
São também pessoas com consciência das limitações do PIB enquanto medida da criação de valor, e do erro social que é não dar a mesma ou maior importância a outro tipo de medidas (que corrigem ou atenuam algumas limitações do PIB) no âmbito do debate público.
Estas quatro razões, e outras, fazem com que a minha proximidade política com este movimento seja muito significativa, o que se consubstancia no abraçar das mesmas causas e bandeiras (exemplos: implementação de um RBI emancipador e progressista, implementação de taxas de carbono mais elevadas, urgência da reconversão energética, defesa da redução dos horários máximos - com prioridade face à subida do salário mínimo, medição (acrescida) por parte dos institutos nacionais de estatística de indicadores de desenvolvimento diferentes). Essa proximidade consubstancia-se também numa grande simpatia pessoal e relação de camaradagem relativamente às pessoas que conheço que se batem por estas ideias.

No entanto, o texto que se segue expõe e fundamenta aquilo que me separa destas ideias. 



As pessoas que defendem o decrescimento têm uma aversão visceral a qualquer discurso ou medida que apresente o crescimento económico como algo positivo ou desejável. É fácil de perceber porquê.
Por um lado, o aumento do PIB está geralmente associado a um impacto ambiental superior. Se existem bens e serviços com um impacto ambiental quase nulo (uma peça de teatro, uma massagem, fruta da época produzida de forma sustentável), outros há que têm um impacto ambiental relevante (um smartphone, gasolina, uma peça de fruta vinda do outro canto do planeta) e um aumento agregado dificilmente deixará de representar um agravamento do impacto ambiental num contexto em que esse impacto já está bem para lá dos limites da sustentabilidade.
Por outro lado, o desejo de aumentar a prosperidade material tem alguma relação com um conjunto de valores ligados ao consumismo que associam nível de consumo ao valor intrínseco ou estatuto social de cada indivíduo e/ou promovem a ilusão de que a satisfação dos desejos de consumo podem ter um impacto muito superior na felicidade e bem-estar do que aquele que efectivamente tem.

Reconhecendo estas questões importantes, discordo desta forma de encarar qualquer proposta de acção.
Considerando que as considerações ambientais devem ser prioritárias face ao desejo de aumentar a prosperidade material no contexto de desafio civilizacional em que nos encontramos associado à insustentabilidade do nosso impacto, sou da opinião que, para um mesmo impacto ambiental (positivo ou negativo), é desejável alcançar o maior crescimento económico possível (se outras questões sociais e ambientais não se aplicarem, claro está).


Seria mais fácil sistematizar a minha divergência se olharmos para diferentes medidas com impacto económico e ambiental na seguinte matriz:



As pessoas que defendem o decrescimento tendem a ver fundamentalmente os pontos vermelhos: medidas com impacto económico positivo (a construção de uma nova fábrica de roupa, o aumento da procura e consumo de material electrónico, a construção de uma central termo-eléctrica a carvão num país com energia eléctrica insuficiente) tendem a ter um impacto ambiental negativo; e medidas com impacto ambiental positivo (redução abrupta das viagens aéreas no início da pandemia; redução da procura e consumo de roupa ou material electrónico) tendem a ter um impacto económico negativo, pelo menos no curto prazo.

No entanto, também existem pontos azuis. 

Existem medidas com impacto ambiental negativo que também têm um impacto económico negativo. Um exemplo da maior importância são os subsídios que existem às energias fósseis, que distorcem os mercados de forma a causar uma pior alocação dos recursos, ao mesmo tempo que incentivam a um aumento substancial do volume de gases causadores do efeito de estufa. O impacto destes subsídios na economia mundial é massivo, já que a economia mais rica do mundo gasta uma elevada proporção dos dinheiros públicos neste processo. Outro exemplo de uma medida com impacto económico negativo e impacto ambiental negativo foi, no caso da UE, a participação no Tratado da Carta da Energia. Trata-se do maior obstáculo à luta contra as alterações climáticas na Europa, mas representa também uma tremenda distorção dos mercados que desincentiva a inovação e a reconversão energética, promovendo a concentração, a emergência de monopólios, e preços mais elevados para a electricidade, enquanto ameaça as finanças públicas. 

Por outro lado, existem medidas que reduzem o impacto ambiental e promovem o crescimento económico. O investimento doméstico no isolamento das casas; o investimento industrial no aumento da eficiência energética para redução do consumo de energia; ou qualquer tipo de investimento industrial na redução o consumo de matérias primas com impacto ambiental terá impactos económicos e ambientais positivos. Isto para não falar na reversão das medidas listadas acima: se implementar subsídios ao consumo de combustíveis fósseis tem um impacto económico negativo e um impacto ambiental negativo, então acabar com esses subsídios tem um impacto económico positivo e um impacto ambiental desejável. 

