domingo, 13 de janeiro de 2013

Sobre o caso do cão e do bebé (1)

O episódio do bebé supostamente assassinado por um pitbull cruzado tem motivado um aceso combate entre dois tipos de fanáticos: os defensores fanáticos dos direitos dos animais e os antropocêntricos. Entre estes últimos encontram-se pérolas de retórica como "Os animais não têm direitos: nós é que temos deveres para com eles." Como se isso por si só não representasse um direito dos animais - o de esperarem que cumpramos os nossos deveres! Também tratando-se de retórica, confesso que esperava melhor do escritor Mário de Carvalho, que escreve:
Eu sou decididamente contra as mortes causadas em seres humanos. Acho-as obscenas. Também me insurjo contra o sofrimento e a morte provocados em animais. Mas impõe-se, nesta ocorrência de Beja, uma razão de justiça, com uma forte carga simbólica. Rompeu-se brutalmente um equilíbrio. Não se pode repor esse equilíbrio. É impossível, infelizmente, devolver a vida à pobre criança. Mas impõe-se dar-nos um sinal forte de que não estamos dispostos a conformar-nos, de forma nenhuma, com ataques mortais a seres humanos. Há uma razão de justiça, há uma razão de solidariedade, há uma razão de respeito pelos mortos. Há uma razão de consideração por nós próprios, enquanto pessoas. Esse cão deve ser abatido.
Eu gostaria que alguém me explicasse como se pode escrever palavras destas, por um lado, e ser contra a pena de morte, por outro. Vão-me dizer os antropocentristas do costume que "uma vida humana é uma vida humana". Mas por acaso quando um assassino em série mata uma série de pessoas, como ouvimos falar de vez em quando, não há também "um equilíbrio que se rompe brutalmente" e que "não pode ser reposto"? Frases como "impõe-se dar-nos um sinal forte de que não estamos dispostos a conformar-nos, de forma nenhuma, com ataques mortais a seres humanos. Há uma razão de justiça, há uma razão de solidariedade, há uma razão de respeito pelos mortos" não se aplicariam no caso de um assassino em série porquê? Da minha parte, sou decididamente contra a pena de morte de seres humanos. Aceito a morte de animais domésticos que tenham assassinado humanos (já não a defendo para animais selvagens, mesmo em cativeiro). Este assunto é delicado mas, pense-se o que se pensar sobre a morte do cão Zico (e eu não estou aqui a referir-me a todos os defensores da morte do Zico), eu nunca a defenderia com argumentos destes.

20 comentários :

Anónimo disse...

Essa distinção feita pelos fanáticos do tipo II corresponde essencialmente a dizer que os animais não-humanos não são agentes morais. Concordo. Tal como, por exemplo, os recém-nascidos, os deficientes mentais profundos os doentes de Alzheimer num estado avançado.

Quanto ao caso que está em análise. Na minha opinião, e salvo melhor informação, um cão não tem interesse na vida. Deste modo, e por princípio, a morte em si mesma não é um mal desde que realizada de forma indolor. A morte pode ser um mal na medida em que anule a satisfação que a vida do seu portador lhe traz.

Se for possível o cão continuar vivo e gozar de uma vida que o satisfaça, afastando para além da dúvida razoável a ameaça que ele representa para vidas moralmente mais relevantes, como as humanas, então acho que não deve ser morto.

PS: Porque se emprega "abater" referindo-se à acção de matar de um animal não-humano? A razão parece-me ser a de objectificar o animal.

Rivera disse...

A nossa capacidade de controlar os nossos pânicos e deficientes socializações quando aparecem casos como estes também é uma medida de desenvolvimento, algumas pessoas que muito respeito não demonstraram essa capacidade e usaram argumentes desde o falso ("o animal matou", quando o que matou a pobre criança foi a queda e traumatismo decorrente), ao palerma ("há questões actuais muito mais importantes", o que é óbvio e no limite impediria qualquer acção além da mais mais importante naquele momento) e até ao cruel ("é um animal e não uma pessoa", e portanto tudo é permitido). Também é uma dimensão da nossa humanidade a nossa forma de lidar com os animais, principalmente uma espécie que acompanha a nossa há tanto tempo e de uma forma tão leal.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
o argumento do Mário de Carvalho é fraco, mas se quiseres eu dou-te um mais simples: aquele cão não pode voltar a conviver com humanos, e custa dinheiro mantê-lo em cativeiro para o resto da sua vida.

Por exemplo: tu deixarias uma criança da tua família sozinha numa cozinha com aquele cão? Ou serias capaz tu próprio de ficar sozinho com ele? É que nem estamos a falar de um elemento da nossa espécie que tenha matado. Estamos a falar de um elemento de uma espécie cujo auto-controlo é demonstravelmente inferior ao nosso.

