terça-feira, 8 de março de 2016

Do Parlamento à Mesquita

Marcelo Rebelo de Sousa encaixou nas festividades da sua tomada de posse uma ida à mesquita. O acto é apresentado, por um lado, como um «[apelo] à busca de uma solução para o drama dos refugiados do Médio Oriente». Estranho então que não se realize num centro de acolhimento de refugiados. Por outro lado, fala-se também numa «manifestação contra os ataques terroristas que têm surgido na Europa e por todo o mundo». Aí, a escolha é ainda mais estranha: não se entende que faça mais sentido lembrar as vítimas do Bataclan numa mesquita do que numa discoteca, para nada dizer dos redactores do Charlie Hebdo. Entende-se melhor o que quer Marcelo quando se lê que convidou representantes das comunidades religiosas mais antigas (não das mais expressivas, como a IURD ou as testemunhas de Jeová). Trata-se mesmo de uma «celebração inter-religiosa» (sic).

Temos portanto um Presidente que na sua tomada de posse, saído da Assembleia da República onde se sentam os representantes dos cidadãos eleitos democraticamente, com mandatos devidamente limitados e politicamente diversos, se dirige para um templo religioso, onde estarão os representantes das comunidades religiosas, anti-democráticas, lideradas exclusivamente por homens, e unânimes no seu repúdio pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo ou pela morte assistida.

O que busca Marcelo numa tal cerimónia? Houve tempo em que a tomada de posse dos reis era seguida de um Te Deum na catedral, a validação clerical da legitimidade do poder político. Esta cerimónia parece-se perigosamente com esses tempos, que se esperavam findos. É de recear que com o presidente Marcelo assistamos a uma sucessão de actos que aproximem a figura do Presidente de um mediador das relações com as igrejas ou, pior, com uma mistura cada vez maior de funções presidenciais e de actos sectário-religiosos.

4 comentários :

Senhor Animalesco disse...

Como republicano convicto não partilho da opinião expressada neste post. A saber:

1) A escolha da Mesquita de Lisboa para apelar à solução da questão dos refugiados do Médio Oriente não é estranha. Até faz bastante sentido uma vez que muitos (se não a maioria) dos refugiados que chegam à Europa são muçulmanos. Os muçulmanos sentem esta tragédia mais do que qualquer outro grupo de pessoas no mundo.

2) Chamar a esta iniciativa um manifestação contra ataques terroristas é tão válido numa mesquita quanto noutro sítio qualquer. Entende-se a mensagem que se propaga: separar terrorismo da religião, e neste caso em concreto a reivindicação de que o Islão está contra os ataques terroristas.

3) Comunidades religiosas “mais antigas” Vs “mais representativas”? Eh pá, o Census de 2011 é muito claro quanto a isso! 81% Católicos Vs 2% “Outros Cristãos”. Que raio de insinuação foi essa?

http://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=CENSOS&xpgid=ine_censos_indicador&contexto=ind&indOcorrCod=0006396&selTab=tab10

4) Marcelo é o presidente de todos os portugueses. Segundo o Census de 2011 (link em cima), 85% da população declarou-se “religiosa”. Não fica nada mal que Marcelo cumpra a sua palavra e dever de representar de modo fidedigno o povo português e a República. Assim, faz todo o sentido que aceite ir à mesquita, para uma celebração inter-religiosa onde se apela à solução para os refugiados e se condena o terrorismo.

De resto, a semelhança entre esta iniciativa de Marcelo e as cerimónias de legitimação da coroação dos monarcas por parte e um Te Deum é tão pouca que de perigo nada tem. Estamos numa República secular, não temos nada a temer e antes pelo contrário, se o Presidente da República quer representar o povo Português segundo a Constituição, faz muito bem em avançar-se como “mediador das relações com as igrejas”, que representam 85% da população.

Colocar-se à margem ou fazer “black out” contra as igrejas é que é um disparate anticlerical perigoso e com o qual os Portugueses não se revêm de todo.

Haja bom senso e fundamento nas críticas que se fazem.

Ricardo Alves disse...

Caro «Senhor Animalesco»,
o discurso acabou por concentrar-se na defesa da liberdade religiosa para os religiosos (não tanto para os descrentes), o que esvazia os seus pontos 1) e 2).

Quanto ao seu ponto 3, não sei se me entendeu: quer as tj´s quer os neopentecostais são bem mais representativos (em número) do que a maioria das comunidades religiosas ali representadas, com duas excepções (a ICAR e a AEP). Curiosamente, parecem não ter sido convidados. A tolerância deve ser só para alguns.

Ah, e em 2011 os censos encontraram 7% de pessoas sem religião. Parece que não fazem parte do «Portugal ecuménico» de Marcelo.

Finalmente, se acha que um Presidente deve ser «mediador» junto das comunidades religiosas, e logo desde a tomada de posse, tem um entendimento do cargo bem diferente do meu.

Francisco Neto disse...

o discurso acabou por concentrar-se na defesa da liberdade religiosa para os religiosos (não tanto para os descrentes), o que esvazia os seus pontos 1) e 2).--> Sim mas liberdade religiosa deve assumir tambem a separacao dos actos de minorias da religiao em si. Ou seja, seria eu muculmano e penso que a iniciativa do Presidente da Republica me cairia bem. No fundo, como refugiado dum Pais onde o extremismo religioso prolifera e parece ser exportado para outros paises, gostaria de ver um lider dizer "Voces aqui sao livres de professar a vossa religiao apesar do que o ISIS, Bokoaran ou alqaeda fazem"... Este tipo de atitude cai bem em qualquer sector da sociedade. Religioso ou nao!

Quanto ao ponto 3, penso que o animalesco queria fazer alusao ao impacto que estas religioes tem hoje em dia. Do meu lado assumo que nao estou familiar com a representacao dos Neopentecostais em PT ou ate mesmo os Mormons... Mas de qualquer das formas nao sei qual seria o ponto do Presidente convidar estas seitas se a religiao Crista ja estava a ter representacao no corpo da Igreja Catolica... No fundo, estao ali represntadas as 3 religioes abraamicas... Penso que o significado desta accao e obvia!

Ricardo Alves disse...

O facto é que não houve qualquer esforço para representar os não religiosos. Os redactores e cartunistas do Charlie Hebdo, chacinados num atentado horrendo, eram, caso não se recorde, livre pensadores.

E não, a ICAR não representa os evangélicos. Que lá estavam, mas o meu ponto é que a única comunidade religiosa que teve um problema sério de intolerância em Portugal nos últimos 20 anos (a IURD) não foi convidada.