A miopia social conduziu-nos a um ponto onde as questões ambientais foram minoradas, sem consciência do impacto negativo tremendo que trariam à Humanidade.  Como tal, a sociedade durante as últimas décadas, no seu discurso, priorizou a segunda coluna deste gráfico face à primeira: crescimento a todo o custo. 



Isso levou-nos a um contexto tal que a questão ambiental tem de assumir uma prioridade nunca antes alcançada. A resposta a esta "miopia" deveria ser:




Em vez disso, o discurso do decrescimento passa a mensagem literalmente oposta à "miopia" convencional, substituindo-a por aquilo que me parece uma perspectiva menos incorrecta, mas ainda assim insuficientemente lúcida:



Dito isto, devo clarificar que ninguém que se manifeste em favor do decrescimento vai defender explicitamente medidas no canto superior esquerdo. As pessoas em defesa do decrescimento, para todos os efeitos práticos, defendem as medidas assinaladas a verde - como deviam. Em particular, são favoráveis a várias medidas assinaladas a azul que teriam um impacto ambiental e económico favoráveis, tais como a eliminação de subsídios às empresas de combustíveis fósseis, ou o favorecimento do investimento doméstico no isolamento dos edifícios. 

No entanto, por um lado o discurso associado ao decrescimento passa a mensagem assinalada neste último esquema, de acordo com a qual as medidas assinaladas a laranja seriam as adequadas. Por outro, mesmo entre as medidas assinaladas a verde, não só não existe a preocupação de priorizar as que tenham melhores impactos económicos, como existe a preocupação de não valorizar essa dimensão. Tratam-se, no meu entender, de dois erros tremendos, por razões de ordem táctica (politics) e razões associadas à optimização das políticas públicas (policy):

1-Razões de ordem táctica
Sucede-se que os princípios e valores de uma sociedade têm uma grande inércia e geralmente* demoram décadas a sofrer alterações substanciais, o que não se coaduna com a natureza urgente dos problemas ambientais que vivemos. Salientar os aspectos associados ao aumento dos rendimentos (ou ausência de diminuição relevante) é importante para conseguir aliados políticos para acções que teriam um impacto ambiental bastante positivo.
Sim, essa procura de aliados implicaria salientar que existirão benefícios para o crescimento (para propostas "azuis") ou um pequeno impacto (para propostas "vermelhas"). Mostrar indiferença ou aversão pelas prioridades que julgamos erradas inibe ou impede o compromisso com sectores menos sensíveis à urgência ambiental que vivemos que têm de ser cativados para a acção.
Isto não implica que se abandone a procura por uma mudança de valores e prioridades, no sentido de valorizar a natureza e compreender de forma mais lúcida o impacto destruidor da acção humana. Mas implica procurar criar condições políticas para uma acção urgente que diminua o impacto ambiental ainda antes dessa mudança de valores e princípios ter ocorrido.



2- Razões associadas à optimização das políticas públicas
Qualquer medida do crescimento real do PIB enferma de problemas graves (não considerar devidamente a destruição de valor** associada ao impacto da actividade humana sobre a natureza; não considerar todos os bens e serviços produzidos fora dos mecanismos de mercado, etc.) e alguns deles inultrapassáveis, mas isso não implica que não capturem algo de positivo (que pode não justificar os custos, dependendo das circunstâncias).
Note-se que, mesmo levando em conta estes problemas, estou a assumir o PIB como uma medida do valor dos bens e serviços produzidos, e não do bem-estar social (para isso teriam de ser levados em conta variadíssimos factores, desde a distribuição da riqueza, ao tempo de lazer, entre outros).

No entanto, apesar destas questões, a verdade é que o PIB, tal como é medido, tem uma relação próxima com uma série de indicadores sociais relevantes e positivos, tais como a esperança média de vida, e a «satisfação com a vida». 






Quer isto dizer que os valores consumistas não são uma ilusão assim tão grande? Que, não fossem os problemas ambientais, lutar pela subida do PIB seria a forma adequada de aumentar o bem-estar social?
Parece-me claro que não.