Portanto, não me venhas falar em «pena de morte» a propósito de um cão. Não tem nada que ver.

Mais duas notas.

1) Eu sou antropocêntrico (o que para ti basta para que eu seja «fanático», mas enfim). E sou antropocêntrico porque não conheço nenhuma espécie animal - para além da nossa - que seja capaz de nos reconhecer direitos ou de cumprir deveres. Aliás, nem conseguem argumentar a favor disso. Portanto, explica-me lá como atribuímos direitos a espécies animais que nem compreendem o que isso é...

2) Acho de mau gosto usares «Direitos do Homem» como etiqueta neste post.

Ricardo Alves disse...

Os recém-nascidos desenvolvem, quase sempre, capacidade para compreenderem direitos e deveres. Os deficientes mentais profundos são elementos da nossa espécie e portanto têm direitos.

Definir direitos indivíduo a indivíduo - e não espécie a espécie - é profundamente discriminatório e anti-igualitário.

Ricardo Alves disse...

Caro Rivera,
e qual será a medida da «caninidade» dos cães? A maneira como lidam com crianças?

Maquiavel disse...

Acho que já é conversa da treta a mais sobre este assunto. Mata-se o cäo e acabou a conversa.

Querem mais? Nem sei o que faria eu aos donos se o caso acontecesse comigo, logo é melhor nunca acontecer!
Ah, mas isso sou eu que tenho mau feitio. É a vida!

P.S.: Também acho de muito mau gosto usares «Direitos do Homem» como etiqueta neste post!

Anónimo disse...

"Definir direitos indivíduo a indivíduo - e não espécie a espécie - é profundamente discriminatório e anti-igualitário."

Sim é profundamente discriminatório mas num bom sentido. Por exemplo, estão dois seres humanos nas urgências de um hospital. O ser humano A queixa-se de uma dor no hálux, enquanto o ser humano B foi atropelado por um camião e está a esvair-se em sangue. Qual dos dois deve ser atendido em primeiro lugar? Qual dos dois merece uma maior alocação de recursos no seu tratamento?

Como vê, dizer que algo é discriminatório é apontar-lhe uma virtude. Embora, por uma razão sociológica que não compreendo inteiramente, exista uma tendência para considerar que discriminar é algo mau.

Quanto à parte do anti-igualitário, confesso que não percebi.

Num certo sentido todos os indivíduos são diferentes. Nem as cadeiras que saem da linha de montagem da fábrica de cadeiras que só produz um tipo de cadeira são iguais.

Se restringirmos as características a categorias, talvez consigamos reconhecer que alguns indivíduos são iguais. Por exemplo, todos os seres vivos são iguais na característica de possuírem metabolismo, entre outras. Todos os mamíferos são iguais na característica de terem glândulas mamárias. Resta saber se estas características têm relevância moral e se se consegue justificar isso de forma imparcial.

O que os utilitaristas das preferências fazem é considerar que o atributo primitivo para um indivíduo ter relevância moral é possuir interesses (ou preferências). É nesta medida que são iguais todos os indivíduos com interesses. Quando há conflito de interesses, que é exactamente o faz com que necessitemos de pensar eticamente, deve-se ponderar os interesses em disputa e optar pela resolução que maximiza a satisfação das preferências.

Voltando ao caso dos dois seres humanos nas urgências. Ao optar por tratar o ser humano B está a satisfazer mais preferências (ou uma preferência com maior valor) do que ao tratar o ser humano A. Se estiver em dúvida, pergunte ao ser humano A se prefere trocar de lugar com o ser humano B no que ao sofrimento diz respeito. A troca de lugar inter-espécie também pode ser feita, mas de uma forma mais cuidadosa, pois aquilo que satisfaz, por exemplo, um cavalo é, em algumas coisas, diferente do que o que nos satisfaz. Mas numa coisa cavalo e humano são iguais: preferem mesmo muito não ter dores físicas intensas e incontroláveis; preferem isto a qualquer outra coisa; às vezes até trocam a vida pela possibilidade de não ter esse tipo de dor.

Considere o seguinte conflito de interesses entre o indivíduo A, comedor de vitelas de leite, e o indivíduo B (uma vitela de leite), na medida em que A quer comer B e para tal tem de sujeitar B a uma vida de sofrimento infernal, enquanto que B não quer sofrer de forma infernal. Se satisfizermos as preferências de B, A sacrifica a possibilidade de comer vitela de leites; se satisfazermos as preferências de A, B sacrifica totalmente o seu bem-estar físico. Se A for um agente moral (se for um ser humano adulto e normal é um agente moral), tem de fazer a troca inter-espécie para avaliar que interesse deve ser sacrificado neste conflito. Será que A trocaria o seu bem-estar físico pela possibilidade de comer uma vitela de leite? Não me parece. Será que B trocaria comer uma iguaria (que no caso da vitela deverá ser uma maravilhosa forragem) pelo seu bem-estar físico? Trocaria imediatamente.

zorg disse...

