quarta-feira, 10 de março de 2010

Os preços planificados do “Pingo Doce”

Continuemos a falar do comércio a retalho, só que desta vez de legumes frescos.
Costumo brincar com os meus amigos economistas, dizendo-lhes que enquanto a física consegue prever com todo o rigor certas grandezas a economia não é capaz de prever sequer o preço do quilo da alface. Bem: não no “Pingo Doce” onde, desde Outubro de 2009 (pelo menos), o kg da alface tem sido sempre a 1,49 €. O mesmo com o espinafre e o tomate: sempre ao mesmo previsível preço.
O rapaz da foto entra-nos todos os dias em casa (para quem vê televisão), a anunciar que, na cadeia de lojas que ele promove, basicamente os preços são fixos, à boa maneira socialista (dizem que Salazar fazia o mesmo, pelo menos com o preço do pão, nem que tivesse que lhe diminuir o tamanho…). Enquanto nas outras lojas os preços flutuam com o mercado, com a lei da oferta e da procura e com as condições climatéricas (algo que, especialmente com um inverno rigoroso como o que temos tido, naturalmente afeta e muito o preço dos legumes frescos), no “Pingo Doce” os preços não aumentam (mas também não diminuem – não variam).
É curioso que os economistas, mais liberais ou mesmo mais keynesianos, gastaram nas duas últimas décadas tanto latim a explicarem-nos os problemas de uma economia planificada, e agora ninguém reclama por o “Pingo Doce” estar a planificar a economia (fixar preços é típico de uma economia planificada, e não de uma economia livre).
Dir-me-ão que o “Pingo Doce” é uma empresa privada, que pode vender os produtos aos preços que quiser numa economia livre, enquanto o estado fixar os preços é diferente. Mas será assim tão diferente? Terão os produtores liberdade de negociar livremente com o “Pingo Doce” o preço das suas colheitas? Não estou de modo nenhum a acusar o “Pingo Doce” de nada, mas sei que muitas vezes os grandes retalhistas exercem pressões enormes sobre os produtores, sendo que em muitas localidades detêm praticamente o monopólio. Os produtores têm que aceitar os preços que os grandes retalhistas oferecem; não têm escolha. Não sei se é esta a situação do “Pingo Doce” (repito – não estou a acusar ninguém), e pode ocorrer com outros retalhistas, hipermercados ou não. Sei é que esta situação hipotética não é a de uma economia livre.
Mas admitamos que nada disto se passa: o “Pingo Doce” é uma marca séria, e decidiu manter um compromisso com os clientes. Mesmo que a intenção do “Pingo Doce” não seja essa, a verdade é que todos aqueles anúncios são uma exaltação das virtudes da economia planificada como há muito não se via (e espanta-me, falo a sério, que nenhum economista comente este assunto). Ao ver aquele rapaz rechonchudo a repetir que “só o “Pingo Doce” respeita o seu dinheiro” por não variar os preços, questionamo-nos se não seria melhor que fosse assim com tudo. As lojas todas, todo o comércio. Não só o “Pingo Doce”. Desde que não houvesse esmagamento dos produtores. Se há pressões sobre os produtores, é intolerável; se não há, afinal a economia planificada funciona! Não é assim? Não consta que o “Pingo Doce” dê prejuízo!
Sim, e o rapaz é rechonchudo. Só num anúncio, o “Pingo Doce” reabilita a planificação da economia e os gordos para a publicidade. Quer-me parecer que o “Pingo Doce” está a tentar atrair clientes de esquerda.

9 comentários :

João Vasco disse...

Filipe Moura:

Fazendo de advogado do diabo, seria possível defender que a possibilidade de qualquer outra empresa poder fazer concorrência ao pingo doce com preços diferentes (mesmo que isso não se verifique) é suficiente para que os preços praticados pelo pingo doce se ajustem adequadamente às realidades do mercado - quanto custa a produção eficiente do serviço que prestam, quanto é que as pessoas estão dispostas a pagar por esse serviço, etc.. Se não se adequarem, ou bem que o pingo doce está a prejudicar-se para beneficiar os clientes (e então não merece crítica), ou bem que está a criar uma oportunidade de negócio que outros poderão aproveitar.


Creio que o problema não é o facto dos preços serem constantes, mas sim das suas flutuações serem proibidas de forma coerciva.
E parte da contestação que é feita a este respeito é filosófica: ninguém deveria ser impedido de vender ou comprar ao preço que queira não apenas por uma questão de eficiência, mas porque isso é uma limitação da sa liberdade.

Ou seja, o problema não está nos resultados, mas sim nos métodos.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
é necessário ser gordo para ser de esquerda? ;)

Filipe Moura disse...

Não, de todo, Ricardo, como acho que eu e tu bem demonstramos. Mas não serão os gordos uma minoria perseguida?

Unknown disse...

Pergunto-me o que pensaria o autor deste texto se a estratégia do Pingo Doce fosse alternar semanalmente o preço da alface entre 1,48€ e 1,50€, em vez de o manter fixo a 1,49€...

Anónimo disse...

Bom post.

Esta prática do Pingo Doce mostra que há um público, nada pequeno, que tem saudades do tempo em que os preços eram fixos e imutáveis.

Aliás, isso é bem visível em matéria de preços dos carburantes, em que continuamente se ouvem pessoas com saudades do tempo em que os preços eram fixados pelo governo e imutáveis.

Luís Lavoura

miguel disse...

outro exemplo:

o preço das chamadas nos telemóveis (um produto com um volume de vendas bem maior do que as alfaces) têm os preços fixos há vários anos. eu, por exemplo tenho exactamente o mesmo preço por chamada há uns 7 anos.

será isto economia planificada?

Filipe Moura disse...

Miguel, o preço das chamadas de telemóveis, tanto quanto sei, resulta de um acordo tácito entre os três operadores. Poderiam ser mais baratas, mas nenhum deles está verdadeiramente interessado nisso. Não é economia concorrencial. Talvez seja economia planificada, mas não pelo estado. Ou seja, o pior tipo de economia planificada.

Muito mal estamos nós quando consumimos mais telemóveis que alfaces. Eu prescindiria muito mais facilmente do meu TM que da alface!

miguel disse...

filipe,

independentemente de ser 'acordado' ou não, eu estava a dar um exemplo 'bem pior' (pela duração e pelo volume de vendas envolvido) do que o das alfaces. isto para dizer o caso das alfaces é algo muito vulgar na economia de mercado.

Filipe Moura disse...

Miguel (Atanásio?), sim, é um exemplo bem pior, a meu ver por ser acordado. Eu posso comprar alfaces a 99c o kg no Minipreço (ainda a semana passada comprei várias). Não posso fazer chamadas a menos de 16c o min, a menos que tenha um plano de subscrição.
De certeza que o volume de vendas de chamadas de telemóvel é superior ao de alfaces? Da minha parte tenho a certeza de que gasto muito mais em alfaces do que em chamadas de telemóvel.