O aumento do PIB tende a estar associado a um aumento dos rendimentos em todos os percentis, e também associado a um aumento das receitas fiscais para um mesmo aparato fiscal (e nível de redistribuição socialmente aceite).
Acontece que para quem rendimentos muito reduzidos o aumento dos rendimentos tem realmente um impacto muito positivo no seu bem-estar. Já em relação a quem tem rendimentos muito elevados, a crença de que o aumento do rendimento terá um impacto muito elevado é fundamentalmente ilusória (e em grande medida fruto de técnicas de manipulação emocional deliberadas). Isto quer dizer que quanto mais rica é uma sociedade, menos deve valorizar esta questão (que, repito-me, deve subordinar-se às questões de sustentabilidade ambiental). Por essa razão, tendo a preferir o termo pós-crescimento (que é usado na Alemanha para designar este movimento) ao termo decrescimento. O termo pós-crescimento não se apresenta como inerentemente adverso ao crescimento, mas consciente de que os níveis de produção e consumo das sociedades ricas fazem com que outras prioridades associadas ao aumento da qualidade de vida (mais tempo de lazer, etc.) alcancem uma prioridade ainda maior.





Em Portugal um aumento do PIB resulta num aumento dos rendimentos de uma quantidade significativa de pessoas que ainda estão numa situação financeira que faz com que isso seja realmente importante para a sua qualidade de vida. Por outro lado, o aumento de receitas públicas cria recursos que podem ser importantes para tornar viáveis políticas que também podem ter um efeito desejável importante, tais como aumentar os recursos para o sistema nacional de saúde, para o sistema de Justiça (actualmente algo disfuncional) ou aumentar o RSI para lidar com as situações de miséria mais agudas.

Estas razões, importa-me deixar isto muito claro, não justificam que abdiquemos de procurar diminuir o impacto ambiental com medo do impacto económico desta decisão. Elas justificam sim que procuremos encontrar, para as medidas com igual redução de impacto, as que têm menor impacto negativo no PIB (tudo o resto igual), ou até positivo.



Notas adicionais:

* Por vezes existem experiências traumáticas que mudam de forma repentina os princípios e valores de uma sociedade. A segunda guerra mundial transformou profundamente duas sociedades (alemã e japonesa) cujos valores dominantes tinham uma componente marcial/beligerante relevante, tornando-as em sociedades extremamente avessas a qualquer forma de militarismo ou agressão, num espaço de menos de duas décadas.
As catástrofes ambientais para que a humanidade caminha inconscientemente têm o potencial de ser muito mais graves e traumáticas do que a segunda guerra mundial, pelo que poderiam propiciar as condições para uma alteração de valores rápida e radical.
A razão pela qual descartei esta possibilidade é porque estou, talvez ingenuamente, a partir do princípio que o objectivo será lutar com todas as forças para evitar que passemos por tais catástrofes, pelo que a acção terá de antecipar o trauma que elas podem propiciar. É evidente que não sou ingénuo ao ponto de acreditar que não vamos sofrer colectivamente situações de enorme gravidade que fazem parecer os incêndios deste Verão como apenas a ponta do icebergue. Mas acredito que é possível anteciparmo-nos às situações mais traumáticas.

** Fora de um enquadramento antropocêntrico (e a minha posição sobre essa questão já foi explorada aqui), a destruição do património natural tem consequências negativas que ultrapassam o valor que esse património tem para nós. Isso quer dizer que, mesmo que o PIB contemplasse a destruição de valor por via do impacto ambiental, continuariam a existir razões ambientais para não maximizar essa medida do PIB.
Mas essa medida do PIB seria efectivamente mais adequada para aquilo que o PIB se propõe medir. Se à contribuição dada pela GALP para o PIB devida à venda de combustível refinado é subtraído o valor associado às compras de petróleo bruto necessárias, não deveríamos ser cegos para com os outros custos associados à produção que acabaremos eventualmente por pagar.

-Não mencionei a questão do «crescimento infinito». Nada daquilo que escrevi assume que o crescimento pode ser infinito, mas este texto já vai longo, e essa questão exige um post inteiro para a explorar. De qualquer forma, afirmação de que os economistas presumem um crescimento constante (e por consequência infinito) exige um exame mais aprofundado.

-Foquei particularmente os custos ambientais do crescimento económico, e não mencionei aqueles que podem ser vistos como «custos sociais». Não obstante, o enquadramento exposto para lidar com a relação entre impactos económicos e impactos ambientais pode também ser aplicado à relação entre impactos económicos e impactos sociais, e as críticas que apresentei ganham igual ou maior pertinência, no meu entender. 

1 comentário :

Ricardo Alves disse...

A conclusão a que já cheguei é que as divergências entre utopistas e realistas não são conciliáveis.