A questão não tem, evidentemente, a ver com justiça. Não se pretende que o abate seja um castigo, ou uma pena pelo crime.

O animal deve ser abatido simplesmente porque é uma ameaça à segurança pública e não se pretende, ou não se pode, gastar o dinheiro necessário para o manter confinado.

Wyrm disse...

""o animal matou", quando o que matou a pobre criança foi a queda e traumatismo decorrente"

Não tenho seguido o caso, mas é a primeira vez que oiço falar num ataque de um pitbull (mesmo arraçado) cuja vitima morre devido à queda e não por ver arrancados bocados da sua carne.

Cheira a esturro a historia. Em relação ao antropocentrismo, o Ricardo Alves tem razão: afinal Deus criou a Terra e todos os animais para que nos servíssemos deles.

Ricardo Alves disse...

O argumento do Ricardo não é esse. Leia-me com mais atenção...

Ricardo Alves disse...

«usaram argumentes desde o falso ("o animal matou", quando o que matou a pobre criança foi a queda e traumatismo decorrente)»

Público, 1071/2013:

«A autópsia, realizada na quarta-feira, concluiu que a morte se ficou a dever aos ferimentos provocados pela mordedura do cão, segundo disse ao PÚBLICO fonte do Instituto de Medicina Legal.»

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/mais-de-11-mil-pessoas-contra-abate-do-cao-que-matou-crianca-em-beja-1580190

Ricardo Alves disse...

«ttdsxo»: os seus argumentos esquecem/ignoram dois factos singelos.

1) Só têm capacidade de reflexão ética (ou decisão moral), indivíduos da nossa espécie animal. O famoso «Zico», por exemplo, decidiu não ter qualquer cuidado com a criança. Devemos atribuir «direitos» a uma espécie animal que não mostra capacidade relevante de cumprir deveres?

2) Não se pode fazer uma lei para cada indivíduo. Isso seria profundamente anti-igualitário, como já lhe disse e creio que compreendeu perfeitamente. Mais: discriminar é criar desigualdades. Uma discriminação «positiva» para um grupo cria uma discriminação negativa para os indivíduos que não pertencem a esse grupo. Reconhecer todas as «diferenças» seria destruir a igualdade como valor político.

Anónimo disse...

1) Qual é o problema do Zico ter direitos? Não é por o Zico ter direitos que ele vai matar menos ou matar mais, porque o Zico não tem capacidade para assumir compromissos dessa natureza. Não tem o Zico nem têm os recém-nascidos, os deficientes mentais profundos, os doentes de Alzheimer num estado avançado, etc.

Não percebo porque é necessário ser agente moral para ter direitos. E se assim for, há humanos que não deviam ter direitos.

Os indivíduos humanos eventuais potenciadores desta tragédia é que deviam ter sabido melhor. Esses sim merecem ser punidos porque, ao contrário do que acontece com os canídeos, a punição diferida no tempo é compreendida e a mensagem é transferida socialmente, podendo levar à redução do número de situações geradoras de eventos deste tipo.


2) Concordo, não se pode fazer uma lei para cada indivíduo. E depois? Nada do que escrevi implica a necessidade de existir uma lei para cada indivíduo. Aliás, antes pelo contrário: não percebo que lei poderia ser essa, porque quem deve prevalecer numa disputa não é um certo indivíduo, mas sim os atributos circunstanciais dos indivíduos envolvidos.

Já agora, uma modificação deste género numa lei seria assim tão complicado?: "o homem tem direito ao bem-estar físico" -> "o ser senciente tem direito ao bem-estar físico".

PS: Acho que me toma por mais inteligente do que na verdade devo ser. Confesso que continuo sem perceber o "anti-igualitário". Talvez me possa ajudar desenvolvendo a ideia?

Ricardo Alves disse...

O problema de o «Zico» ter direitos é que não os compreende, e que muito menos cumpre o dever de respeitar os direitos dos outros, como se viu. (E já agora: a criança tem nome? Ou é só o cão?)

E voltamos ao mesmo: equipara o «Zico» a certas categorias de seres humanos (incluindo, creio eu, a categoria do «ser senciente» cujos direitos o cão não respeitou) e depois espanta-se de eu ter entendido que está a defender leis para diferentes «categorias» de seres humanos. Custa assim tanto a entender que as leis são feitas assumindo que os seus «seres sencientes» pertencem a determinadas espécies animais, e que nunca um cão terá os mesmos direitos de um humano?

dubbub disse...

