quarta-feira, 22 de março de 2017

A obsessão com a islamofobia

O Tribunal de Justiça da UE publicou dois acórdãos na terça-feira da semana passada: num decidiu que uma empresa, em certas condições, pode despedir uma pessoa que use símbolos religiosos visíveis; noutro, que um cliente queixar-se de uma trabalhadora usar o véu islâmico não é causa suficiente para despedimento. Se os media portugueses (e europeus) se tivessem concentrado no segundo acórdão, os títulos das notícias seriam «Véu islâmico não é justa causa para despedimento». No entanto, escolheram olhar apenas para o primeiro acórdão e gerar uma torrente de títulos do tipo «Empresas podem proibir véu islâmico» (1), por vezes sem sequer mencionarem o outro acórdão. Este viés não é uma novidade nem um caso isolado: no dia seguinte pelo menos quatro órgãos de comunicação social veicularam comentários de uma dezena de «personalidades», conseguindo o milagre de nem uma única defender o Tribunal de Justiça da UE, pelo contrário quase todas acusando este tribunal mais ou menos explicitamente de «discriminação religiosa» (2). Finalmente, Fernanda Câncio, após comparação com uma decisão de outro tribunal, concluiu a partir destes acórdãos que «a jurisprudência europeia permite que se consagre a ideia de que há religiões "nossas", "neutras", e as outras» e que portanto se trata de «xenofobia», ou seja, Trump está entre nós.

Vale então a pena analisar se os dois acórdãos merecem a acusação de islamofobia. O primeiro respeita a uma belga que trabalhava como recepcionista numa empresa, e que queria usar o véu islâmico durante o trabalho. A empresa elaborou, em colaboração com a comissão de trabalhadores, um regulamento que proibia «símbolos políticos, filosóficos ou religiosos [visíveis]». E a trabalhadora foi despedida. O Tribunal de Justiça da UE concluiu que não houve discriminação no sentido da directiva do emprego (2000/78) porque: (i) o regulamento aplica-se a todas as opções religiosas e aparentadas; (ii) o posto de trabalho era em contacto com o público. Significa esta decisão que as empresas podem despedir alguém por usar o véu islâmico? Sim, e que também podem despedir alguém por usar turbante, crucifixos visíveis ou quipás, mas só depois de verificadas as condições (i) e (ii) acima. Este género de regulamentos não estigmatizam uma religião em particular porque, em boa verdade, dizem respeito a todas e ainda a outro tipo de convicções.

O segundo acórdão respeita a uma gestora de projectos francesa que reunia com clientes episodicamente, e que foi despedida por insistir em usar o véu islâmico nessas reuniões, o que causou queixas de alguns clientes. O TJ concluiu que obrigar essa trabalhadora a não usar o véu nessas reuniões não constituía uma exigência «essencial e determinante» por parte do empregador, e portanto implicitamente o despedimento terá sido injusto. Tomado em conjunto com o acórdão mencionado acima, este acórdão até permite concluir que não deveria haver despedimento neste caso mesmo que houvesse regulamento interno proibindo símbolos religiosos, porque o contacto com o público era apenas uma pequena parte do emprego.

Conclusão: o Tribunal de Justiça da União Europeia é islamófobo? A resposta tem obviamente que ser não, porque na realidade até deliberou que é injusto despedir uma mulher pela simples razão de usar o véu, e impôs condições estritas para tal poder ser feito. Porque será então que estes acórdãos do Tribunal de Justiça da UE nos foram servidos pelos media portugueses como parte de uma campanha islamófoba? A resposta é complexa. Primeiro, há realmente quem pense que a liberdade religiosa é uma liberdade acima das outras liberdades: uma liberdade que prevalece sobre o direito de não ser pressionado em matéria de religião ou de aceder a serviços política e religiosamente neutros. Segundo, há quem ache que se combate a direita nativista e islamófoba descambando para a hiper-proteção de tudo o que é islâmico, como se uma discriminação positiva fosse menos anti-igualitária do que uma discriminação negativa (apesar das suas boas intenções, este grupo de pessoas só alimenta a islamofobia que pretende combater). Terceiro, poucos querem reconhecer que o Islão se presta a estes embates, ao ser uma religião tão visível no espaço público, tão constrangedora da vida dos indivíduos.

A terminar: há trumpismo entre nós, com certeza, embora não no TJ da UE. Mas também há islamismo radical, e existe ainda uma espécie de islamofilia reflexiva que envenena qualquer debate vendo perseguição aos muçulmanos onde ela realmente não existe.

(1) Ver Diário de NotíciasPúblicoExpresso, i, Correio da ManhãNegócios, Jornal Económico, Dinheiro VivoObservadorTSFRádio Comercial, TVI24, Euronews; as excepções foram o Jornal de Notícias, a Visão e a RTP.

(2) Público, Diário de NotíciasJornal Económico, Renascença.

5 comentários :

Luís Lavoura disse...

o Islão se presta a estes embates, ao ser uma religião tão visível no espaço público, tão constrangedora da vida dos indivíduos

O Islão não se presta mais a estes embates do que o sikhismo, que obriga os homens a usar turbante, ou do que o judaísmo ultra-ortodoxo, que obriga sobretudo os homens, mas também as mulheres, a vestirem-se de determinada forma.

A diferença está em que as muçulmanas exigem trazer o véu e exercer todas as profissões, enquanto que os sikhs ou os judeus aceitam de bom-grado abster-se de exercer certas profissões.

Ricardo Alves disse...

Lá está: prestam-se.

Bloco de Esquerda- Portimão disse...

A grande diferença não será que os muçulmanos são muito mais proletários que os judeus (nomeadamente os ortodoxos) e os sikhs, que frequentemente trabalham por conta própria ou em pequenas empresas de correlegionários?

Luís Lavoura disse...

O Ricardo Alves parece considerar normal e aceitável que a adesão a uma religião acarrete, numa sociedade, a liberdade de escolher a profissão.

Luís Lavoura disse...

Parece que o Expresso revelou recentemente um caso análogo passado em Portugal, em que duas jovens muçulmanas concorreram a lugares de "caixas" no Continente. A empresa disse-lhes que só lhes dava o lugar se elas aceitassem tirar o véu durante o serviço. Elas ficaram contrariadas mas aceitaram, porque precisavam mesmo do dinheirinho para viver.
Claramente, tratava-se de duas muçulmanas "proletárias".