O Ricardo não entendeu o sarcasmo em relação ao antropocentrismo!

dubbub disse...

O antropocentrismo deixa de fazer sentido à luz do actual conhecimento científico. Recentemente, a comunidade de neurociência confirmou formalmente numa conferência (Cambridge Declaration on Consciousness in Non-Human Animals, 2012) a elevada probabilidade da existência de consciência nos outros animais, em diferentes ordens de complexidade. Ao nivel da etologia, acumulam-se evidências de que há um sentido de justiça em primatas não-humanos (Frans de Waal et al, 2013) e de que há uma noção de empatia em roedores (Bartal et al, 2011). Não devem estes novos paradigmas levar-nos a repensar até onde é que devemos extender a nossa esfera de direito?

Claro que nenhum animal entende a natureza humana, tal como nós não entendemos a natureza de vários animais - afinal, qual seria o sentido dar o direito de voto a um cão?
No entanto, qualquer animal procura fundamentalemente o mesmo que todo e qualquer humano. Há intersecções da natureza humana e da natureza não humana, o que reflectem concerteza o facto de que somos também animais: Conforto, ausência de dor, abrigo, entre outros. Estas vontades são universais para todo e qualquer animal que é dotado de consciência suficiente para reconher situações que o possam pôr em perigo ou levar à sua morte.

Portanto, antes do direito, os animais merecem a mesma consideração que um humano que partilhe estes desejos fundamentais. Não é por terem um 'invólucro' diferente do de um deficiente mental profundo que devem ser excluidos da mesma esfera de direito que este - pois tal como um animal, os deficientes mentais profundos não compreendem quais os deveres e direitos que lhe são instituidos. Fará alguma diferença ser Homo sapiens com trissomia-21 profunda ou Canis lupus? Ao nível dos cromossomas? Qual é o critério, se alguém com trissomia-21 tem mais um cromossoma que os restantes humanos, sendo portanto genéticamente diferente? É meramente o "invólucro"? Considero que há uma exigência de um critério mais lógico do que a espécie!

Obs: Ao falar de animal estou-me a referir a mamíferos, aves e peixes. Não invertebrados por estar incerto em relação à existência da sua consciência (exc. cefalópodes)

Anónimo disse...

A esmagadora maioria dos utilizadores de microondas beneficia da utilização de um microondas e não compreende o que é um microondas. A esmagadora maioria das pessoas que estabelece compromissos no tempo usando um certo calendário não compreende o que é o calendário. E depois?

Pode explicar como é que justifica a necessidade de ser preciso compreender uma coisa para poder beneficiar dela? E pode compatibilizar esse princípio com o retirar de benefícios da utilização de microondas, calendários, etc.?

Estava bem estabelecido que o Zico não é um agente moral, portanto não pode cumprir deveres. Isso nunca esteve em disputa.

Quanto ao nome da criança. Não sei o nome da criança. Nem sabia o nome do cão. Aprendi-o consigo! (embora esteja no post, acabei de confirmar, só o comecei a usar quando você o usou.)

Concordamos que o cão e criança são de diferentes espécies. Concordamos que cão não cumpre deveres. Concordamos que criança não cumpre deveres, mas se tudo correr, poderá vir a cumprir quando for mais crescida.

A ideia não é atribuir ao cão os direitos do homem. Nem o cão os quer! O cão quer ter uma vida satisfeita enquanto cão, não quer ter uma vida satisfeita enquanto homem. Quando há conflito de interesses, enunciei os princípios gerais da resolução da disputa. A resolução das disputas é da responsabilidade dos agentes morais (o homem adulto e normal), pois claro. A igualdade moralmente relevante entre cão e homem é no que diz respeito a terem interesses.

Ricardo Alves disse...

Eu acho é que vocês não entendem que ele entendeu...

Ricardo Alves disse...

Sinceramente, às vezes até penso que está a brincar. Quando compara leis a microondas, e calendários a valores éticos.

O cão nunca será igual em direitos e deveres ao homem. Porque não compreende nem uns nem outros. Esta discussão é sobre os deveres que devemos ter para com os animais, não sobre os «direitos» dos animais. E os direitos definem-se entre IGUAIS, e não me venha com recém-nascidos e com idosos com Alzheimer, porque isso é mesmo não entender.

Ricardo Alves disse...

«Não devem estes novos paradigmas levar-nos a repensar até onde é que devemos extender a nossa esfera de direito?»

Não.